O escritor angolano Pepetela, vencedor do Prémio Camões em 1997, é o escritor homenageado na edição deste ano do festival literário Escritaria, em Penafiel.
A 11.ª edição do Escritaria vai decorrer de 1 a 7 de outubro e ficará ainda assinalada pelo lançamento do novo livro de Pepetela. O autor angolano, de seu verdadeiro nome Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, licenciado em Sociologia, foi guerrilheiro, político e membro do MPLA, professor universitário em Angola, membro da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos, e tem publicado romances regularmente desde 1978.
A Dom Quixote publicou em Setembro 3 livros do autor: a 7.ª edição de Yaka (1985), a 12.ª edição de Jaime Bunda, Agente Secreto (2001), uma paródia a James Bond, e Sua Excelência, de Corpo Presente, o seu mais recente romance que chega hoje, dia 25 de Setembro, às livrarias. Reza a sinopse que: «Num enorme salão cheio de flores, deitado num caixão forrado a cetim branco, jaz um ditador africano. Está morto, mas vê, ouve e pensa. Vê os que lhe foram prestar uma última homenagem (ou certificar-se de que morreu), ouve as suas conversas e sussurros, e pensa… (…) O novo romance de Pepetela é também uma crítica mordaz ao abuso de poder e aos sistemas de governo totalitários disfarçados de democracias.» Ver artigo
O mais recente romance de Salman Rushdie (autor publicado pela Dom Quixote) foi lançado menos de um ano depois da eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos da América e consegue ainda assim fazer uma parábola da América Moderna. Rushdie ter-se-á mudado em 1999 para os Estados Unidos e já no anterior romance, Dois Anos Oito Meses e Vinte e Oito Noites, se podia ler uma reflexão paródica do que significa viver na América nos dias de hoje. Contudo, nesse título que brinca com As Mil e Uma Noites, a intriga era claramente fantasiosa, misturando heróis com mitologia, sob forte influência do cinema e da banda-desenhada.
A Casa Golden inicia «No dia da tomada de posse do novo presidente» (p. 13) e a acção decorre sensivelmente nos oito anos subsequentes de administração Obama. O narrador é René Unterlinden, um jovem de 29 anos, cineasta (e as referências ao cinema desmultiplicam-se, bem como a linguagem cinematográfica utilizada em diversos momentos). René narra assim, em mais de 400 páginas, o momento em que Nero Golden e os seus três filhos chegam aos Estados Unidos, oriundos de um país não nomeado se não no final do romance, mas fácil de identificar como sendo a Índia. Este «rei destronado de setenta e tantos anos» que ocupa o palácio Golden traz ainda um «cheiro inconfundível do perigo rude e despótico» (p. 13), como perceberemos melhor no final do romance, quando finalmente se percebe a origem da riqueza do magnata que, entretanto, soçobra sozinha numa América ela própria em decadência, e sobrevive à morte sucessiva dos seus três filhos.
Salman Rushdie está certamente no auge da sua pujança, com este romance ambicioso e denso, que foca temas tão díspares como a transexualidade, a emigração ou as alterações climáticas, com diversos ecos e referências musicais, literários, cinematográficos (também apontado como uma espécie de O Grande Gatsby), mas que infelizmente também se pode tornar uma leitura pesada que desafia o leitor comum.
Na segunda metade do romance, começamos a pressentir os ventos de mudança, conforme proliferam as referências ao novo candidato, designado como Joker: «As origens do Joker eram objeto de controvérsia; o sujeito parecia gostar de deixar que houvesse versões contraditórias a competir pelo espaço aéreo, mas em relação a um facto toda a gente, apoiantes apaixonados e acirrados antagonistas, estava de acordo: ele era completamente louco, a precisar de ser internado. O que era espantoso, o que tornava esta eleição tão diferente de todas as outras, era o facto de as pessoas o apoiarem pelo facto de ele ser louco, e não apesar disso.» (p. 281) Ver artigo
Este é o mais recente romance da autora de As Viúvas das Quintas-Feiras, sucesso aclamado por José Saramago e Rosa Montero. A autora, nascida em Buenos Aires em 1960, é escritora, dramaturga e guionista.
