Se com Pétalas ou Ossos, publicado recentemente pela Minotauro, é o quinto romance de João Reis. Pode ler-se na sinopse: «Um jovem autor português instala-se numa residência para escritores em Seul para escrever o seu próximo romance. Em vez disso, deambula pela cidade com a namorada, possivelmente grávida, e entrega-se a todo o tipo de fait divers mais ou menos absurdos, não obstante a pressão dos editores.» Ver artigo
A Escola de Topeka, de Ben Lerner, publicado pela Relógio d’Água no final do ano passado, com tradução de Alda Rodrigues. Considerado como um dos grandes autores contemporâneos, este livro foi finalista do Prémio Pulitzer, vencedor do Los Angeles Times Book Prize e considerado como um dos 10 Melhores Livros do Ano para o New York Times, a revista Time e o Washington Post. Sendo este o seu terceiro romance, Ben Lerner sofre no entanto, entre nós, da desvantagem da sua obra estar traduzida de forma dispersa e talvez por isso quase passar despercebida. O seu romance de estreia Leaving the Atocha Station continua por publicar entre nós. A Teorema publicou 10:04, o seu segundo romance, em 2015, e a Elsinore publicou o ensaio Ódio à Poesia (a poesia é curiosamente ominipresente na obra do autor, na sua prosa poética, bem como nas constantes citações implícitas de poemas). Ver artigo
Andei literalmente a namorar este livro uns anos, até que nestas festas houve finalmente oportunidade de o agarrar – e com a sorte de estar disponível em duas bibliotecas municipais (Faro e Loulé).
A Sexta Extinção, de Elizabeth Kolbert, publicado pela Elsinore em 2014, é uma leitura recomendada por Yuval Noah Harari, Al Gore, Bill Gates e Barack Obama, entre outras personalidades mundiais. Venceu o Prémio Pulitzer, foi finalista do National Book Critics Award, e é considerado um dos livros de divulgação científica mais relevantes dos últimos anos.
Em registo de reportagem, a autora dá-nos conta das suas andanças pelo mundo, combinando resultados de uma extensa investigação no terreno com a apresentação do trabalho de geólogos, botânicos e biólogos marinhos. Este documento inédito é sobretudo um apelo urgente que apresenta como nos encaminhamos inexoravelmente para uma sexta extinção:
«Estima-se que um terço de todos os corais de recifes, um terço de todos os moluscos de água doce, um terço dos tubarões e raias, um quarto de todos os mamíferos, um quinto de todos os répteis e um sexto de todas as aves estejam a caminhar para o extermínio. As perdas ocorrem por todo o lado: no Pacífico Sul e no Atlântico Norte; no Ártico e no Sahel, nos lagos e nas ilhas, no topo das montanhas e nos vales.» (p. 31)
Nesta era que se pode designar como a do Antropocénico, e entre muitos outros aspectos aqui registados, um dos aspectos mais curiosos e preocupantes é, a meu ver, a forma como o ser humano iniciou um processo de remistura da flora e da fauna, que acelerou com a migração humana nas últimas décadas, e provoca que em algumas partes do mundo as espécies não-nativas suplantem as nativas – muitas vezes, extinguindo-as. Calcula-se, por exemplo, que em 24 horas cerca de 10 mil espécies diferentes sejam transportadas pelo mundo nas águas do lastro dos barcos (p. 249). Isto tem implicações inclusivamente nos organismos patogénicos e nos seus novos hospedeiros (veja-se como o coronavírus rapidamente se espalhou por todo o glope, com a nova estirpe originada no Japão já presente em lugares como a Amazónia).
Nos últimos 500 milhões de anos, a Terra passou por cinco extinções em massa, nas quais a diversidade da vida no planeta se reduziu drástica e subitamente. Atualmente, e pela primeira vez na História, decorre um processo de extinção em massa provocado por uma única espécie, o Homem, e é também o Homem, ou alguns deles que aqui ganham voz, que ainda está a tentar combater o tempo.
