Já está no ar a adaptação a mini-série do livro A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante, com tradução de Margarida Periquito e publicado pela Relógio d’Água. Esta leitura foi um agradável regresso a Ferrante. Apesar de ter comprado a tetralogia logo quando começou a ser badalada, fiquei-me apenas pelo primeiro volume – estou actualmente suspenso a meio do segundo volume, pois retomei a leitura da saga napolitana quando estreou a segunda temporada da série da HBO que também ainda não terminei.
«Dois anos antes de sair de casa, o meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia» é a frase inicial deste romance e é nela que se encerra quase toda a trama do livro.
Giovanna, protagonista e narradora, tinha uma boa relação com os pais, até ao momento em que por acidente ouve o pai dizer à mãe que a filha está a ficar com a cara da Tia Vittoria. Primeiramente, a reacção inicial de Giovanna será descobrir quem é afinal a Tia Vittoria que nunca viu, mas limita-se a descobrir fotos riscadas. Depois disso, a narrativa corre numa espiral ascendente (descendente?) que é, afinal, a perda da inocência da jovem Giovanna e a sua entrada na plena adolescência. E quando finalmente entra na zona pobre de Nápoles, nunca antes frequentada, e a tia lhe abre a porta, a verdade sobre Vittoria não é afinal aquela se esperava.
«Esta foi a última etapa da longa crise da minha casa e, ao mesmo tempo, um momento importante da fatigante aproximação ao mundo adulto. Soube (…) que era impossível parar de crescer.» (p. 234)
E conforme continua a crescer, a desvendar os segredos e mentiras dos adultos, a começar pelos dos pais, correndo aliás o risco de assumir o papel da tia ao trair a sua melhor amiga quando se apaixona pelo namorado desta, Giovanna passa a mover-se entre duas famílias, conforme a sua própria família se desagrega, e deambula entre duas zonas da mesma cidade, cujos habitantes não se “tocam”, em busca da sua própria identidade, na passagem da adolescência para a idade adulta, ao mesmo tempo que percebe que entrar na idade adulta é afinal incorrer num mundo de ilusões, de conveniências, e de enganos. Só a sua Tia Vittoria, uma criada, uma mulher espampanante, sem tento na língua, e com uma personalidade digna de um furacão, parece manter-se igual a si mesma.
Este livro é uma verdadeira viagem e a prosa de Ferrante agarra-nos desde a primeira frase. A mim deu-me foi vontade de regressar à Amiga Genial e parar de adiar a leitura dos restantes volumes.
«O tempo da minha adolescência é lento, feito de grandes blocos cinzentos e inesperadas gibosidades de cor verde, vermelha ou roxa. Os blocos não têm horas, dias, meses, anos, e as estações são incertas, está calor e frio, chove e faz sol. (…) De resto, o próprio colorido que certas emoções adotam é de duração irrelevante, quem escreve estas linhas sabe-o. Assim que procuras as palavras, a lentidão transforma-se em vórtice e as cores confundem-se, como as de diferentes frutos numa batedeira. Não só «passou o tempo» se torna uma expressão vazia, como também «uma tarde», «uma manhã», «uma noite» passam a ser indicações oportunas.» (p. 219) Ver artigo
Ensaio sobre o dia conseguido – Um Sonho de Dia de Inverno, de Peter Handke, publicado pela Relógio d’Água, é o livro perfeito para começar o ano – a ler.
Ao jeito de um diálogo platónico, quase numa estrutura de pergunta-resposta, pergunta essa que funciona na verdade como um refrão, Peter Handke tenta escrever um ensaio, à maneira de uma conversa entre um eu e um tu que são afinal o reverso dele mesmo.
