Em O Sexo da Música – As surpreendentes ligações entre música e sexualidade, publicado pelas Temas e Debates, Étienne Liebig afirma que a música «é uma vibração que sacode o meio ambiente pondo as moléculas em movimento, como todos os sons.» (p. 13); «uma vibração que vai acionar uma aparelhagem complexa nos nossos ouvidos. Estes transformam a vibração em impulsos elétricos para que diferentes áreas do nosso cérebro os recebam, os leiam e os interpretem segundo diferentes parâmetros para nos dar o sentimento da música.» (p. 17)
Sentimos a música antes de a ouvir. Recordo-me que quando vivia na Beira sentia no próprio corpo uma espécie de vibração, como se o ar começasse a chegar em ondas, até que efectivamente o som se começava a discernir, vindo de longe, até que, subitamente, como um trovão que estalava no seio da casa, o vidro de uma das janelas (uma das paredes da casa era toda em vidro) começava a estremecer ao som da música, o que significava que ia haver um concerto nessa noite nalgum bairro vizinho e eu teria de conseguir dormir apesar do barulho. A música chega-nos em ondas de som, como quando certos carros passam por nós e o nosso carro estremece e vibra com o som, apesar de quase não conseguirmos ouvir a música com as janelas fechadas.
O prazer que sentimos com a música vem da identificação da sua complexa estrutura, mas também de dois elementos tão antagónicos quanto centrais à música: a antecipação e a surpresa.
«Os compositores conhecem muito bem este fenómeno da espera que deixa o auditor em estado de transe auditivo («vem, não vem?») e um certo tipo de satisfação quando por fim se ouve o refrão, o chorus, a entrada da orquestra, o ritmo tão esperado.» (p. 18)
Em suma, também a música pode ser um catalisador da memória, como a madalena de Proust…
Jonah Lehrer, em Proust era um neurocientista – Como a arte antecipa a ciência (Lua de Papel), num misto de biografia, ensaio e escrita científica, procura demonstrar como a arte antecipou a ciência, através da obra de 8 artistas, designadamente de Proust e a sua famosa madalena, feita de açúcar, farinha e manteiga, que espoleta no narrador a rememoração de todo o seu passado ao longo de 7 volumes. E sabe-se hoje que Proust estava certo, pois está provado que o paladar e o olfacto são os únicos sentidos que se ligam directamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro.
Contudo, se assim é, como se explica que quando ouvimos certas músicas somos transportados para a idade em que as ouvimos talvez pela primeira vez? Aconteceu-me uma vez, com o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovsky, em que quando um dia o ouvi por acaso num CD que meti no carro, senti-me projectado para a primeira vez que o ouvi, mais de 20 anos antes… Ou hoje, quando ao ouvir um álbum de êxitos de Elton John me lembrei de uma música que não ouvia há mais de 10 anos, sem exagero: Believe… e a forma como, apenas pelos primeiros segundos, consigo reconhecer de imediato e a pele dos meus braços se arrepia e os pêlos se eriçam…
«Esta necessidade de reescutar, seja a mesma coisa, seja algo de semelhante, está ligada à nossa memória auditiva que armazena os timbres, os ritmos, as vozes, as tonalidades que nos deram prazer e que procuramos durante toda a vida com o objetivo de “curtir” de novo. (p. 19) Ver artigo
As questões de género e de sexo continuam (in)felizmente a dar que falar, o que apenas comprova que ainda há mitos a desmentir e asserções a destruir. Se for homem, é possível que já tenha ouvido algo como “Tu pensas como uma mulher!” ou inclusive dito a outro “Não sejas menina!”. Pelas redes sociais pululam ainda (pseudo)artigos que comprovam como as mulheres trabalham mais com o hemisfério direito ou gerem tarefas de forma múltipla enquanto que os homens não conseguem sequer ouvir alguém ao seu lado quando estão focados num jogo de futebol…
Publicado pela Temas e Debates, este manifesto de Daphna Joel, neurocientista de renome internacional, e de Luba Vikhanski, redactora especializada em ciência, procura contribuir para um mundo sem estereótipos de género, desmontando uma série de verdades impostas por uma ciência essencialmente dominada por homens até muito recentemente. Daphna Joel procede a uma revisão de diversos estudos conduzidos por terceiros, onde confluem pequenas histórias e episódios conhecidos, e explica, na primeira pessoa, de forma acessível e divertida, como chegou às inovadoras descobertas, conduzidas no laboratório que dirige em Telavive, de que o cérebro de cada ser humano se revela como um mosaico único de características tanto masculinas como femininas: «a descrição da estrutura cerebral humana como um mosaico, ao invés de um conjunto de características só «masculinas» ou só «femininas», condiz na perfeição com a ideia de que cada um de nós tem traços femininos e masculinos, e que é raro os seres humanos serem completamente femininos ou completamente masculinos.» (p. 90)
A autora começa por analisar a história, feita de factos distorcidos, em que se tomou o tamanho supostamente inferior do cérebro de indivíduos do sexo feminino para comprovar como os homens seriam cognitivamente mais desenvolvidos.