A primeira parte do livro alterna, capítulo a capítulo, entre um discurso na primeira pessoa, depois de a narradora hesitar justamente se deve ou não narrar na primeira ou na terceira pessoa a história que nos revela, até porque entretanto ela própria se tornou uma outra, e uma memória recorrente, que vai sendo desfiada gradualmente, até termos um quadro completo ou, melhor dizendo, a cena completa do que se passou há vinte anos na vida de Marilé Lauría. A mulher que Marilé foi antes, na Argentina, chama-se agora Mary Lohan, identidade que assumiu quando fugiu para Boston. Essa mulher, que também foi outrora María Elena Pujol, perdeu peso, mudou de penteado e usa agora lentes de contacto, para ocultar a sua verdadeira cor de olhos. Mas as lentes castanhas que Mary Lohan usa estão constantemente a resvalar, sempre que entra em confronto com o passado ao qual decidiu regressar, numa atitude optimista, mas muito a medo, de o poder resolver. E algo tão simples pode ser uma ameaça à revelação da sua verdadeira identidade, se bem que no final não é pelos seus olhos azul-celeste que a identificam…
Há uma trama de thriller psicológico que lembra Hitchcock, ao mesmo tempo que nos são dadas pistas para o que se passou na vida da protagonista, como quando esta invoca títulos de livros que por algum motivo captaram a sua atenção, como As Horas, de Michael Cunningham.
Neste romance, dividido em três partes (sendo que a segunda parte constitui uma anamnese), a autora consegue de forma magistral abordar o profundamente doloroso, com a sensibilidade certa para tratar assuntos que, indevidamente abordados, resvalariam no ridículo ou na apatia por parte do leitor. Note-se aliás como em toda a narrativa, a autora passa qualquer hipótese de julgamento ou opinião crítica para o leitor, sem nunca se tecer juízos de valor em relação à escolha efectuada pela protagonista, pois afinal Mary Lohan apenas tem uma pequena sorte na vida, que se revela em pequenas benesses, talvez porque teve já um grande azar…
É ainda um livro fortemente metaficcional, conforme a narradora, professora de Espanhol e Literatura, parece reflectir ao mesmo tempo que ganha coragem para narrar, pois é aliás por escrito que tanto a protagonista como o seu filho acabam por se desvelar e aproximar: «Não vou a correr procurá-lo, não vou a correr abraçá-lo, nem chorar com ele, nem sequer para que ele me insulte. Antes disto, devo-lhe uma explicação. E uma explicação não pode ser dada no meio de choros ou de insultos, nem de abraços. Uma explicação, ou pelo menos esta, precisa de muitas palavras, demasiadas, de todas as que eu não disse durante os anos de ausência que ocorreram entre nós. Por isso, faço o que tenho de fazer: fechar-me em casa a escrever.» (p. 104) Ver artigo
Paolo Cognetti nascido em Milão em 1978 é um dos escritores italianos mais aclamados pela crítica e apreciado pelos leitores. As Oito Montanhas (2016) foi o primeiro romance do autor publicado em Portugal, no ano passado. Escrito com «o fólego de um clássico», esse livro tem ecos de outros grandes que subiram a montanhas para se tornarem maiores do que a vida, e talvez por isso esteja também dividido em três partes mais ou menos correspondentes às três fases de vida de um homem. Em O rapaz selvagem, o segundo romance do autor, um relato da sua vida na montanha entre o autobiográfico e o romanceado, Paolo, que nunca se designa, embora narre na primeira pessoa, tem trinta anos e sente-se sem rumo ou esperança quando decide partir para a montanha, inclusive na esperança de voltar a escrever. O autor cita recorrentemente outros escritores modelos, como Walden, de Thoreau, que optaram por abandonar a civilização para se poderem encontrar a si próprios.