«Quem viveu já um dia conseguido? À partida, a maioria não hesitará talvez em afirmá-lo. Será, pois, necessário continuar a perguntar. Queres dizer “conseguido” ou apenas “belo”? É de um dia “conseguido” que falas, ou de um — igualmente raro, é verdade — “despreocupado”? É para ti um dia que decorreu sem problemas já um dia conseguido? Vês alguma diferença entre um dia feliz e o conseguido?» (p. 10)
Entre o dia, o instante e a eternidade da vida, Peter Handke discorre sobre a (im)possibilidade de se cumprir, de se completar (para usar uma palavra das narrativas antigas) um dia que seja perfeito. E para isso, apesar de se chamar ao presente texto um ensaio, conforme o título aponta, Handke devaneia entre as epístolas de S. Paulo e as narrativas ao jeito de Ulisses (de Joyce), num dia cheio de perigos (como as aventuras vividas por Odisseu no seu regresso a casa), incorrendo na narrativa – pois à reflexão do pensador são altercados pedaços de prosa, muitas vezes poética, em que na verdade se narra mais do que se reflecte, como quem procura recriar esse dia conseguido, num «ensaio de uma crónica» (p. 41).
Será correcto confundir um dia conseguido com um dia perfeito? Quererei eu, na «luta com o anjo do dia», «com o cometimento do dia conseguido, tornar-me semelhante a um deus?» (p. 25)
Um dia aliás muito próximo do Outono ou do Inverno da vida – conforme o subtítulo deixa perceber: Um Sonho de Dia de Inverno. Talvez porque a ideia de um dia conseguido não passe afinal de um sonho.
«Será que, por uma vez, deveria ter permanecido em casa o dia inteiro, sem fazer nada além de morar? A consecução do dia pelo simples morar? Morar: estar sentado, ler, erguer os olhos, resplandecer em inutilidade. Que fizeste hoje? Ouvi. Que ouviste tu? Oh, a casa. Ah, sob a tenda do livro. E porque sais agora de casa, se com o livro tinhas encontrado o teu lugar? Para seguir o lido, ao ar livre.» (p. 47-48) Ver artigo
Não podia terminar o ano sem um livro que fui adiando de propósito para esta altura. Primeiro porque seria um reencontro, pois li há anos o Sobre a Leitura, de Marcel Proust, numa edição da Teorema intitulada O Prazer da Leitura, e um prazer redescoberto, pois agora surge novinho publicado pela Relógio d’Água com uma nova tradução (e também pela Antígona, numa edição lançada em simultâneo). E o sentimento mantém-se. Tal como o autor nos diz logo na abertura deste ensaio: «Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.» (p. 7)
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida. Ver artigo
Publicado muito recentemente, há alguns dias, pela Relógio d’Água, Os Perseguidores, de Ana Teresa Pereira, reúne três breves narrativas aparentemente díspares. A uni-las, entre outros temas que trataremos adiante, temos a imagem do pássaro, animal quase sempre imbuído de algo sinistro.
A primeira história, «A Firefly Hour», conheceu duas versões anteriores publicadas em As Velas da Noite e A Cidade Fantasma.
A protagonista é uma jovem de 22 anos, que escreve histórias policiais, contos para revistas pulp, e em tempos publicou um romance que não vendeu muito mas adorado pela crítica.
«Para mim, era só mais um homem a destacarse do fundo prateado. Aceitei o bilhete azul e rasgueio em dois. Não olhei para o rosto dele; nunca olho para os rostos deles. Fato cinzento, camisa cinzenta. Camisa limpa.» (p. 11)
Assim inicia a história que, em espelho, reflecte as narrativas da autora, e simultaneamente executa uma mise en scène da sua prosa:
«Sentei-me na cama. Ele ajoelhou-se à minha frente.
És tão bonita. Como a rapariga das minhas histórias.
É sempre a mesma?