«Segundo uma versão popular da história, o cérebro feminino tem um grande centro de comunicação e um grande centro de emoções, e está programado para a empatia. O cérebro masculino, por seu lado, tem um grande centro de sexo e um grande centro de agressão, e está programado para construir sistemas.» (p. 12)
Mas diversos estudos que abrangeram comportamentos e actividades altamente estereotipados por género chegam a conclusões surpreendentes, em que menos de 1 % dos indíviduos revelou ter características apenas masculinas ou femininas. Isto tem, naturalmente, óbvias consequências práticas para a maneira como ainda hoje se entende o mundo que nos rodeia, fundamentado em mitos culturais tratados como verdades. A própria noção de género pode muito bem ser um dos maiores mitos de toda a História – o que não significa que não exista: «Claro que existe, não como um conjunto intrínseco de qualidades, mas como um sistema social que atribui significado ao sexo, conferindo diferentes papéis, estatutos e poderes aos homens e às mulheres. Tal sistema exerce uma influência preponderante nas nossas vidas, impondo uma divisão binária a uma população de mosaicos humanos.» (p. 107)
Não se pense, contudo, que rapazes e homens não podem ser igualmente prejudicados por constituírem o grupo do género dominante do sistema num mundo generizado de forma binária… Ver artigo
À Mesa com os Filósofos é um fascinante tratado de Normand Baillargeon, filósofo canadiano, sobre a aparentemente improvável relação entre a comida e a filosofia, publicado pela Temas e Debates.
Na Grécia Antiga, um banquete ou simpósio reunia amigos para uma «reunião de bebedores», onde o mestre de cerimónias, além das libações, assegurava o encadeamento das conversas. Para o demonstrar, o autor serve-se de um diálogo platónico, em que Platão (428 a.C.) convive com Kant (1724), Khayyãm (1048), poeta persa apreciador de vinho, e Veblen (1857), economista e sociólogo americano. Menos de mil anos mais tarde, Tomás de Aquino disserta sobre a gula como pecado capital, num ambiente monástico em que à mesa não se fala e se faz do jejum um acto virtuoso. Kant, mais tarde, advoga que não se pode celebrar a cozinha como uma experiência estética, pois depende do gosto subjectivo de cada um, enquanto Brillat-Savarin explana que apesar de o prazer de comer satisfazer uma necessidade básica existe uma arte de comer e de degustar. Afinal, «o prazer da mesa é convivial e, como qualquer experiência estética, convida à partilha, à troca e à conversa, nomeadamente sobre os méritos dos pratos» (p. 203).