A Sexta Extinção, de Elizabeth Kolbert, publicado pela Elsinore em 2014, é uma leitura recomendada por Yuval Noah Harari, Al Gore, Bill Gates e Barack Obama, entre outras personalidades mundiais. Venceu o Prémio Pulitzer, foi finalista do National Book Critics Award, e é considerado um dos livros de divulgação científica mais relevantes dos últimos anos.
Em registo de reportagem, a autora dá-nos conta das suas andanças pelo mundo, combinando resultados de uma extensa investigação no terreno com a apresentação do trabalho de geólogos, botânicos e biólogos marinhos. Este documento inédito é sobretudo um apelo urgente que apresenta como nos encaminhamos inexoravelmente para uma sexta extinção:
«Estima-se que um terço de todos os corais de recifes, um terço de todos os moluscos de água doce, um terço dos tubarões e raias, um quarto de todos os mamíferos, um quinto de todos os répteis e um sexto de todas as aves estejam a caminhar para o extermínio. As perdas ocorrem por todo o lado: no Pacífico Sul e no Atlântico Norte; no Ártico e no Sahel, nos lagos e nas ilhas, no topo das montanhas e nos vales.» (p. 31)
Nesta era que se pode designar como a do Antropocénico, e entre muitos outros aspectos aqui registados, um dos aspectos mais curiosos e preocupantes é, a meu ver, a forma como o ser humano iniciou um processo de remistura da flora e da fauna, que acelerou com a migração humana nas últimas décadas, e provoca que em algumas partes do mundo as espécies não-nativas suplantem as nativas – muitas vezes, extinguindo-as. Calcula-se, por exemplo, que em 24 horas cerca de 10 mil espécies diferentes sejam transportadas pelo mundo nas águas do lastro dos barcos (p. 249). Isto tem implicações inclusivamente nos organismos patogénicos e nos seus novos hospedeiros (veja-se como o coronavírus rapidamente se espalhou por todo o glope, com a nova estirpe originada no Japão já presente em lugares como a Amazónia).
Nos últimos 500 milhões de anos, a Terra passou por cinco extinções em massa, nas quais a diversidade da vida no planeta se reduziu drástica e subitamente. Atualmente, e pela primeira vez na História, decorre um processo de extinção em massa provocado por uma única espécie, o Homem, e é também o Homem, ou alguns deles que aqui ganham voz, que ainda está a tentar combater o tempo.
Estilicídio, de Cynan Jones, publicado em Janeiro pela Elsinore, é um livro de belíssima prosa, uma visão inquietante de um futuro não muito distante, que parece vertido a conta-gotas. «Nunca antes ouvi tal palavra. Estilicídio. Queda de água gota a gota.» (p. 66)
São 12 pequenas histórias, com frases concisas, em parágrafos espaçados, quase esparsos, no branco da página, como gotas que vão pingando delicadamente a compor fragmentos de um mosaico. Sem se deter em pormenores, mas desenhando um cenário bastante plausível.
Um livro que foi pensado sobretudo para ser lido na Radio 4 da BBC, pensadas pelo autor como «um conjunto de narrativas interligadas que se reunissem num fundo comum à medida que as histórias fossem vertidas para o papel» (p. 167), para leituras de 15 minutos num programa radiofónico de domingo à tarde.
O tráfego aéreo praticamente desapareceu. O sol aparece pouco. As libélulas são uma das muitas espécies em extinção. O peixe tornou-se algo raro numa rede de pesca. São cultivados jardins verticais ou nos telhados e canteiros de legumes nos terraços. As zonas costeiras estão a ser submergidas pelo avanço da água enquanto os icebergues se soltam da calota de gelo. Paradoxalmente, a Água é um bem escasso, agora conduzida para as cidades em comboios que transportam 45 milhões de litros de água a uma velocidade de 320 quilómetros por hora. Pescam-se icebergues gigantes com arpões como se fossem baleias para serem rebocados até ao centro de cidades mais pequenas para abastecimento de água doce. Famílias desalojadas para o início da construção da Doca de Gelo, cujos canais de escoamento, de estilicídio, se destinam a servir de veículo ao gelo derretido. São pendurados sacos no meio das árvores e arbustos que permitem recolher a água que as plantas respiram; água que pode ser suficiente para fazer um café.
