O escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999, morreu aos 87 anos, em Abril de 2015. Considerado uma das mais importantes figuras da cultura alemã do pós-guerra, Günter Grass tornou-se persona non grata quando confessou, na sua trilogia autobiográfica, iniciada com Descascando a Cebola (2007), que narra a sua vida entre 1939 e 1959, como se alistou voluntariamente nas SS. No espírito desse processo de descascar a cebola de forma a revelar o núcleo da verdade, Grass escreve como aos 15 anos se apresentou voluntariamente para o serviço militar na Alemanha nazi e como aos 17 passou a envergar o uniforme das Waffen-SS. E este episódio que ocupa apenas duas páginas no conjunto da sua vida acabou por despertar grande polémica.

O Tambor de Lata, o seu romance de estreia, só foi novamente publicado entre nós no cinquentenário da sua publicação original (1959), numa tradução melhorada pela D. Quixote. O livro foi considerado escandaloso e pornográfico, mas a verdade é que narra de forma cómica, alegórica e fantástica a história da Alemanha desde o final do século XIX até 1960. A obra é repleta de histórias picarescas e cómicas, atravessada por elementos fantásticos e mágicos, num registo fluido, eivado de jogos de linguagem e de algum barroquismo de linguagem, próximo do carnavalesco, cujo estilo lembra afinal Gabriel García Márquez e talvez por isso mesmo alguns críticos tenham apontado a obra como um exemplo europeu do realismo mágico.

O narrador, na primeira pessoa, confessa logo nas primeiras linhas que está internado num «asilo de alienados» (pág. 13). Mas o autor, justamente numa época em que se prenunciava a morte do romance, dá novo ímpeto à arte da narrativa e não deixa de ironizar: «Pode-se começar uma história pelo meio e criar confusão, avançando e recuando com ousadia. Pode-se assumir uma pose moderna (…). Também se pode afirmar logo de início que hoje em dia é impossível escrever um romance, mas depois, por assim dizer dissimuladamente, produzir um bestseller bem espesso para o autor se apresentar por fim como o último dos romancistas.» (pp. 15-16).

E será sempre a ironizar, para poder falar de assuntos sérios e delicados do pós-guerra, que a narrativa de Oskar vai discorrendo, a partir de um início desde logo cativante e estranhamente desconcertante: «Começo muito antes de mim; porque ninguém deveria escrever a sua vida sem arranjar paciência para recordar, antes da própria existência, pelo menos metade dos avós.» (pág. 16). Oskar conta então a história da sua avó materna, Anna Bronski, e de como ela se sentou num batatal, em 1899, com as suas quatro saias, cor de casca de batata, cuja ordem ia trocando consoante o dia da semana, de forma a que a saia melhor ficasse sempre por cima das outras, e de como Joseph Koljaiczek, procurado por ser um incendiário, se esconde de dois polícias debaixo das suas saias. Enquanto a polícia procura desesperadamente o homem e interroga a mulher sentada frente a uma fogueira, a comer batatas assadas, esta deixa sair fundos suspiros enquanto aponta para outra direção. No final do primeiro capítulo, quando os polícias finalmente desistem de procurar o foragido, Anna Bronski ergue-se, descobrindo Joseph Koljaiczek, que estava enrodilhado no chão, mas logo se levanta, fecha a braguilha, e a partir desse momento «não lhe largou mais as saias» (pág. 24).

O maravilhoso patente nesta obra está especialmente contido em torno de Oskar que nasce em 1924 com a inteligência de um adulto e uns enormes olhos azuis. No dia do seu terceiro aniversário, Oskar recebe um tambor de lata, e nesse mesmo dia, ao ouvir o pai dizer-lhe que quando chegar a adulto será ele a tomar conta da loja da família, ele decide parar de crescer, como forma de evitar as responsabilidades e pesos ou expectativas próprias de uma idade adulta. Ao longo da sua vida, Oskar irá tocar uma série de tambores, que nas suas mãos ganham um triplo poder: invocatório, pois enquanto Oskar o percute isso permite-lhe regressar ao passado e resgatar as suas memórias, como faz no final da sua vida, enquanto está no asilo e procura escrever as suas memórias; protestatório, como arma de contestação ao que lhe impõem; encantatório, ao jeito do flautista de Hamelin, pois seduz e hipnotiza as pessoas com o som do seu tamborzinho de brinquedo. Oskar tem ainda outra capacidade extraordinária: uma voz «vitricida», que parte vidro de forma tão eficaz como uma arma supersónica.

Esta recusa de Oskar em crescer e tornar-se adulto, apesar de possuir as capacidades cognitivas de um, simboliza a sua negação de fazer parte de um mundo que ele considera estar a enlouquecer, consoante se avizinha a Segunda Grande Guerra, e o rufar do seu tambor representa o seu protesto face à passividade da época, face ao que a História preparava, e que por muito imaginável que parecesse acabou por se tornar realidade. Este é, aliás, o princípio subjacente ao realismo mágico: a forma como o mundano e o fantástico se interligam de forma comum, em que os factos mais incríveis não despertam grande estranheza no leitor, se bem que aqui não se trate de eventos mágicos como o levitar de tapetes, mas sim de outros factos absolutamente incríveis, como o extermínio de milhares de pessoas, aparentemente aceite de forma natural.

Existe todavia uma certa ambiguidade na leitura da obra pois chega a indiciar-se a possibilidade de que Oskar, afinal, não é uma criança, mas sim um anão, o que pode invalidar a questão do maravilhoso, embora não anule a estranheza e a singularidade que envolve este romance. Este rapaz incorre também em brincadeiras sexuais precoces com Maria, a mulher que cuidava dele e que depois casará com o pai, pelo que quando nasce Kurt não se sabe bem se será filho ou neto do marido.

Além da sua natureza física diferente, a diferença de Oskar face à sociedade que o envolve está igualmente patente no seu comportamento e nos papéis que assume ao longo da sua vida: como chefe de um gangue que assalta lojas, graças ao poder da sua voz que pulverizava facilmente as monstras; quando se junta a uma trupe circense de anões que entretém as tropas na linha da frente; em Düsseldorf, Oskar torna-se músico de jazz, sempre acompanhado do seu tambor… A (in)sanidade mental do narrador nunca chega a ser claramente confirmada ou desmentida, ao longo desta densa narrativa de quase setecentas páginas, em que o pequeno Oskar percorre a história alemã desde 1899 até 1954.

A título de curiosidade, Günter Grass visitava regularmente o Algarve, onde possuía uma casa em Portimão, e expunha a sua obra como artista plástico no Centro Cultural de São Lourenço. No seu dário de viagens, Em Viagem – De Uma Alemanha à Outra (1990), o autor escreve sobre o Vale das Eiras onde tinha uma casa, desde 1980, sem televisão. Grass gostava de receber, de cozinhar, de desenhar as suas gravuras a tinta de choco, de lula ou de polvo, e de se ocupar das suas plantas.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.