Este livro, que se pode degustar como um vinho leve, vai encorpando até se tornar adstringente, pois o que começa como uma evocação dos primórdios clássicos da filosofia, em que a comida e especialmente o vinho tiveram um papel central, rapidamente se actualiza numa arguta reflexão sobre a sociedade de hoje… dominada pela ilusória noção de que a enologia é uma ciência, quando as suas conclusões são subjectivas e manipuláveis; em que os supermercados estão concebidos para incitar a comprar tudo aquilo de que não precisamos ou nos é nocivo, pelo que se recomenda ao leitor exercitar o cepticismo e o estoicismo nas compras; em que proliferam programas de culinária e concursos a chef que advogam a cozinha como arte; onde as redes sociais inundadas por fotos de comida disputam protagonismo com corpos secos, cujo músculo, nos homens, ou magreza, nas mulheres, raiam a anorexia atlética; por discussões em torno dos benefícios de ser vegetariano ou vegan; por artigos que se contradizem em torno das propriedades milagrosas ou dietéticas de tal alimento; quais as vantagens e consequências de numa lógica económica se optar entre o locavorismo ou o libertarismo, ou seja, comprar produtos locais e da época num mercado local ou recorrer ao hipermercado onde as estações do ano se suspendem e o mundo inteiro está ao alcance da nossa barriga? Ver artigo
O movimento new age e a literatura de auto-ajuda foram substituídos nas duas últimas décadas por uma nova indústria da felicidade e do desenvolvimento pessoal, avaliada em mais de 4 biliões de dólares, que abrange uma ampla gama de serviços e produtos, como a autoajuda, o coaching, o mindfulness, cursos de inteligência emocional, aconselhamento psicológico positivo, medicação que potencia boa disposição, aplicações para o telemóvel, livros de auto-ajuda. A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. Devo confessar que considerei urgente a leitura de A Ditadura da Felicidade, de Edgar Cabanas e Eva Illouz, publicado pela Temas E Debates, não por ser um descrente da literatura que vende a felicidade como um produto (que não é novo, mas que se vende agora como legítimo – cientificamente comprovado – e premente), mas justamente por ser um curioso.
A dimensão e o impacto da investigação académica sobre a felicidade e temas afins, como emoções positivas ou bem-estar, decuplicou, envolvendo a psicologia mas também áreas como a saúde, a economia, a educação, a gestão. Conceitos que antes eram vistos com desconfiança ou como charlatanice, e que continuam a padecer da «falta de um núcleo de conhecimento rigoroso e comum», são agora relançados num novo embrulho compósito, numa «mistura mal corroborada e eclética de fontes heterogéneas», de psicanálise, religião, behaviourismo, medicina, neurociência, ocultimos, etc. (p. 43).
A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. E é vendida como «o mais valoroso investimento pessoal a fazer» (p. 183), pois pessoas mais felizes significa que são mais saudáveis, mais produtivos, melhores cidadãos. As sociedades modernas proporcionam aos seus cidadãos maior auto-consciência, mais liberdade, mais oportunidades de escolha e de seguirem os seus sonhos. Mas todos os anos há milhões de pessoas que recorrem a terapias, serviços e produtos da psicologia positiva, pois, como este livro demonstra, a psicologia positiva criou um círculo vicioso: «Há sempre uma dieta a seguir, um vício a largar, um hábito mais saudável a adquirir, (…) uma falha a corrigir» (p. 216). E as panaceias que se vendem não resolvem os problemas, antes os agravam, pois geram uma frustração constante; culpabilizam o eu por não ser feliz, uma vez que todas as ferramentas estão em si próprio; criam uma necessidade de autovigilância permanente para não termos pensamentos negativos que nos tornam infelizes; dão novas vestes ao individualismo neoliberal, gerando maior egotismo e auto-absorção (basta fazer um passeio pelas redes sociais em que a maior parte dos jovens influenciadores parecem extáticos de felicidade). Mais flagrante ainda é a análise de como a psicologia positiva se tornou uma forma de controlo social, pois desvia o foco das condições em que o cidadão vive, especialmente no contexto empresarial que faz livre uso destes serviços, com a pretensão de facilitar a adaptação eficaz dos trabalhadores a uma cultura neoliberal e a enganadora justificação de reduzir o stresse, que é criado, justamente, pelo actual espírito empresarial.
