Mitos Gregos Recontados, de Charlotte Higgins, publicado pela Minotauro, com desenhos originais de Chris Ofili, não é um romance. Nos últimos anos, diversos romances, muitas vezes premiados, inspiraram-se nos mitos gregos, e colocam personagens femininas no centro da intriga, como é o caso de O Silêncio das Mulheres, de Pat Barker, ou Circe, de Madeline Miller. Simultaneamente, diversas obras clássicas, como a Eneida, têm conhecido novas traduções e reedições. Neste livro, Charlotte Higgins compila e reconta alguns dos mitos mais falados e relembrados, mas que nem sempre são devidamente relembrados ou compreendidos. Neste “compêndio de mitologia antiga”, a autora reconta os mitos da criação que se centram quase exclusivamente na figura do herói – Héracles, Teseu, Perseu, a guerra de Tróia, Tebas, Argos e Atena. Aqui a autora escolheu que fossem as mulheres a recontar os mitos, evocados justamente a partir da arte da tecelagem, profundamente ligada à técnica narrativa. Por isso mesmo, este livro começa com Atena, pois foi ela quem inventou o tear, e a sua imensa tapeçaria, cujos pormenores nos vão contando as grandes histórias do princípio dos tempos. Numa introdução escrita pela própria autora, entrelaçam-se assim o tear e a teia narrativa, o tecido têxtil e o texto das histórias que nos moldam. Ver artigo
O Canto de Aquiles, de Madeline Miller, foi publicado originalmente em 2011; tornou-se um best-seller na lista do New York Times e foi vencedor do Orange Prize em 2012. Lançado em 2013 pela Bertrand Editora, entretanto esgotado, este romance, com tradução de Judite Jóia, conhece agora uma nova edição pela Minotauro, que em 2020 também publicou entre nós o romance Circe. Igualmente publicado entre nós, recentemente, está o breve conto Galatea, apenas em versão electrónica (ebook), com menos de 15 páginas. Ver artigo
Stefan Zweig deve morrer, de Deonísio da Silva, publicado pela Minotauro (Grupo Almedina), foi publicado em janeiro deste ano. Ver artigo
Se com Pétalas ou Ossos, publicado recentemente pela Minotauro, é o quinto romance de João Reis. Pode ler-se na sinopse: «Um jovem autor português instala-se numa residência para escritores em Seul para escrever o seu próximo romance. Em vez disso, deambula pela cidade com a namorada, possivelmente grávida, e entrega-se a todo o tipo de fait divers mais ou menos absurdos, não obstante a pressão dos editores.» Ver artigo
Circe é filha de uma ninfa e do Deus-Sol Hélio, o mais poderoso dos titãs, capaz de destronar Zeus. Não possui a beleza da mãe nem o brilho do pai, e sente-se deslocada mesmo entre os seus irmãos. Considerada feia, com os seus olhos amarelos e a sua voz incómoda, «guinchenta como a de um mocho» (p. 15), porque é afinal a voz dos mortais, procura calor junto do pai e cedo sente atracção pela fragilidade dos humanos.
«Pensei que era assim que os mortais encontravam a fama. Através da prática e da diligência, tratando das suas competências como de jardins até florescerem sob o sol. Mas os deuses nasceram para o icor e o néctar, pois as excelências irrompiam sem esforço das pontas dos seus dedos. Assim, encontravam a fama provando que conseguiam causar danos: destruindo cidades, começando guerras, criando pragas e monstros. Todo aquele fumo e sacrifícios delicadamente oferecidos nos nossos altares. Só deixam cinzas atrás de si.» (p. 152)
Conforme descobre acidentalmente possuir capacidades fantásticas, capaz de transformar um comum mortal num Deus, ou a ninfa Cila num monstro marinho temível, Circe torna-se receada pelos próprios deuses, e é confinada na ilha de Ea, onde irá apurando os seus dotes.
«Deixem que diga o que a feitiçaria não é: não é um poder divino que se exerce com um pensamento e um piscar de olhos. A feitiçaria tem de ser feita e trabalhada, planeada e procurada, desenterrada, secada, partida e moída, cozinhada, falada e cantada. E mesmo depois de tudo isso pode falhar, ao contrário dos deuses. Se as minhas ervas não forem suficientemente frescas, se a minha atenção se dispersar, se a minha vontade for fraca, as poções ficam estragadas e rançosas nas minhas mãos.» (p. 95 – 96)
Madeline Miller narra prodigiosamente esta efabulação cheia da maravilha dos mitos ao mesmo tempo que humaniza as personagens, capaz de prender o leitor da primeira à última página, especialmente quando por elas vão desfilando personagens da mitologia sobejamente conhecidas, mas aqui recriadas e relacionadas de modo inédito. Sabemos que Circe transformava marinheiros de Ulisses em porcos, que se envolveu amorosamente com Ulisses, mas é-nos ainda revelado como Circe conhece o inventivo Dédalo e o seu filho Ícaro, como ajudou Medeia e Jasão do velo de ouro, como assiste ao parto do abominável Minotauro, no mesmo dia em que conhece Ariadne ainda criança, e como depois da morte de Ulisses acolhe Telémaco e Penélope.