Tem sempre o mesmo nome.» (p. 19)
«A Lagoa», a segunda narrativa, conta a história de um triângulo amoroso, Tom, April e a narradora. April e ela eram «as meninas da velha casa» (p. 61), quase iguais. A primeira diferença que as pessoas notavam era o cabelo, mas a verdadeira diferença estava «nos olhos: os meus de um azul límpido, os de April mais escuros, quase cinzentos. E nas mãos: as minhas são bonitas e macias, as de April magras e arranhadas, como garras.» (p. 52)
Depois de desaparecida durante 7 anos, na véspera do seu casamento, quando tinha 19 anos, April regressa de súbito e ameaça usurpar o lugar da jovem que se parece com ela. Ver artigo
Publicado em Janeiro de 2020, pela Relógio d’Água (à semelhança da restante obra da autora), O Atelier de Noite reúne dois contos (ou breves novelas), a acrescentar ao universo muito próprio que tem vindo a construir ao longo das suas intrigantes narrativas.
«Talvez seja o que distingue as boas histórias: começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.» (p. 14)
O Atelier de Noite e Sete Rosas Vermelhas são as duas histórias que compõem o presente volume e que se interligam subtilmente. A de O Atelier de Noite é narrada por uma protagonista feminina um pouco diferente das vozes usuais, pois gradualmente perceberemos que nos é desvendado o que terá acontecido a Agatha durante os 11 dias em que terá permanecido desaparecida (situação factual). Espalha-se até o rumor de que teria sido assassinada, ou de que teria montado o cenário para que pensassem isso, e quando Agatha reaparece a melhor história a adoptar é a de que terá tido amnésia.
«Eu sonhava ser actriz, pianista profissional. Não escritora (…). E então surgiu a ideia de escrever um romance policial. E aquele horrível homenzinho entrou na minha vida.» (p. 25)
É mais ou menos neste passo da narrativa que o leitor confirma que Agatha é (pode ser?), afinal, a escritora de policiais Agatha Christie, até porque a narrativa por vezes oscila entre a primeira e a terceira pessoa. E da mesma forma que em tempos se tornou (dir-se-ia que involuntariamente) autora de Poirot, Agatha deseja agora recriar-se numa nova personagem: Teresa – ironicamente (ou não) o segundo nome da autora.
Sete Rosas Vermelhas, a segunda história, mais breve, traz ainda ecos da primeira narrativa. Uma jovem, que se casara com um professor mais velho, acalenta também, desde sempre, «o desejo de ir embora, de desaparecer» (p. 79) – e as duas histórias interligam-se de diversas outras formas, a começar pelas várias referências à autora tornada personagem da primeira história.
«Tinha vinte e poucos anos. Vivia num estúdio num sótão. Ia à faculdade de vez em quando. Embora tivesse desistido de ser dançarina, ainda praticava todos os dias.» (p. 70)
Quando começa a receber uns pacotes que a relembram da sua vida anterior, quando ainda pintava. Um livro, um CD, um quadro seu, fotos a preto-e-branco que revelam «um atelier de um pintor de noite» (p. 79), a jovem rende-se ao desejo e desaparece na noite. A vida convencional, sem cor, desta jovem mulher, uma escritora dispersa, que em tempos respondera pelo nome de Dylan, abre-se para um novo mundo: «sentia-se cada vez mais longe do mundo em que vivia, já nem vivia lá, era omo um outro estado de consciência» (p. 79).