Edgar Cabanas é doutorado em Psicologia pela Universidade Autónoma de Madrid, professor na Universidade Camilo José Cela, em Madrid, e investigador associado no Max Planck Institute for Human Development, em Berlim.
Eva Illouz é professora de Sociologia e Antropologia na Hebrew University of Jerusalem e na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, colunista do diário israelita Haaretz e autora de diversos livros. Em 2018, recebeu o prémio EMET, o maior galardão científico de Israel, e foi condecorada com a Legião de Honra de França. Ver artigo
Diário de viagens, ensaio antropológico e registo zoológico, onde não faltam fotos, as Aventuras de um Jovem Naturalista – As Expedições Zoológicas são contadas em 448 páginas de puro deleite, neste livro publicado pela Temas e Debates. David Attenborough está na sua sétima década de carreira televisiva e é uma voz inconfundível que acompanhou muitos de nós desde a tenra infância em que às manhãs de domingo de desenhos animados se seguiam os programas de vida animal. Estudou Ciências Naturais em Cambridge, começou a trabalhar na BBC em 1952 como produtor estagiário, até que aos 26 anos, com a sua licenciatura em zoologia e dois anos de experiência como produtor de televisão novato, concebe o plano de recolher animais, numa expedição conjunta organizada pela BBC e pelo Zoo de Londres, e filmar a sua captura e recolha, para por fim mostrá-los em estúdio. Em Março de 1955 parte para a Guiana Britânica e desde aí desenvolve o hábito de escrever as suas experiências nessas expedições, cujo relato das três primeiras nos chega agora, actualizado e abreviado, onde se encontram animais para todos os gostos (como uma pitão, uma preguiça, um tamanduá, uma cria de urso, um orangotango, dragões-de-komodo e tatus). Este método de captura de animais poderá parecer ultrapassado e gerar controvérsia no revisionismo constante que vivemos na actualidade, contudo o maravilhamento e o respeito do autor pela vida animal e pela sua preservação são inegáveis, bem como o interesse pelos povos que vai conhecendo e a importância da preservação do seu meio – se bem que, ao longo dos relatos, sentimos que a ocidentalização já tinha chegado, com maior ou menos impacto, às mais remotas comunidades visitadas. E curiosamente perceberemos como é comum estas pessoas terem animais domesticados, como as duas capivaras que foram criadas juntas com duas crianças e só entram no rio quando estão todos juntos.
Tão inconfundível quanto a voz de David Attenborough, é a ironia e sentido de humor que transparece nestas páginas que, a certa altura, se afigura uma recriação do episódio bíblico da Arca de Noé:
«A viagem de regresso pelo rio abaixo começou bem. Tínhamos construído uma caixa grande para o pecari com troncos finos de árvores jovens atados com tiras de casca, e colocámo-la na proa da canoa. Houdini [um porco] portou-se muito bem na primeira meia hora; o mutumporanga, de patas amarradas com um pedaço de fita, estava calmamente empoleirado na lona que cobria o nosso equipamento; as tartarugas passeavam pelo fundo da canoa, papagaios e araras guinchavam amigavelmente aos nossos ouvidos e os macacos-capuchinhos estavam sentados todos juntos numa caixa de madeira, catando afetuosamente o pelo uns dos outros.» (p. 98) Ver artigo
O livro Talento Rebelde – com o subtítulo Porque vale a pena quebrar as regras no trabalho e na vida –, de Francesca Gino, professora na Harvard Business School, uma investigadora premiada e consultora de várias empresas, como a Disney ou a Goldman Sachs, é uma súmula de um estudo feito durante mais de uma década, publicado pela Temas e Debates.