A montanha neste livro é portanto mais do que a neve onde se pode esquiar, as escarpas que alpinistas desafiam, que os caminhantes trepam ou onde alguns pastores ainda sobrevivem no seu modo de vida. Há no ar rarefeito, frio e árido das montanhas, onde nem o solo é cultivável, quem encontre um modo de vida e prefira viver no silêncio e na solidão do recato de uma maneira de ser perdida nos tempos.
É também na montanha que se dá o desencontro e o reencontro com o pai e com os que serviram de figura tutelar a Paolo, enquanto ele procura descobrir o sentido da sua própria vida, mesmo quando esse destino implica virar costas a tudo o que se conheceu, ou acabar por se perder irremediavelmente…
Um belíssimo livro, de escrita leve e intimista, que nos mostra ainda como há lugares que vivem apenas na nossa infância e de como as memórias que ficam são demasiado aguçadas para serem confrontadas com as realidades que desmoronam face ao brilho de um passado que não volta mas está sempre vivo no nosso íntimo. Ver artigo
Se a metáfora de “a vida é um palco” já se torna batida, aqui a vida é uma noite de stand-up comedy.
Num livro talvez desconcertante ao início, o leitor levará algum tempo a familiarizar-se com uma narrativa que discorre na primeira pessoa, durante uma performance, pontuada por analepses, em que se alterna ainda entre o discurso do artista, a descrição das acções que se sucedem ininterruptamente e o pensamento, aliado ao seu rememorar, de Ashai Lazar, o protagonista. A própria vida é aqui vista e repensada como uma performance, em que os nossos actos podem voltar no futuro para nos confrontar ou, como acontece a certa altura com o artista durante a sua performance, há a franca possibilidade de darmos bofetadas em nós próprios. Aquilo que parece um espectáculo sem nexo, quando ouvimos um artista em palco que tanto pretende fazer rir o público, como de repente se esquece e se põe a relembrar e recontar a sua vida, pode ainda ser interpretado como uma alegoria dos tempos actuais, em que tudo aquilo que fazemos é colocado em foco, como se estivéssemos ou nos imaginássemos perante um palco (com um certo egotismo e narcisismo, como nas selfies que inundam as redes sociais), dignos da atenção do mundo inteiro pelos gestos mais banais.
O artista pretende gozar com tudo e o público continua a rir, mesmo quando se sente incerto ou mesmo incomodado pelas piadas que versam inclusivamente a doença ou a morte, como se na vida tudo fosse risível ou talvez seja o riso a única salvação e a melhor forma de relativizar. Mas o humorista também corre naturalmente o risco de se tornar anedota…
A dada altura, Ashai Lazar, o protagonista, especialmente convidado pelo artista a comparecer, até porque ele é um juiz (e quem melhor do que um juiz para julgar a sua performance?) sente-se mesmo tocado por esta performance de stand-up comedy como há muito tempo a arte não o fazia sentir: «Como é que a sua verborreia histérica e as suas piadas irritantes tiveram sobre mim o mesmo efeito que a luz estroboscópica sobre os epilépticos, precipitando-me mais e mais para dentro de mim, para a minha vida?/E como é que ele, no seu estado, fez por mim aquilo que nenhum dos livros que li, dos filmes que vi ou das consolações que os meus amigos e parentes me ofereceram fizeram nos três últimos anos?» (p. 87)
O texto ganha assim laivos metaficcionais, na medida em que se pensa a si próprio e reflecte sobre a literatura. É curioso aliás que este juiz ainda por cima seja autor de textos ou sentenças incisivas e mais ou menos cuidadas literariamente: «Pensei nas minhas sentenças, cuja mínima frase polia e limava e nas quais de vez em quando – de uma forma obviamente discreta e sem pretensões – introduzia alguma metáfora florida, citação de um poema de Pessoa, Kavafy ou Nathan Zach, ou até alguma imagem poética da minha autoria.» (p. 75) Ver artigo
(agora quase recuperado da doença, e atropelado por trabalho, é altura de regressar à actividade e para isso nada melhor que ler um grande romance de uma grande dama da literatura portuguesa) Se Os Memoráveis encerrava um ciclo, iniciado com a obra de estreia sobre a Revolução de Abril, O Dia dos Prodígios, e fechado com esse trabalho de reconstrução ou resgate da memória da Revolução em Os Memoráveis, então este Estuário pode bem marcar uma nova fase na escrita da autora, como se pode ler na passagem: «Então, alguém teria de escrever esse livro, um livro que fosse, ao mesmo tempo, o último do passado e o primeiro do futuro.» (p. 15)
Se em O Vale da Paixão, o sentimento era de diáspora, e havia uma casa abandonada assombrada pelos passos desiguais dos seus poucos ocupantes, em Estuário, apesar do título dar a entender que há um desaguar ou um fluir, do rio para esse «mar oceano», o sentimento é de retorno, pois os vários filhos do pai Galeano regressam a casa.