Entre um conto e outro, há frases que parecem emitir um lampejo fugaz sobre a prosa da própria autora: «Era isso que queria fazer. Encontrar ligações. Escrever contos que se pareciam com ovos, fechados em si mesmo, que nem ela mesma compreendia.» (p. 90) Ver artigo
Frente ao Contágio, de Paolo Giordano, publicado pela Relógio d’Água, tem este título um pouco mais genérico mas é, de facto, sobre a actual pandemia, em 27 fragmentos ou breves capítulos. O autor e físico italiano, autor de outros livros como A Solidão dos Números Primos, escreve este ensaio num «raro dia 29 do mês de Fevereiro», um dia extra de um ano bissexto que está, pelas piores razões, a ser “extra-ordinário” e, por isso também, esperamos nós, raro. Nessa data, a partir da qual o autor nos escreve este ensaio, os contágios confirmados em todo o mundo já são mais de oitenta e cinco mil», ou seja, o contágio estava ainda no seu início pois agora, quando vos escrevo sobre este ensaio, e Portugal prepara o regresso à normalidade possível, com a saída do confinamento e a reabertura do mundo, a pandemia atingiu já mais de 3 milhões e 500 mil pessoas infectadas, mais de 250.000 mortes, mais de 1 milhão de casos recuperados. A Itália, hoje, supera os 200 mil casos e os Estados Unidos da América ultrapassam 1 milhão… Se nos detemos nestas contagens aparentemente macabras é porque, conforme escreve o autor neste ensaio desenvolvido a partir de um artigo publicado num jornal italiano «Há pelo menos um mês que esta estranha contabilidade é a música de fundo dos meus dias», enquanto observa um mapa-mundo aberto no seu ecrã de computador, «todo o mundo está coberto de picadas, e a erupção só pode agravar-se», num planisfério digital em que as zonas vermelhas marcam os focos da doença, pois, «como é sabido, os vírus são vermelhos, as emergências são vermelhas» (pág. 10).
O «SARS‑CoV‑2 é o primeiro novo vírus a manifestar‑se tão velozmente à escala global» e revela «a multiplicidade dos níveis que nos ligam uns aos outros, assim como a complexidade do mundo que habitamos, das suas lógicas sociais, políticas, económicas, e também interpessoais e psíquicas» (p. 9): «Este contágio dá‑nos a medida do grau em que o nosso mundo se tornou global, interconectado, inextrincável.» (p. 10)
Paolo Giordano usa a escrita para manter os pés bem assentes na terra, num tempo de silêncio, «um espaço vazio inesperado», que é, contudo, hostil à criatividade e à produtividade, devido à incerteza dos dias. Uma das poucas certezas é a de que os números continuarão a crescer e serão completamente outros quando o leitor ler essas suas páginas. E a principal certeza a que se agarra é que estas «reflexões que o contágio suscita agora continuarão a ser válidas. Porque tudo o que está a acontecer não é um acidente casual nem um flagelo. E não é realmente novo: já aconteceu e tornará a acontecer» (p. 11). E é sobre a matemática, a mesma ciência exacta que nos seus anos de secundário lhe permitia sanar a angústia, que o autor se debruçará, desenvolvendo a tese de que as «epidemias, antes ainda de emergências médicas, são emergências matemáticas. Porque a matemática não é de facto a ciência dos números, é a ciência das relações: descreve as ligações e as trocas entre seres diferentes, procurando esquecer de que são feitos (…), tornando-os abstratos sob a forma de letras, vetores, pontos e superfícies. O contágio é uma infeção da nossa rede de relações.» (p. 14)
Em suma, escreve-nos o autor que a única arma que temos não é uma vacina mas a paciência, essa “forma um tanto antipática de prudência”… Ver artigo
Já não sou um purista, daqueles que fica sempre decepcionado com as adaptações a filme como também ultrajado. Mas continuo a preferir ler sempre o livro antes de ver o filme ou, como agora é mais corrente, a série.
Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, publicado pela Relógio d’Água, não é uma obra de literatura das que virá a ser discutida ou lembrada na posteridade, mas é um livro de leitura compulsiva, mas não tão leve, cuja prosa é enganadoramente simples. A autora escreve bem, mas fá-lo com precisão cirúrgica, sem usar mais do que as palavras necessárias, da mesma forma que não disseca cenas nem personagens, deixando isso a cargo do leitor. A intriga do livro pode parecer semelhante à de um guião de uma série – e por isso mesmo foi adaptado pela Hulu – mas esta história tem camadas sobre camadas de significado e levanta uma série de questões prementes, que a autora evita explorar, aparentemente, deixando as interpretações e posições a cargo do leitor, como a questão da adopção da bebé Mirabelle/May Ling, se deve ser criada pela mãe que a abandonou ou por um casal branco, rico, que tem todas as condições para a criar, menos a de lhe poder transmitir a sua herança cultural como bebé chinesa que é. Ou como uma mulher acede a ser barriga de aluguer para um casal que não pode conceber mas vê-se ultrapassada pelo seu instinto maternal, possivelmente agudizado pela perda familiar que sofre durante a gravidez.