São cinco os elementos nucleares do talento rebelde: «O primeiro é a novidade, procurar o desafio e o que é novo. O segundo é a curiosidade, o impulso que todos temos, em crianças, para perguntar constantemente «porquê?». O terceiro é a perspetiva, a capacidade de que os rebeldes dispõem de expandir constantemente a visão que têm do mundo e de vê-lo como os outros. O quarto é a diversidade, a tendência para pôr em causa papéis sociais predeterminados e procurar quem possa parecer diferente. E o quinto é a autenticidade, algo que os rebeldes abraçam em tudo o que fazem, mantendo-se abertos e vulneráveis, de modo a estabelecer ligações com os outros e aprender com eles.» (p. 18)
Em tempos conturbados, a nível económico e de valores morais, em que a competitividade pode ser brutal, a autora defende que a rebeldia não é necessariamente fonte de conflitos mas sim uma necessidade premente para a inovação e o sucesso das empresas, e dos profissionais, desafiando a convenção e a rotina de processos muitas vezes obsoletos. A rebeldia é aliás sinónimo de empenho.
«A maioria dos negócios segue regras, sem as quebrar. Nas organizações encontramos regras um pouco por toda a parte, sejam elas os procedimentos normais para desempenhar uma tarefa, uma hierarquia pormenorizada ou até o código de vestuário. Se ignorarmos as regras vai haver problemas. O caos. Os rebeldes são tolerados com relutância. Caso se tornem demasiado incómodos, são convidados a sair.» (p. 15)
Francesca Gino apresenta casos retirados da Pixar, da Disney, do melhor restaurante italiano ou mesmo do mundo, de companhias aéreas e de uma cadeia de fast food em ascensão. Em vez de incorrer numa prosa fastidiosa e técnica, a autora perde-se aliás nestes casos de estudo, apresentando exaustivamente, provalmente pelo seu entusiasmo, as histórias de como estas empresas vingaram, apostando no diferente, e das pessoas que as levaram ao sucesso. Ver artigo
Em resposta a esta pergunta, Mary Midgley escreve um manifesto em que analisa e entretece algumas das questões mais prementes da actualidade, como o papel das humanidades na educação, o aquecimento global, e em particular as consequências da evolução científica e tecnológica.
Procurando responder aos materialistas que alegam que só a máquina e a ciência interessam à vida, a autora demonstra como até os escritores de ficção científica foram capazes de antever os perigos da supremacia constantemente atribuída à matéria, como no caso dos cientistas que apregoam as virtudes da inteligência artificial e da superioridade do computador ao homem mas são incapazes de perceber que passar da confiança em Deus para um mundo regido por máquinas é passar ao lado do poder da nossa mente e do nosso livre-arbítrio como a única forma de encontrar respostas e tomar decisões sensatas.
A primeira parte do livro, apesar da linguagem clara, é um pouco mais vaga, talvez porque a autora se aproxima do tema que lhe interessa numa circunvolução, e só a partir de metade do livro é que une as pontas das várias ideias que foi colocando como pistas. Ela própria parece reconhecer esse método de abordagem quando a certa altura afirma: «As pessoas perguntam-me por vezes qual é o tópico sobre o qual investigo e eu respondo que não faço a mínima ideia» (p. 23). Começando por alertar para os perigos da crescente especialização e compartimentação do saber, a autora procura depois defender como a filosofia, ciência que levanta mais perguntas do que respostas, é essencial à formação do ser humano, sendo a sua tarefa central «lidar com problemas que são radicalmente irresolutos» (p. 64): «A filosofia olha para as diferentes maneiras de pensar e tenta mapear a sua relação. É uma forma de dar sentido ao todo. (…) Assim, a razão pela qual alguns filósofos acabam por ser recordados não é por terem revelado novos factos, mas por terem sugerido novas formas de pensar que implicam novas formas de viver» (p. 73).
Recorrendo às palavras da escritora Iris Murdoch, Mary Midgley procura explanar como é insuficiente pensarmos que o mundo se cinge ao visível e palpável, quando afinal somos seres modelados social e culturalmente: «cada um de nós tem um mundo com um grande enquadramento que a nossa cultura nos fornece já pronto» (p. 69). E nessa compreensão do mundo em que emergimos e imergimos a literatura tem, a par da filosofia, um papel crucial para «figurar e compreender situações humanas» (p. 70), além de que a própria ciência se subsume em conclusões, tecidas com palavras, cuja influência na nossa saúde e sanidade mental é tão poderosa como a nossa dieta e capaz de enraizar hábitos profundos.