Este é um novo marco, estou certo, na obra da autora e que nos prepara para o fluir de um novo ciclo. Ver artigo
Luísa Costa Gomes, nascida em Lisboa em 1954, licenciada em Filosofia, professora, directora da revista de contos FICÇÕES, gosta de dispersar a sua escrita pelas mais variadas áreas, do teatro ao conto, da crónica à tradução e legendagem, da mesma forma que gosta de alternar a escrita de um romance com outras tarefas. Sob a chancela da Dom Quixote, este é o mais recente romance da autora, quatro anos depois de Claúdio e Constantino (2014), e cerca de dois anos depois da reedição revista de A Vida de Ramon (1991, reeditado em 2016), curiosamente um texto de carácter hagiográfico, um romance biográfico sobre Ramon Llull, místico e missionário nascido em Maiorca, que viveu entre 1232 e 1316 e percorreu o mundo, do Mediterrâneo a África e à Ásia.
Florinhas de Soror Nada conta a vida de Teresa Maria, nascida no seio de uma família burguesa na segunda metade do século XX, que perante um pai distante e uma mãe incrédula vai afirmando a sua vontade em ser santa: «São Francisco jejuou quarenta dias, e ela não pode saltar o jantar?» (p. 33)
Ler esta narrativa é como ouvir uma reza, tal o ímpeto da linguagem que corre escorreita, límpida, musical, coloquial, por vezes com arcaísmos. Há ainda uma profusão de vocabulário religioso, como convém a uma hagiografia ou narrativa de vida de santo, mas quase sempre aplicado com humor. Igualmente marcante é a ironia da autora, por vezes com um sentido crítico mais cáustico, enquanto procura retratar a natureza contraditória desta criança que se quer santa (note-se o subtítulo A Vida de Uma Não-Santa), ao mesmo tempo que critica os religiosos, nomeadamente os padres, e os mitos e tabus.
«[Teresa Maria] Reconhece-se na indiferença com que as paroquianas recebem a indigna invectiva, um encolher de ombros perante as tais e quais birras do padre; elas bem sabem que não pecaram, não têm o hábito de pecar, não porque não queiram, ou não possam, mas na aldeia a oportunidade raramente se apresenta. Vivem ambas num dia-a-dia de caldos e cuidados, de quando em vez há um pensamento menos caridoso, um afundar-se no desespero, mas de passagem, ao fim da tarde, antes da solidão da noite, que dormem dum sono só.» (p. 125)
A ironia e o humor pautam a escrita da autora, se bem que neste livro haja uma intenção mais vincada que por vezes aproxima o livro da sátira. É emblemático o episódio em que Teresa arranca a orelha da estátua, como quem leva uma relíquia…
Teresa Maria mostra um excesso de autoconfiança que é aliás o que lhe permite desafiar mesmo a família, que aliás pouca importância lhe dá, quando toma a peito a sua vocação ou o ofício de ser santa. Tal como outros exemplos bem documentados da história das hagiografias, não se pense que a santidade de Teresa Maria nasce sem mácula. Pelo contrário, é depois do pecado, isto é, das brincadeiras sexuais que tem com Rafael, filho da criada de casa, que Teresa Maria mais acirradamente procura redimir-se.