Mia e Pearl, mãe e filha, raramente permanecem muito tempo no mesmo lugar mas, quando chegam a Shaker Heights onde alugam a casa de Mrs. Richardson, Pearl acalenta a esperança de poder criar raízes naquele pacato subúrbio de Cleveland. E rapidamente começa mesmo a criar laços com a família Richardson…
Shaker Heights é um daqueles subúrbios norte-americanos (não confundir com a nossa Amadora), ao estilo de Donas de Casa Desesperadas, onde todas as casas são geminadas e a relva não pode ultrapassar os 6 cm de altura. Mrs. Richardson é uma daquelas Stepford Wives e note-se que no livro Mrs. Richardson raramente é chamada pelo nome próprio de Elena… ou seja, é sempre conhecida pelo seu “título”, pela sua posição de chefe de família: «A casa dela era grande; os filhos estavam seguros e felizes e bem-educados. Convenceu-se de que isso era o essencial daquilo que planeara há tantos anos.» (p. 103)
Elena Richardson é daquelas pessoas irritantes que gosta de ter tudo no lugar certo e determinada em praticar boas acções (como aquelas pessoas que obrigam a velhinha a atravessar a estrada mesmo quando ela nem queria passar para o outro lado). Por isso mesmo, a renda da casa será muito abaixo do normal e é por isso que Mia se instala aí, apesar das diferenças óbvias entre ambas. Pois Mia é um artista, enquanto que Elena, com a sua família perfeita com um marido perfeito e 4 filhos, vive segura num lugar previsivelmente seguro como Shaker Heights, onde nada acontece: «na sua linda casa perfeitamente ordenada e abundantemente mobilada, em que a relva estava sempre aparada e as folhas eram apanhadas e nunca, nunca havia lixo à vista; no seu lindo bairro perfeitamente ordenado, em que cada relvado tinha uma árvore e as ruas eram curvas para ninguém andar demasiado depressa e cada casa se harmonizar com a seguinte; na sua linda cidade perfeitamente ordenada, em que todos se davam bem e todos cumpriam as regras e tudo tinha de ser útil e lindo por fora, fosse qual a fosse a confusão por dentro.» (p. 300)
E quando além disso Mrs. Richardson propõe, de modo a que seja irrecusável, que Mia faça um part-time como gestora do lar (vulgo politicamente correcto para empregada doméstica), Mia aceita também, até porque isso lhe permitirá acesso aos bastidores da casa da família que Pearl começa a preferir à sua mãe.
Agora, quanto à mini-série: a adaptação do livro Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, é bastante livre. E sinceramente acho que isso só enriqueceu a minha leitura do livro pois há várias questões que são muito mais exploradas, principalmente, o conflito entre Mia e Mrs. Richardson que é intensificado pela questão cultural, uma vez que na série Mia e Pearl são representadas como “afro-americana”. E é fantástico ver o confronto entre duas boas actrizes: Mia, representada por Kerry Washington (a Olivia Pope de Scandal), e Elena Richardson interpretada por Reese Witherspoon. Há aliás muito mais diálogo entre ambas as mulheres, o que pouco acontece no livro, e a hostilidade muito mais declarada entre uma artista de espírito livre e uma americana loura de boas famílias com um trabalho como repórter em part-time (pois a família é naturalmente a sua prioridade). Só é pena, na minha perspectiva (e se não quiserem um pequeno spoiler do livro aconselho a parar de ler aqui), que na série não se tenha respeitado um aspecto da história original: há uma mulher que é mãe, mas permanece também virgem, enquanto que na série é apresentada como mais promíscua.