Estilicídio rima ainda com a palavra suicídio – como é o caso da morte próxima da espécie humana, num livro que poderia ser apelidado de uma distopia, não fosse o facto de se tratar de uma «poderosa e urgente visão do futuro» (The Guardian).
São 12 pequenas histórias, com frases concisas, em parágrafos espaçados, quase esparsos, no branco da página, como gotas que vão pingando delicadamente a compor fragmentos de um mosaico. Sem se deter em pormenores, mas desenhando um cenário bastante plausível.
Um livro que foi pensado sobretudo para ser lido na Radio 4 da BBC, pensadas pelo autor como «um conjunto de narrativas interligadas que se reunissem num fundo comum à medida que as histórias fossem vertidas para o papel» (p. 167), para leituras de 15 minutos num programa radiofónico de domingo à tarde.
O tráfego aéreo praticamente desapareceu. O sol aparece pouco. As libélulas são uma das muitas espécies em extinção. O peixe tornou-se algo raro numa rede de pesca. São cultivados jardins verticais ou nos telhados e canteiros de legumes nos terraços. As zonas costeiras estão a ser submergidas pelo avanço da água enquanto os icebergues se soltam da calota de gelo. Paradoxalmente, a Água é um bem escasso, agora conduzida para as cidades em comboios que transportam 45 milhões de litros de água a uma velocidade de 320 quilómetros por hora. Pescam-se icebergues gigantes com arpões como se fossem baleias para serem rebocados até ao centro de cidades mais pequenas para abastecimento de água doce. Famílias desalojadas para o início da construção da Doca de Gelo, cujos canais de escoamento, de estilicídio, se destinam a servir de veículo ao gelo derretido. São pendurados sacos no meio das árvores e arbustos que permitem recolher a água que as plantas respiram; água que pode ser suficiente para fazer um café.
Estilicídio rima ainda com a palavra suicídio – como é o caso da morte próxima da espécie humana, num livro que poderia ser apelidado de uma distopia, não fosse o facto de se tratar de uma «poderosa e urgente visão do futuro» (The Guardian).
Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, publicado pela Elsinore, concretiza verdadeiramente o significado de romance polifónico. As 12 personagens deste romance a várias vozes apenas têm em comum serem mulheres (excepto Mogan que se definirá como não-binária), quase todas negras, a viver no Reino Unido, geralmente lésbicas. Poder-se-ia até procurar eleger como protagonista Amma, a dramaturga cujo trabalho artístico frequentemente explora a sua identidade lésbica negra, até porque é em torno da noite de estreia da sua peça que muitas destas histórias se interligam, quando algumas destas 12 mulheres se reencontram.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020.
Walter Benjamin: Melancolia e Revolução, ensaio publicado pela Editora Exclamação, recentemente distinguido com o Prémio PEN Ensaio 2020 (ex-aequo com João Barrento), resulta da tese de doutoramento de Maria João Cantinho, onde a autora torna claro, numa linguagem límpida e em subtil crescendo – não isenta da «perplexidade» que por vezes o pensamento de Walter Benjamin lhe provoca –, o percurso das «ideias iniciais que constituem o fermento messiânico do pensamento benjaminiano» que conhecem um inopinado desenvolvimento através do contacto com as leituras do materialismo dialéctico e que conduzem ao seu «pessimismo», que «consiste num olhar advertido contra todos os “falsos optimismos” da história (…) que se inspiram na ilusão do progresso».
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos.
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos.
Cláudia Andrade, autora publicada pela Elsinore – editora que discretamente tem vindo a apostar em autores inéditos, novas vozes literárias no panorama literário português numa prosa singular com assinatura de estilo –, venceu recentemente o Prémio Autores 2020 da Sociedade Portuguesa de Autores na categoria de Melhor Livro de Ficção Narrativa, com o seu Quartos de Final e Outras Histórias. Já aqui se escreveu a propósito do seu primeiro romance, Caronte à Espera, recenseado no Cultura.Sul de Julho deste ano. Mas compete-nos agora traçar o furor causado pelo seu livro de contos, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica.