A autora brinca com a linguagem da mesma forma que desmonta dogmas, enquanto narra a história de uma jovem que tão depressa tem brincadeiras exploratórias sexuais com Rafael (com nome de anjo) como depois corta o cabelo à tesourada ou põe cinzas na comida. A infância desta jovem é desfiada num rosário lento e espaçado, para depois no fim a narrativa ganhar novo fôlego e ímpeto, enquanto passa em revista a idade adulta e a terceira idade da protagonista, como se a consciência da vivência do tempo fosse mais lata quanto mais pequenos somos e menos vida acarretamos.
A autora parece ainda explanar o modo como na infância a vocação ou o sentido de missão é muito mais forte, mas conforme se dá a sua imersão na vida mundana e quotidiana, a «Idade Média», Teresa Maria é cada vez menos uma Teresa de Ávila e cada vez mais uma Maria, uma mulher sofredora, pois mesmo escapando ilesa aos martírios de santos, sobre os quais discorria com um certo contentamento sádico em criança, torna-se evidente como a vida humana é bastante difícil por si só, sem o estigma da diferença:
«Sofrer ou morrer, cumprindo o lema de Teresa em Ávila? Teresa que se aguentasse em Ávila, era forte e façanhuda, tinha a sua própria ambição de vir a figurar no calendário. Mas ela não. Não, assim não.» (p. 134)
Perto do final do romance, no último capítulo justamente intitulado «Vida», lê-se em cerca de quarenta páginas a súmula de toda a vida da protagonista, ficando o leitor a saber que se casou, teve filhos, e netos, e adoeceu, sem grande encantamento ou marcos assinaláveis que distingam a vida dessa mulher de outra qualquer. É também nesse momento que é mais fácil para o leitor simpatizar ou criar empatia com as vivências da protagonista. Mas também assistimos ao modo como em Teresa Maria, no decurso da sua vida, há um decréscimo da fé, em particular após o «Sermão à Ranhosa», ao ponto de renegar completamente a sua paixão de outrora por Deus, enquanto paradoxalmente aumenta o seu apetite pelo vinho.
A narrativa estende-se numa via sacra de 13 capítulos, se bem que chegando ao fim, é como se estivéssemos já mergulhados na leitura de um outro livro, tão forte é o cisma que se sente numa segunda parte da narrativa, com a mudança de paradigma por parte de Maria Teresa, quando aos 97 anos se prepara para morrer. Chegados ao final do livro, retoma-se o que lemos no início, num género de prólogo, onde se pressentia a desconexão de uma mente perdida, próxima da demência ou do esquecimento: «A morte já passou, falta morrer.» (p. 12) Ver artigo
Os Memoráveis, romance de Lídia Jorge (publicado em 2014 pela Dom Quixote) que constitui «Uma revisitação literária aos mitos fundadores da Revolução e da Democracia» passa a fazer parte da Colecção Essencial – Livros RTP, um projeto cultural concebido pela RTP em parceria com a LeYa, sob curadoria do editor Zeferino Coelho.
Ao ler Os Memoráveis prevalece a agradável sensação de um quase retorno ao “extra-ordinário” dos primeiros dois romances da autora, com uma aura fantástica, ou melhor, de realismo mágico. Em 2014, a autora concedeu uma entrevista ao Cultura.Sul e relembramos agora algumas das suas próprias palavras para chegarmos «ao coração do coração da fábula».
Quando em 2000 o suplemento literário do jornal Público, então designado «Leituras», solicitou
A situação que inspirou este romance foi, em parte, a forma como cinco jovens escritores portugueses, com menos de trinta e cinco anos, que escreveram textos tendo por mote a revolução, acabaram todos por evitar o assunto, pois a revolução de 1974 parecia ser-lhes alheia.
A autora declara ter havido um processo de pesquisa, embora não sistemático, acumulando ao longo dos anos vários dados, como livros, artigos, documentários, entrevistas. Fez inclusive várias entrevistas e o contacto com determinadas figuras confirmava a sua ideia: «Era preciso escrever sobre o “Olhar de Ulisses” português.»