As últimas palavras são acerca da minha muito adorada Reese Witherspoon. Mrs. Richardson aparece demasiado caricaturizada na série, como acontece com o seu sistema de organização por cores e os seus calendários para tudo, inclusive para as relações sexuais com o marido que só podem ocorrer às quartas-feiras e sábados. Mas não acho que se possa subestimar a actriz em si, até porque é muito mais exigente do que se possa pensar uma actriz inteligente, ainda por cima com o seu ar de Barbie, conseguir representar convincentemente uma mulher tonta (aqui uma espécie de Legalmente Loura na sua versão adulta) que vê todas as suas certezas arderem. Ver artigo
Volto a Elena Ferrante, autora publicada pela Relógio d’Água, quase 4 anos depois. Já o afirmei antes: não digo que não seja de modas mas a febre Ferrante (há até um documentário com este nome, como devem saber) nunca me atingiu fortemente. Talvez isso se verifique agora pelo que estarei atento aos sintomas.
Quando li A Amiga Genial no final de 2016, gostei do livro, depois vi a série mas parei logo nos primeiros episódios – nem sei bem porquê, aliás até sei, achava que não tinha lido as partes da história correspondentes aos episódios seguintes, do final da infância da Elena e Lila. Só depois é que me apercebi que a primeira temporada, e cada uma das seguintes, corresponde a cada um dos livros da tetralogia.
Estou agora na página 100 desta História do Novo Nome, título que parece dever-se ao novo nome tomado pela Lila, e à nova identidade que de alguma forma adopta, agora como mulher casada, enquanto que Elena se sente inferior – sempre este complexo de inferioridade em relação à (outra) amiga genial –, amputada, ao sentir que perdeu a amiga que transpôs o limiar de uma vida nova onde ela não tem lugar, e desamparada, sem saber que caminho seguir, chegando ao ponto de descurar os estudos – a sua oportunidade (sempre presente esta dicotomia) entre o bairro e uma vida fora do bairro que só será possível com os estudos. Vou entretanto começar a (re)ver a temporada um, de que apenas tinha visto 2 episódios, voltar a escutar a banda sonora do meu caro Max Richter, e tentar terminar a leitura do segundo volume para passar à segunda temporada desta série da HBO – cada temporada tem 8 episódios. Ver artigo
Pessoas Normais, de Sally Rooney, publicado pela Relógio d’Água, foi considerado o fenómeno literário da década, o melhor romance do ano, Prémio Costa de Melhor Romance 2018, Livro do Ano da cadeia de livrarias Waterstones, nomeado para o Man Booker Prize 2018, Women’s Prize for Fiction 2019 e Dylan Thomas Prize 2019. Posto isto, é normal começar a leitura com um misto de reserva e de entusiasmo (incomoda sempre quando os livros são demasiado etiquetados).
Porque é que a história de Connell e Marianne, dois estudantes que aparentemente apenas estão ligados porque a mãe de Connell faz limpeza na casa de Marianne, uma enorme casa sobejamente conhecida na localidade, terá apaixonado tantos leitores, escritores e críticos?
Sally Rooney nasceu em 1991, uma jovem autora em início de carreira, já com um romance de estreia igualmente premiado e vencedora do Prémio Sunday Times/PFD Young Writer of the Year. Connell e Marianne são, talvez por isso, apresentados na sua humanidade de adolescentes/adultos (a fronteira é sempre ténue na actualidade), como jovens divididos entre a sua reputação perante a comunidade escolar e o passado familiar que carregam consigo – um não sabe quem é o pai e não quer saber; outra foi abusada pelo pai e tratada pela mãe como uma desconhecida. A acção decorre entre 2011 e 2015, período em que conhecem o seu primeiro amor, deixam o liceu para ingressar na universidade e abandonam o seu mundo familiar por novos horizontes, onde podem reescrever a sua história, de forma invertida, em que a popularidade de outrora passa a vulgaridade e a animosidade dos outros alunos de liceu é convertida em sucesso junto dos colegas de universidade.