O romance Caronte à Espera é capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, mas convém esclarecer que o livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias é-lhe superior, ainda que os una essa mesma prosa burilada cujas frases se distendem e emaranham, ao jeito das acções das próprias personagens, tão complexas e enigmáticas quanto marginalmente desamparadas. Estas 18 histórias distendem-se ora num sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, como é o caso de «O Exilado», o conto mais extenso desta colectânea. O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta-nos a história de uma noiva desesperada, no dia do casamento, por chamar a atenção do seu noivo, mais preocupado com ver os quartos de final do campeonato de futebol, até que decide entrar numa das casas-de-banho com um dos empregados. Sabemos que a noiva traz consigo uma lâmina com a qual se corta, mas não nos é inteiramente revelado como no desfecho dessa história o casamento acaba em sangue. E assim, logo na primeira história deste livro, o leitor é deixado no fio da navalha, enquanto nele se sucedem momentos de vida de protagonistas tão díspares quanto excluídos. A existência murcha destas personagens apenas parece palpitar fugazmente com vida quando dilaceradas por certas pulsões, viscerais como o sexo, intensas como a paixão, capazes de toldar de vermelho «o seu interior» (p. 119), num mosaico de histórias quase sempre desconcertantes: uma prostituta que recebe num sofá na berma de uma estrada e se liberta ao salvar uma cadela abandonada; uma moribunda que da cama, no prenúncio do seu estertor final, lança diatribes reveladoras dos mais infames segredos das mulheres que em seu redor oram por ela; um violador de viúvas e que depois de ter provado um menino por acidente, decide agarrar um anjo; um poeta que leva uma vida sem máculas nem pecados e por isso decide reescrever com algum acto incauto a sua futura biografia, para que não seja demasiado sensaborona. Estas personagens e situações têm, entre si, muito pouco em comum, mas compõem indubitavelmente um universo tão insólito quanto fracturante numa ficção que rasga o véu da vida, essa «marcha ridiculamente longa» (p. 108), e abala qualquer desejo de conforto num leitor que procure nestes contos uma prosa fácil, delicodoce, que embeleze a vida, nalgum compasso de espero de fuga ao mundo. A escrita desta autora coloca o dedo na ferida, num mundo muito pouco tranquilizador, descrito, a dada altira, como um «grotesco circo» (p. 61), capaz de suscitar revolta «contra a natureza das coisas. Não há nada de claro ou justificado nesta trapalhice universal, nenhuma coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro inferno, tão redundante em relação a este» (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, o insólito anda a par e passo do absurdo da existência humana, entre homens que esfacelam anjos e viúvas que ocupam as mãos para evitar serem visitadas pelo fantasma do marido. A existência, para a qual somos catapultados, arrancados «a um muito confortável nada», é, afinal, uma «camarazinha de horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta a «fazer um outro morto para nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo pós-expressionismo pictórico, o mundo, como a vida que nele pulula, pode também revelar-se um prodígio, onde até os objectos quotidianos podem perder a sua domesticidade, «removida a patina de quotidianidade», ganhando vida própria e «interesse novo ao olhar» (p. 117). Até a vida pode ganhar ambiência fantasmática, como acontece no funeral de «As Mãos»: «A natureza esmerava-se em participar no espírito da coisa: o dia estava frio, pálido e pétreo. Assim que o cortejo começou, uma névoa leitosa começou por mover-se rente ao chão, apagando as pernas e dando a todos a impressão de que flutuavam. A certa altura, a névoa subiu, esfumando as arestas das coisas, depois adensou-se e submergiu tudo.» (p. 94)
Pode ler-se em «O Exilado» como «o escritor» «pegava nessa coisa insossa e informe que era a vida e a decantava no laboratório da memória, do raciocínio e da boa vontade poética, para conseguir sentir um amor às coisas que seria impossível enquanto confrontado com elas, para delas conseguir espremer então qualquer coisa sobre a qual valesse a pena escrever» (p. 113). São particularmente curiosos os contos desta compilação que mais se debruçam sobre a arte da escrita, em que pode o leitor querer deslindar uma explicação possível para o espírito que anima estas páginas, como em «Requerimento» onde se pode ler como o autor dessa carta «inadvertida e compulsivamente» levou a tarefa de pensar «demasiado a sério e, à custa de observar, ponderar e coleccionar tanto e tão circunstanciado absurdo, matéria-prima do mundo, tomei amor ao desalento e arruinei a minha alegria para sempre» (p. 60). Podíamos até rematar que a prosa de Claúdia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto» que «deambularam por ruelas escuras em sofrimento pelas suas obras, esfolaram os narizes contra as paredes da labiríntica e incerta intuição literária. Era uma obra sólida, a sua, densa e trapalhona como a vida» (p. 117).