Este romance não se pode definir como um romance historiográfico, pois o que interessava à autora era escrever «sobre o momento da História em que os dados reais se transfiguram em lenda. Trata-se de um livro sobre uma mitologia. Escrevi sobre factos irreais para tentar atingir a realidade.»
Lídia Jorge habituou-nos, nos seus romances, a uma jovem que vê o mundo com uma certa ingenuidade ou inocência, muitas vezes perdida no final. Ana Maria, a Machadinha, como o próprio nome indica, revela-se uma surpresa na sua galeria de personagens, pois é uma mulher aparentemente fria, calculista, que desde o início do romance indicia não revelar tudo o que sabe (parecendo deixar a inocência para Margarida Lota). Este foi um processo consciente, pois essa figura ambígua fazia falta, como alguém que visse o mundo de forma lúcida e ao mesmo tempo amasse a realidade tal como esta se afirma.
Esta é provavelmente das obras da autora aquela que tem uma leitura mais fluída, quase ininterrupta, onde a linguagem é reduzida ao osso, ao essencial, num registo muito próximo da oralidade. Ver artigo
Ler este livro é como ler um esboço de Cem Anos de Solidão. Gabriel García Márquez, em Viver para Contá-la, não refere este autor italiano, nascido em Pisa (1943-2012), como uma das suas leituras de formação, mas este romance de estreia de Tabucchi lembra muito o realismo mágico de Gabo. Na Praça de uma aldeia toscana junto ao mar, onde se vive o tempo de uma nação, assiste-se ao cair da monarquia e ao erigir da democracia, com duas guerras pelo meio. A acção dá-se em saltos, onde o capítulo seguinte tanto pode retomar o fio da narrativa, como nos levar para o futuro ou para o passado, enquanto no decurso de três gerações, com nomes como Garibaldo, Quarto, Volturno, ou Melchior, passamos de avô para filho para pai, sendo que os próprios nomes das personagens se repetem em estranhas revivescências, numa família que «troca as voltas ao tempo» (p. 87). O tema do duplo está ainda implícito no patriarca Plínio que tem duas vezes gémeos.
E tal como acontecia na Macondo dos Buendía, os acontecimentos mágicos invadem toda a aldeia, pelo que quando uma bomba estilhaça todas as janelas da aldeia, é mais natural assumir que estas se libertaram das dobradiças e partiram em voo como um bando de gansos selvagens. Como se indica logo no início esta é uma «Fábula popular em três tempos, um epílogo e um apêndice», escrita em 1973 e publicada dois anos depois.
O livro começa pelo fim para depois nos levar novamente até ao princípio, sem perder a capacidade de chocar com um fim anunciado e com a surpresa de uma reviravolta anunciada apenas no final e que confirma como os horóscopos não são fáceis de enganar mesmo que se adiem os prognósticos.
António Tabucchi ensinou em várias universidades de Itália, publicou 27 livros, entre o romance, o ensaio e contos, escreveu um romance em língua portuguesa, Requiem (1991), traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa, que é também protagonista de Os últimos três dias de Fernando Pessoa (incluído numa reedição de 2015 que integra três pequenas obras), em que se narra a morte de um dos nossos maiores poetas. A sua obra tem sido cuidadosamente reeditada pela Dom Quixote, como aconteceu com a belíssima edição do livro sobre os Açores, Mulher de Porto Pim (2016), com capa dura e em pequeno formato.
Hoje, dia 10 de Abril, a Dom Quixote publica ainda Autobiografias Alheias, um livro que aparenta ser uma auto-reflexão sobre algumas das principas obras do autor e que dá continuidade a alguns dos principais temas tabucchianos. É curiosa a coincidência, uma vez que na Fundação Calouste Gulbenkian, a vida e obra de Antonio Tabucchi estão em destaque, seis anos após a sua morte.