«Marianne tinha a sensação de que a sua vida real se desenrolava algures muito longe, que acontecia sem ela, e não sabia se alguma vez iria descobrir onde e tornar-se parte dela. Muitas vezes tinha essa sensação na escola, mas sem ser acompanhada de quaisquer imagens específicas do que a vida real pudesse ser ou parecer.» (p. 18)
Connel e Marianne não são jovens vistos em retrospectiva por um olhar adulto, mas sim adultos em potência vistos por um olhar sensível que está muito próximo do seu mundo, e nos transmite como os nossos dilemas de liceu podem, fatalmente, levar a decisões erradas, apenas porque receamos o amor quando este é demasiado afrontoso para os demais, ou porque o ser amado é impopular, demasiado diferente na sua auto-suficiência, ou porque tem o inconveniente de ter nascido com olhos estrábicos e dentes tortos, ou até porque tem inclinações mórbidas, talvez decorrentes da falta de amor. Ver artigo
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone – que optaram recentemente por ir viver com o pai. Casada pela segunda vez. Chama-se Faye – como se descobre quando o seu nome é pronunciado uma única vez, no romance inteiro, perto do final. Está prestes a embarcar numa viagem de promoção da sua obra num festival de literatura na Europa.
Kudos, publicado pela Relógio d’Água, encerra uma trilogia inicialmente publicada pela Quetzal, com A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), e parece inclusive fechar o ciclo começado em A Contraluz pois Faye encontra-se novamente num avião como no início do primeiro livro. Neste conjunto de obras a autora cria um novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Contudo o livro de Rachel Cusk é praticamente impossível de pousar, enquanto assistimos a um desfiar de histórias, sem filtro e sem juízos, sobre a família, a arte, a política, a crítica, a literatura, o futuro da Humanidade, o papel da mulher.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista especialmente a partir do que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever que a obra da autora entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, mesmo sendo ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Quase sem voz, assim como sem corpo, a narradora mais parece uma confidente e que nunca opina, apenas coloca questões que conduzem a linearidade das histórias dos que a cercam.
É sintomática a entrevista que alguém intenta fazer-lhe, em que na verdade a entrevistada nunca fala de si… «Reparara, por exemplo, que muitas vezes era uma simples pergunta a provocar nas minhas personagens proezas no domínio das revelações pessoais e que, como era óbvio, isso o fizera refletir sobre a sua profissão, que tinha como característica central fazer perguntas.» (p. 119) Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, estranhos de passagem, colegas escritores, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos, ainda que se perceba que lança perguntas que encaminham o ritmo dos solilóquios daqueles com que se cruza e através dos quais tece uma reflexão sobre os mais variados temas. Existem diversas situações em que os seus interlocutores são inclusive tratados como narradores e as suas histórias de vida como narrativas, pois como diz alguém: «as vidas das outras pessoas eram um drama que se desenrolava e que evoluía, passando por diferentes fases da existência, como uma telenovela prolongada» (p. 139)
Mas Faye, ou Rachel Cusk, acaba por deixar pequenas indicações de leitura deste seu romance, se o leitor estiver atento, sempre pelo discurso de outrem: «Afirmou que esperava que eu estivesse de acordo com a sua avaliação, uma vez que deduzira da minha obra que, se eu tinha imaginação, tinha o bom senso de a manter oculta.» (p. 151)
Há muito poucos momentos em que ela própria deixa entrever aquilo em que pensa, mas a sua capacidade de observação é sempre arguta, por vezes cáustica, como quando nos descreve o homem a seu lado no avião e que se prepara para lhe contar toda a sua vida: «Tinha quarenta e tal anos, um rosto que era ao mesmo tempo atraente e banal, e a indumentária limpa, bem engomada e neutra de um homem de negócios em fim de semana. (…) Irradiava uma virilidade anónima e ligeiramente provisória, como um soldado de uniforme.» (p. 11) Ver artigo
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