Este livro é uma análise lúcida de uma mente brilhante, com a capacidade de clarificar o complexo e de não se deixar desviar das questões verdadeiramente essenciais à vida, ao contrário dos materialistas que reivindicam a era da tecnologia e da máquina (um “escravo sem mente”) como o único e desejável futuro: «As confusões que agora afligem a vida humana não são sobretudo devidas a falta de inteligência, mas a causas humanas vulgares, como a ganância, o preconceito, a parvoíce, a avareza, a ignorância, a ira, a falta de bom senso, a falta de interesse, a falt de sentimento público, a falta de trabalho em equipa, a falta de experiência, a falta de consciência e talvez devido sobretudo à ausência de reflexão.» (p. 210)
Mary Midgley foi professora de Filosofia na Universidade de NewCastle entre 1962 e 1980. Escreveu profusamente sobre a natureza humana, a ética, a ciência, o ambiente, e faleceu o ano passado, no mesmo ano em que este livro foi publicado, agora traduzido e lançado entre nós pela Temas e Debates. E porque escreveu a autora este livro – ou porque se defende aqui a sua leitura essencial?
«O que faz com que escreva livros é em geral a exasperação contra todo o credo redutor, cienticista, mecanicista e fantasista que continua a distorcer constantemente a imagem do mundo da nossa era. Esse credo (…) continua a ostentar o lisonjeiro nome de mentalidade “moderna”.» (p. 211) Ver artigo
O livro Comportamento – A biologia humana no nosso melhor e pior não é propriamente recente, pois foi publicado em Outubro do ano passado, pela Temas e Debates, mas será certamente intemporal, até que algum estudo mais completo o possa complementar. Procurando responder à questão «Porque fazemos o que fazemos?», e recorrendo ao resultado de mais de uma década de trabalho, Robert Sapolsky tenta responder a esta pergunta centrando-se, sobretudo, no «conjunto confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição» que a maioria dos seres humanos carrega (p. 10).
«Pondo as coisas de forma mais óbvia, a nossa espécie tem problemas com a violência. Possuímos os meios para criar milhares de cogumelos atómicos; chuveiros e sistemas de ventilação subterrânea já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; violações em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; há bairros onde todos, dos que entregam pizas aos bombeiros, temem pela sua segurança. E há as formas mais subtis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos a magoar-nos.» (p. 10-11)
Mas o problema e o ponto central deste livro é que ao contrário de outros flagelos que a Humanidade procura erradicar do Mundo, como doenças crónicas, ou aquecimento global, ou meteoros, a violência não parece preocupar ninguém: «Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente. Pagamos bom dinheiro para vê-la num estádio, ensinamos os nossos filhos a responder-lhe e orgulhamo-nos quando, numa meia-idade já meio decrépita, conseguimos atingir o adversário com um desonesto golpe de cintura durante um jogo de básquete de fim de semana.» (p. 11)
Com irreverência e sentido de humor, suficientes para amenizar uma leitura de um livro que se estende por quase 900 páginas, e daí o seu pedido recorrente ao leitor “para que não mude de canal”, Sapolsky procura contar a história do comportamento humano por etapas, recuando no tempo: «Um comportamento acaba de ocorrer. Porque ocorreu?» (p. 14)
Neurobiólogo – aquele que estuda o cérebro – e primatologista – aquele que estuda macacos de todo o tipo –, o autor começa por analisar o que se passou no cérebro da pessoa um segundo antes de o comportamento se manifestar, recuando consecutivamente: segundos a minutos antes, horas a dias antes, dias a meses antes, recua à adolescência do sujeito, ao berço, ao útero, ao óvulo fertilizado, até chegar aos séculos e milénios antes que testemunharam o início da espécie humana e o nosso legado evolucionista.