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora ainda do livro de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), considera-se sobretudo contista, embora esteja a trabalhar num segundo romance.
O romance Caronte à Espera é capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, mas convém esclarecer que o livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias é-lhe superior, ainda que os una essa mesma prosa burilada cujas frases se distendem e emaranham, ao jeito das acções das próprias personagens, tão complexas e enigmáticas quanto marginalmente desamparadas. Estas 18 histórias distendem-se ora num sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, como é o caso de «O Exilado», o conto mais extenso desta colectânea. O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta-nos a história de uma noiva desesperada, no dia do casamento, por chamar a atenção do seu noivo, mais preocupado com ver os quartos de final do campeonato de futebol, até que decide entrar numa das casas-de-banho com um dos empregados. Sabemos que a noiva traz consigo uma lâmina com a qual se corta, mas não nos é inteiramente revelado como no desfecho dessa história o casamento acaba em sangue. E assim, logo na primeira história deste livro, o leitor é deixado no fio da navalha, enquanto nele se sucedem momentos de vida de protagonistas tão díspares quanto excluídos. A existência murcha destas personagens apenas parece palpitar fugazmente com vida quando dilaceradas por certas pulsões, viscerais como o sexo, intensas como a paixão, capazes de toldar de vermelho «o seu interior» (p. 119), num mosaico de histórias quase sempre desconcertantes: uma prostituta que recebe num sofá na berma de uma estrada e se liberta ao salvar uma cadela abandonada; uma moribunda que da cama, no prenúncio do seu estertor final, lança diatribes reveladoras dos mais infames segredos das mulheres que em seu redor oram por ela; um violador de viúvas e que depois de ter provado um menino por acidente, decide agarrar um anjo; um poeta que leva uma vida sem máculas nem pecados e por isso decide reescrever com algum acto incauto a sua futura biografia, para que não seja demasiado sensaborona. Estas personagens e situações têm, entre si, muito pouco em comum, mas compõem indubitavelmente um universo tão insólito quanto fracturante numa ficção que rasga o véu da vida, essa «marcha ridiculamente longa» (p. 108), e abala qualquer desejo de conforto num leitor que procure nestes contos uma prosa fácil, delicodoce, que embeleze a vida, nalgum compasso de espero de fuga ao mundo. A escrita desta autora coloca o dedo na ferida, num mundo muito pouco tranquilizador, descrito, a dada altira, como um «grotesco circo» (p. 61), capaz de suscitar revolta «contra a natureza das coisas. Não há nada de claro ou justificado nesta trapalhice universal, nenhuma coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro inferno, tão redundante em relação a este» (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, o insólito anda a par e passo do absurdo da existência humana, entre homens que esfacelam anjos e viúvas que ocupam as mãos para evitar serem visitadas pelo fantasma do marido. A existência, para a qual somos catapultados, arrancados «a um muito confortável nada», é, afinal, uma «camarazinha de horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta a «fazer um outro morto para nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo pós-expressionismo pictórico, o mundo, como a vida que nele pulula, pode também revelar-se um prodígio, onde até os objectos quotidianos podem perder a sua domesticidade, «removida a patina de quotidianidade», ganhando vida própria e «interesse novo ao olhar» (p. 117). Até a vida pode ganhar ambiência fantasmática, como acontece no funeral de «As Mãos»: «A natureza esmerava-se em participar no espírito da coisa: o dia estava frio, pálido e pétreo. Assim que o cortejo começou, uma névoa leitosa começou por mover-se rente ao chão, apagando as pernas e dando a todos a impressão de que flutuavam. A certa altura, a névoa subiu, esfumando as arestas das coisas, depois adensou-se e submergiu tudo.» (p. 94)