A exposição «Tabucchi e Portugal» está patente de 8 de Abril a 7 de Maio, com dois dias de intenso debate, um filme, um documentário, leituras musicadas e ainda uma exposição iconográfica e documental que compreende manuscritos, documentos, fotografias e outros objetos do acervo familiar do autor, bem como de excertos de entrevistas suas a Maria João Seixas ou Mega Ferreira. Ver artigo
Não posso, antes de escrever sobre o livro, deixar de recordar uma amiga que me dizia que nunca, em várias tentativas, conseguiu persistir na leitura de A Montanha Mágica, pois a partir da página 100, e consoante a descrição do ambiente no sanatório se torna mais vívida, esta minha amiga é acometida por insistentes ataques de tosse numa qualquer reacção psicossomática que acabou por criar aversão ao livro.
Mas não quero com esta história, um pouco solta, desdourar o prazer desta leitura.
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas no âmbito da arte, literatura, cinema, com alguns contos e outros romances publicados, sendo finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017 com este livro, publicado pela Dom Quixote.
Na senda de outros autores recentemente apresentados, a autora cruza ficção com não-ficção, ensaio com documento, ciência com literatura, e inicia esta narrativa numa voz que enganosamente se assume na primeira pessoa, como um tuberculoso de vinte e três anos. Contudo logo em seguida a narrativa é quase toda feita a partir de um narrador externo, desfiando a história de uma família portuguesa na primeira metade do século XX, composta por três irmãos. Mas este eu que surge logo no início do romance, percebemos que é afinal Armando, que mais tarde dará entrada no Grande Sanatório do Caramulo, o que não pode deixar de evocar a memória de Hans Castorp de Thomas Mann naquela que é uma das obras-primas da literatura mundial. Entretanto, este narrador na primeira pessoa refere, recorrentemente, uma «rapariga» que visitou «ruínas» e «coleciona histórias de tuberculosos» (p. 16), rodeada de páginas de documentos e ensaios, como o da «ideia romântica da tuberculose e os escritores portugueses que foram suas vítimas» (p. 16). A autora entretece a narrativa com um levantamento da tuberculose, um dos principais flagelos da época, ao mesmo tempo que faz uma apreciação sucinta da forma como a doença afectou escritores portugueses e brasileiros da altura, que padeceriam dessa doença ou seriam tocados pelas suas asas. Revivificam-se nestas páginas nomes como António Nobre ou Júlio Dinis.
Para complicar um pouco mais, a narrativa está ainda pontuada por considerações histórias de como a doença foi sendo considerada ao longo do século, conforme o conhecimento sobre o seu diagnóstico e cura ia evoluíndo, com particular destaque para as citações extensas de um texto intitulado «Considerações sobre a morte, alinhavadas por R. N.» – note-se as iniciais, idênticas às do apelido da autora.
A autora disserta em torno desta «peste branca», a «doença que todos receavam» (p. 92), considerando como inclusivamente a tuberculose era muitas vezes vista, de início, como uma melancolia ou um torpor que acometia sobretudo os mais sensíveis, como poetas e escritores.
«A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.» (p. 92)
A doença da tuberculose, ainda sem tratamento médico e farmacológico adequado, representa um mal maior, permitindo à narrativa efectuar um diagnóstico político e social de Portugal. Este romance, onde a febre se reveste de significados distintos, e causas diversas, como a da paixão ou a do fibrilar de uma mente mais sensível, mas sobretudo como sintoma de doença, é um retrato de uma época e de um país doente, mesquinho por vezes, apesar de se ter fechado em si para evitar flagelos exteriores como a Segunda Guerra, sob o jugo do punho forte ou tirânico de Salazar, que era aliás uma visita regular do Sanatório do Caramulo. A Guerra Civil de Espanha e a Segunda Grande Guerra, aliás, traziam para a serra portuguesa «tuberculosos abastados dos grandes sanatórios europeus» (p. 102), sendo a Madeira outro espaço eleito para a cura desta doença.
Mas não se pense que se sai destas páginas com sintomas de tosse convulsa ou de algum sentimento de finitude secular mais adequado à morbidez ultra-romântica. Sai-se sim com a confirmação de que esta jovem autora é uma das novas vozes a reter na literatura portuguesa contemporânea. Ver artigo
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