A primeira categoria de explicação é neurobiológica mas Sapolsky adopta uma visão holística, multidisciplinar, consciente de que não é possível explicar o comportamento humano sem ir além da neurobiologia e da endocrinologia.
«Portanto, algumas vezes, o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies. Noutros casos, o desafio é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana manter semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras diferentes.» (p. 19)
Explora-se neste livro a biologia da violência, da agressividade e da competição, analisando os comportamentos e os impulsos que as motivam, mas este é também um tratado de psicologia sobre como as pessoas são ainda capazes de cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo: «procuraremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos agredimos ou cuidamos uns dos outros, e o quão interligada é a biologia de ambos.» (p. 21)
Diz ainda o autor na Introdução que «às vezes a única forma de entender a condição humana é levar em conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas. Enquanto poucas outras espécies pratiquem o sexo não reprodutivo, nós somos os únicos que depois conversamos sobre como foi.» (p. 19)
Robert M. Sapolsky é autor de várias obras de não-ficção, como A Primate’s Memoir, The Trouble with Testosterone e Why Zebras Don’t Get Ulcers. É professor de Biologia e Neurologia na Universidade de Stanford e foi premiado pela MacArthur Foundation. Ver artigo
Se o nome causa alguma estranheza é por causa da sua herança galega.
A autora nasceu em 1937 no Rio de Janeiro. Formou-se em Jornalismo em 1956 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Publicou o seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, em 1961.
Actualmente com 81 anos, este é o primeiro livro que a autora publica depois de ter recebido o Prémio Vergílio Ferreira 2019. Um livro intimista, feito de memórias, pensamentos soltos, reflexões, aforismos.
«Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que na solidão da caverna acendeu o primeiro fogo.» (p. 18) Ver artigo
Se atentarmos apenas no título, naquele breve momento de incerteza e de expectativa em que ainda tudo pode acontecer, este livro publicado pela Temas & Debates pode surpreender. Mas essa surpresa dever-se-á certamente a não termos lido com atenção o subtítulo do livro, pois aí fica claro o que irá acontecer: O poder das histórias que formaram os povos e as civilizações. Apesar de parecer um livro denso e pesado, onde não faltam diversas imagens, inclusive a cores, este livro engana ainda no modo como agarra o leitor e o faz atravessar quatro milénios de história através de dezasseis textos que são fundamentais para compreender a história da Humanidade, a cultura quer ocidental quer oriental, bem como a história da própria literatura. O próprio início do livro, quando Martin Puchner constrói todo um preâmbulo em torno da chegada do Homem à Lua, pode deixar o leitor a recear que toda a obra será uma enorme divagação, mas perceber-se-á depois que o autor tem um plano e que o “enredo” fará sentido a seu tempo.
O autor não se debruça portanto no papel da escrita, como actividade criativa e intelectual, mas sobretudo na forma como a leitura nos influencia e, principalmente, como as histórias que se escrevem e se recontam têm moldado o ser humano, o leitor, o potencial escritor. O próprio autor percorre alguns dos cenários das histórias que nos conta, como a mítica Troia, Sicília, Caraíbas ou Istambul, para falar com Orhan Pamuk.
Toda a erudição e conhecimento do autor são vertidos numa linearidade narrativa própria de quem conta uma história, ensinando-nos como o romance nasceu no Japão no século XI com Murasaki, uma dama de corte; como Miguel Cervantes combateu piratas quer marítimos quer literários; como Goethe pensa no conceito de literatura universal e como O Manifesto Comunista foi um livro que ganhou peso igual ao de outros textos fundadores, como a Bíblia; ou de que modo foram criados os suportes e objectos da escrita, como o alfabeto, o papel, o livro e a prensa.
Martin Puchner é titular da cátedra Byron e Anita Wien de Literatura Inglesa e Comparada, na Universidade de Harvard. É autor de livros premiados, cujas temáticas vão da filosofia às artes, como o Harvard xMOOC (Massive Open Online Course), que tem transmitido o fascínio pela literatura a estudantes de todo o mundo. Vive em Cambridge, Massachusetts. Ver artigo
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