Pode ler-se em «O Exilado» como «o escritor» «pegava nessa coisa insossa e informe que era a vida e a decantava no laboratório da memória, do raciocínio e da boa vontade poética, para conseguir sentir um amor às coisas que seria impossível enquanto confrontado com elas, para delas conseguir espremer então qualquer coisa sobre a qual valesse a pena escrever» (p. 113). São particularmente curiosos os contos desta compilação que mais se debruçam sobre a arte da escrita, em que pode o leitor querer deslindar uma explicação possível para o espírito que anima estas páginas, como em «Requerimento» onde se pode ler como o autor dessa carta «inadvertida e compulsivamente» levou a tarefa de pensar «demasiado a sério e, à custa de observar, ponderar e coleccionar tanto e tão circunstanciado absurdo, matéria-prima do mundo, tomei amor ao desalento e arruinei a minha alegria para sempre» (p. 60). Podíamos até rematar que a prosa de Claúdia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto» que «deambularam por ruelas escuras em sofrimento pelas suas obras, esfolaram os narizes contra as paredes da labiríntica e incerta intuição literária. Era uma obra sólida, a sua, densa e trapalhona como a vida» (p. 117).
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora ainda do livro de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), considera-se sobretudo contista, embora esteja a trabalhar num segundo romance.
Depois de História da Violência (recenseado no Cultura.Sul), narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis conta a violação e violência de que foi vítima, chega-nos agora, novamente pela Elsinore, Quem Matou o Meu Pai: uma breve narrativa sobre a complexa relação do autor/narrador com o pai, como uma carta em que pretende acertar contas com a memória dele, chegando a conclusões conforme escreve, falando sempre do pai no passado, porque no presente já não o conhece…
E ainda que esta autoficção contenha aspectos que já surgiam no seu livro anterior – onde o autor afirma, a dada altura, como os estudos superiores foram uma consequência da sua fuga, quando compreende que esse seria o único caminho possível que lhe permitiria afastar-se socialmente do seu passado familiar –, a relação intertextual que mais ressalta é com Regresso a Reims, de Didier Eribon (Dom Quixote), um ensaio onde a escrita autobiográfica também se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
E ainda que esta autoficção contenha aspectos que já surgiam no seu livro anterior – onde o autor afirma, a dada altura, como os estudos superiores foram uma consequência da sua fuga, quando compreende que esse seria o único caminho possível que lhe permitiria afastar-se socialmente do seu passado familiar –, a relação intertextual que mais ressalta é com Regresso a Reims, de Didier Eribon (Dom Quixote), um ensaio onde a escrita autobiográfica também se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
Com Édouard Louis o reencontro com o pai, e o seu próprio eu-criança, acontece mais a tempo, apesar de o pai estar já muito debilitado: «Já não podes conduzir, já não te é permitido beber álcool, já não consegues tomar banho ou ir trabalhar sem correres um enorme risco. Tens pouco mais de 50 anos. Pertences àquela categoria de seres humanos a quem a política reserva uma morte precoce.» (p. 12)
(…)
A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa, tal como no seu livro anterior, e fala-nos agora de outro tipo de violência, essencialmente verbal: a que o pai exerceu sobre ele, como forma de o tornar mais masculino.
(…)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Cláudia Andrade é a mais recente aposta da Elsinore, editora que discretamente tem vindo a apostar em novas vozes literárias, como João Reis ou Raquel Gaspar Silva, mas sobretudo em autores que além de inéditos trazem uma nova voz ao panorama literário português, uma assinatura de estilo na sua prosa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Caronte à Espera é uma narrativa breve, que não ultrapassa as 130 páginas, mas capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, possivelmente até capaz de voltar ao início do livro para o reler. A prosa é burilada, em frases que se distendem e emaranham, um pouco como as acções das próprias personagens que são tão complexas e enigmáticas quanto desamparadas. Há aliás uma passagem do livro que parece relevar isto mesmo: «Não vejo motivo para contar a vida com a pressa insensível com que somos obrigados a vivê-la» (p. 66).