«Raiva e dor, desejo perverso, luxúria, autocomiseração: estas são emoções que os deuses conhecem bem. Mas culpa, vergonha, remorso e ambivalência são territórios estranhos à nossa espécie, que têm de ser cartografados pedra a pedra.» (p. 176 – 177)
Circe nasce neste livro despida do mal e da perfídia, imbuída de uma natureza profundamente feminina (e feminista), revelando-se sobretudo como uma mulher perdida no limbo que medeia a humanidade e a imortalidade, terrivelmente consciente de todos os seus actos, enquanto sente os séculos se escoarem como dias, e os seus dotes mágicos de metamorfose são-nos revelados, afinal, como um acto de autodefesa – não é, afinal, por mero acaso, que esta feiticeira transformará os homens que chegam à sua ilha, cobiçosos e violentos, justamente em porcos.
«Chamava-se noivas às ninfas, mas não era verdadeiramente assim que o mundo nos via. Éramos um banquete infinito posto na mesa, belo e sempre a renovar-se. E tão más a fugir.» (p. 220)
Madeline Miller cresceu em Nova Iorque e em Filadélfia. Frequentou a Brown University, onde obteve o grau de Master of Arts em Estudos Clássicos.
A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (…). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135).
Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga».
Num domingo à tarde, no sul da Califórnia, terra das laranjas, um membro da comunidade aparece na festa de baptizado de Franny Keating, filha de Beverly e Fix Keating, e leva como presente impróprio para a ocasião uma garrafa de gim. Bert Cousins decide aparecer sem ter sido convidado como forma de fugir à confusão do seu próprio lar, onde estão os seus três filhos e a mulher grávida.
A partir deste acontecimento fortuito, aparentemente muito pouco relevante, precipitam-se consequências drásticas na vida de dois casamentos e duas famílias, cujo impacto se arrastará durante cinco décadas. Pois foi também nesse dia que se despoletou uma forte atracção de Bert por Beverly, o que leva a um beijo e depois a um caso entre os dois que anos mais tarde motiva o divórcio dos seus cônjuges, um novo casamento e a sua mudança para a Virgínia, onde os filhos de ambos se passarão a encontrar nas férias de Verão. O destino de seis crianças com muito pouco em comum é assim unido à força, apesar de entre elas não existir qualquer animosidade, embora todas partilhem um ódio reverente aos pais.
Mais tarde, quando Franny, a bebé, se torna uma mulher adulta e se envolve com Leon, um aclamado escritor, ao nível de Roth ou Updike, é a história dos verões da juventude da namorada que irão alimentar o tão aclamado romance que os leitores de Leon há muito aguardavam, romance esse que se intitula justamente Comunidade e dará depois origem a um filme. A autora parece assim explorar a questão da validade ou justiça do aproveitamento da matéria real da vida de algumas pessoas para a criação de uma história que se faz passar por ficção, quando na verdade o que se faz a exposição pública de segredos de família.
O romance está magistralmente narrado, sem tecer juízos ou considerações, deixando a interpretação a cargo do leitor, e construído de modo a deixar pistas de que algo trágico terá ocorrido entretanto mas só ao progredir na leitura é que se poderá juntar a informação em falta. Além disso, a autora nunca procura subsumir a complexidade das personagens de forma ligeira, como na passagem: «A filha do primeiro casamento estava sempre a precisar de dinheiro, na realidade precisava de muito mais do que dinheiro, mas esta era a forma mais fácil de ela expressar as suas necessidades.» (p. 183). Ou como acontece por exemplo com a personagem de Albie, a criança mais nova e particularmente irritante que era drogada pelos irmãos com antialérgicos para que não os incomodasse. Afirma o pai que «É possível relacionar muitos dos problemas daquele miúdo com o nome.» (p. 39), mas se Albie se revela um adolescente problemático, podemos também remontar o que mais tarde acontece e que resulta na morte de uma das crianças como culpa dos pais, como no episódio emblemático do motel, em que os pais decidem dormir até tarde e as crianças ficam por sua conta, decidindo ir a pé até a um lago que fica a 3 km de distância, não sem se fazerem acompanhar de uma arma que estava no porta-luvas do carro cuja porta Caroline consegue destrancar, pois Fix, o pai, ensinara-lhe a destrancar um carro com um cabide de arame.
Uma belíssima narrativa que se pode ler como uma alegoria da família e das relações humanas como elos inquebráveis, mesmo quando apesar dos laços sanguíneos muito pouco os parece unir, e em que uma acção por muito inconsequente que pareça, tem repercussões em todos os outros, mesmo que entretanto se tenham passado cinco décadas, à semelhança de uma liga de países ou aos membros de uma comunidade que se unem apesar das suas (des)identidades distintas.
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