(…)Cláudia Andrade é a mais recente aposta da Elsinore, editora que discretamente tem vindo a apostar em novas vozes literárias, como João Reis ou Raquel Gaspar Silva, mas sobretudo em autores que além de inéditos trazem uma nova voz ao panorama literário português, uma assinatura de estilo na sua prosa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Caronte à Espera é uma narrativa breve, que não ultrapassa as 130 páginas, mas capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, possivelmente até capaz de voltar ao início do livro para o reler. A prosa é burilada, em frases que se distendem e emaranham, um pouco como as acções das próprias personagens que são tão complexas e enigmáticas quanto desamparadas. Há aliás uma passagem do livro que parece relevar isto mesmo: «Não vejo motivo para contar a vida com a pressa insensível com que somos obrigados a vivê-la» (p. 66).
Artur, o protagonista, reformou-se há um ano e vive agora entediado e desinteressado da vida, como se percebe logo no início do romance quando a mulher lhe pousa em cima o álbum de fotos do seu casamento: «Artur carecia tanto da força para suportar como para repelir a eterna repetição daquele ritual» (p. 7) Quando ao oitavo dia da sua reforma, e sétimo dia de treino desde que se determinou a ficar em boa forma física, Artur se vê conduzido numa ambulância por se lhe ter prendido uma virilha, fica dado o mote para a narrativa pícara da vida deste pobre coitado que na própria semana em que decide suicidar-se rapidamente vê gorados os seus recentes planos de morte ao descobrir numa foto do álbum de casamento, visto e revisto, um rosto que se distingue entre os familiares pela «não-familiaridade dos traços, o ar de eslava anemia, a aura de poeta no desemprego» (p. 10). É nesse instante-revelação que Artur é acometido por uma visão que lhe dá novo ímpeto, levando-o a dirigir as suas intenções numa nova direcção ao longo de toda a narrativa, da mesma forma que aí inicia esta narrativa que é afinal o conto dessa viagem, que implicará sair de casa e deixar a mulher. Viagem iniciática, rito de passagem, que inicia com essa demanda quixotesca de Artur – um pouco ao jeito dos Cavaleiros arturianos da Távola Redonda –, mas sempre sujeita aos revezes da ironia do destino, como quando finalmente se decide a apanhar o metro, decisão laboriosamente descrita que desemboca no risível, e depois se dá a revelação, ao sair para a plataforma, de que Artur afinal viajara no sentido errado.
A indefinição e indecisão de Artur estende-se inclusivamente às dúvidas que este nosso antiherói, e o leitor com ele, tem sobre a sua sexualidade. Mas a saga atribulada de Artur pode ser lida sobretudo como uma alegoria da condição humana, em que predominam símbolos quer literários quer míticos. Além do nome Artur, temos Beatriz, a sua mulher, cujo nome é quase indissociável daquela outra mulher-anjo que conduziu Dante ao Inferno e ao Paraíso, mas que para este Artur representa apenas o tédio e fastio da vida doméstica de casado. Existe depois um homem que parece tornar-se o amante de Artur, mas que pode ser tão somente o lado sombrio da sua consciência. Há duelos entre o bem e o mal, representados por anjos. E há as inevitáveis referências literárias, como é o caso de Artur ler Morte em Veneza (e tal como a personagem central do livro vive obcecado na busca de um homem que é também um ideal de beleza) enquanto o seu novo amigo, Ivan, lê Margarita e o Mestre (que narra a visita do Diabo à cidade de Moscovo). Conforme tudo isto se desenrola, Caronte é deixado numa espera, como o próprio título indica, enquanto Artur tão depressa se decide a morrer como depois esbraceja para se agarrar à vida, sendo, por isso, bom para “chamar a morte”, dada a sua lentidão e indefinição. Mas esse ajuste de contas com o passado, desencadeado por um belo desconhecido numa foto, torna-se afinal um ajuste de contas com a vida.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora dos livros de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), e Quartos de Final e Outras Histórias, finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa. A autora considera-se sobretudo contista, embora esteja já a trabalhar num segundo romance, e antes de ser lida em Portugal foi inicialmente publicada no Brasil.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora dos livros de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), e Quartos de Final e Outras Histórias, finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa. A autora considera-se sobretudo contista, embora esteja já a trabalhar num segundo romance, e antes de ser lida em Portugal foi inicialmente publicada no Brasil.
Sete Casas Vazias, de Samanta Schweblin, da Elsinore, é um pequeno livro de contos, tão breves quanto tensos, deixando o leitor com o coração na boca. Sete contos, a condizer com o título, que pouco parecem ter em comum, não fosse o vazio destas personagens, confinadas às suas pequenas casas, enredadas nos seus muros de insegurança. Mas mesmo entre quatro paredes, nessas casas onde «com apenas três passos largos atravesso a sala, saio de casa e fecho a porta» (p. 112), estas personagens, mulheres, raramente se sentem seguras. Nessas sete casas vazias, despidas de sentimento, apesar dos objectos, dos móveis, das estantes e louceiros arrumados nos seus lugares, atravancando as vidas de quem ali dorme. Quarenta centímetros quadrados de espaço para viver, pois quando as casas são demasiado grandes perde-se o controlo sobre elas, essas casas despojadas de emoções e vibrações humanas, onde a vida é absorvida numa voragem e se cava um abismo profundo como a morte. Vidas vazias de quem não tem sequer alguém para quem morrer, de seres cuja existência nem enche uma caixa. Essas habitações vivas com a sua própria respiração, onde o vazio ressoa como um vácuo e ameaça tragá-las: «ouviu um som rouco atrás de si. Silencioso, mas percetível para ela, que estava alerta e conhecia o seu espaço. Voltou a ouvi-lo, desta vez vinha do teto, e ouviu outra vez, muito mais perto, rodeando-a totalmente. Ia e vinha, como um ronco áspero e profundo, como a respiração de um grande animal dentro de casa.» (p. 87) O seu estado, esse «insólito estado de alerta» (p. 112) que atravessa as personagens, é também o sentimento com que o leitor vira as páginas, quase a medo, pois predomina, conto a conto, um «receio que alguma coisa se quebre irremediavelmente» (p. 117). Sete narrativas cuja intriga é sempre enigmática, insólita, quase nunca clarificada.
Samanta Schweblin, cujos livros de contos e romances estão publicados na Elsinore, nasceu na Argentina, em 1978, e é uma das vozes mais originais da literatura contemporânea em língua espanhola. Sete Casas Vazias e Pássaros na Boca (2018) venceram prémios internacionais como Casa de las Américas e Juan Rulfo, e em 2017 esteve entre os finalistas para o Prémio Internacional Man Booker com o romance «Distância de Segurança» (2017), a ser adaptado a série pela Netflix.
Samanta Schweblin, cujos livros de contos e romances estão publicados na Elsinore, nasceu na Argentina, em 1978, e é uma das vozes mais originais da literatura contemporânea em língua espanhola. Sete Casas Vazias e Pássaros na Boca (2018) venceram prémios internacionais como Casa de las Américas e Juan Rulfo, e em 2017 esteve entre os finalistas para o Prémio Internacional Man Booker com o romance «Distância de Segurança» (2017), a ser adaptado a série pela Netflix.
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Março 2025
- Fevereiro 2025
- Janeiro 2025
- Dezembro 2024
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016
Etiquetas
Akiara
Alfaguara
Annie Ernaux
Antígona
ASA
Bertrand Editora
Booker Prize
Bruno Vieira Amaral
Caminho
casa das Letras
Cavalo de Ferro
Companhia das Letras
Dom Quixote
Editorial Presença
Edições Tinta-da-china
Elena Ferrante
Elsinore
Fábula
Gradiva
Hélia Correia
Isabel Rio Novo
João de Melo
Juliet Marillier
Leya
Lilliput
Livros do Brasil
Lídia Jorge
Margaret Atwood
New York Times
Nobel da Literatura
Nuvem de Letras
Patrícia Reis
Pergaminho
Planeta
Porto Editora
Prémio Renaudot
Quetzal
Relógio d'Água
Relógio d’Água
Salman Rushdie
Série
Temas e Debates
Trilogia
Tânia Ganho
Um Lugar ao Sol