Haruki Murakami, autor japonês, supostamente eterno candidato ao Nobel, continua a habituar os seus leitores ao ritmo mais ou menos regular de um livro por ano, todos publicados pela Casa das letras.
Se há fãs que sofrem de uma verdadeira febre de Murakami, a envolvência com que o narrador nos envolve (a narrativa é contada na primeira pessoa) acusa muito mais o próprio prazer que Murakami parece ter em escrever e perder-se nas suas próprias histórias. O ritmo lento e em crescendo na forma como apresenta as personagens, as suas rotinas, a música que ouvem para se poderem ouvir pensar (ou jazz ou música clássica), o ambiente estranhamente melancólico em que o fantástico incorre nunca se sabe bem por que frincha, a hipnose de uma leitura que rapidamente se torna viciante, são alguns dos aspectos com que Murakami nos seduz. E se um livro seu parece ser sempre um eco do anterior, a verdade é que nada será igual.
Neste livro aliás parece que a certa altura estamos a ler sobre a própria narrativa de Murakami:
«Quando a passamos em revista, a nossa vida parece realmente estranha e misteriosa, recheada de coincidências inacreditáveis e desenvolvimentos imprevisíveis e fantásticos. À medida que se desenrolam, torna-se difícil identificar o que têm de bizarro, por mais que olhemos com atenção. Imersos na rotina, essas coisas parecem normalíssimas e perfeitamente naturais. Apesar de não fazerem sentido, o tempo encarrega-se de lhes conferir coerência.» (p. 75)
A Morte do Comendador está repartido em dois volumes e o segundo sai já no dia 12 de Março, pelo que ainda vai a tempo de ler este para depois devorar o seguinte, num intriga que gira em torno de um quadro, de uma ópera e de misteriosas visitas por parte de uma figura anã saída do quadro. O autor é traduzido entre nós a partir do inglês por Maria João Lourenço (agora com uma ajuda) e publicado pela Casa das letras, numa tradução que, tem de ser dito, para muitos leitores peca por não respeitar o original ao incorrer no uso (ainda que agora mais contido) de expressões da gíria portuguesa. Contudo, acto contínuo, os livros de Murakami são sempre intrigantes e difíceis de pousar. Ver artigo
Considerando o que tenho lido nos últimos dias em torno da adaptação indevida de João Botelho a partir do romance O Corsário dos Sete Mares, obra que ainda não li, embora tenha lido a Peregrinação, obra que trabalhei para a monografia de licenciatura sob uma perspectiva espiritual, inicio a leitura do mais recente romance da autora, num singelo gesto de apoio.
A acção deste ambicioso e portentoso romance histórico decorre entre 1617 e 1667, sendo esse período de crise de identidade nacional, em que Portugal é governado por Espanha, perspectivado a partir de quatro figuras emblemáticas. A autora escolhe quatro personalidades históricas que estão mais ligadas à literatura do que à História, se bem que noutros tempos, a literatura e a cultura também faziam a História: o poeta proscrito, Brás Garcia Mascarenhas; a professa Violante do Céu; D. Francisco Manuel de Melo; e o Padre António Vieira.
A própria autora escreveu ainda numa dedicatória pessoal que esta é a sua «obra mais trabalhosa, nos moldes das Cortes na Aldeia», de Francisco Rodrigues Lobo. A estrutura formal desse romance sente-se principalmente na forma como se pontua a narrativa com «Diálogos», em que várias personagens dialogam entre si. Este romance histórico pode ainda ser lido na sequência de D. Sebastião e o Vidente.
Em «sintonia com a intriga», a autora escreve ao estilo da época, mas num português que é ainda assim perfeitamente perceptível, com uma estrutura frásica que permite uma leitura fluída, sem peias nem aleijões.
Deana Barroqueiro nasceu nos Estados Unidos da América mas veio para Portugal aos dois anos de idade. Licenciada em Filologia Românica, foi professora de Língua e Literatura Portuguesa e Francesa, e naquela que é já uma vasta carreira como romancista, em que a História é sempre a sua principal musa e protagonista, a autora não se coíbe ainda de visitar escolas e espaços culturais. Mais recentemente, João Botelho adaptou a sua obra O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto, a propósito do filme Peregrinação, obra-prima da literatura de viagens que pelos vistos não leu, tendo-se antes socorrido do romance de Deana Barroqueiro como forma de melhor recontar a história do aventureiro e explorador português. Ver artigo
A Casa das Letras continua a publicar na íntegra a obra do autor japonês Haruki Murakami, regressando agora ao registo do conto. Homens sem mulheres reúne sete contos do autor publicados originalmente no Japão entre 2013 e 2014, que não são propriamente breves, de fôlego curto, mas lêem-se muito bem e fazem-nos regressar ao usual universo onírico do autor. É por vezes difícil destrinçar entre autor e narrador, nomeadamente na forma como se assume a narrativa na primeira pessoa em diversos contos, além de o narrador se assumir quase sempre como um escritor, que interpela directamente o leitor, ou proprietário de um bar, como Murakami foi em tempos. A riqueza das histórias aqui reunidas parece advir dos relatos que esses narradores vão recolhendo: «Ao saber que eu era escritor, Tokai começou a revelar-me a pouco e pouco a sua faceta mais intimista. Talvez pensasse que, à imagem e semelhança dos terapeutas e dos padres, os escritores têm o legítimo direito (ou o dever) de ouvir o que os outros sentem necessidade de confessar.» (p. 103). A voz do narrador e, por vezes, a do autor são aqui claramente assumida, o que aliás só faz sentido uma vez que assim que se começa a ler Murakami em conto ou em romance é fácil sentirmo-nos puxados para esse estranho mundo familiar que se equilibra de forma periclitante, tensa, entre o onírico e o fantástico e dados que poderiam ser realistas mas que nunca são claramente objectivos. Entretecem-se assim referências comuns ao autor – literárias, cinéfilas – e, claro, a música, sempre essencial à sua escrita, do jazz ao pop, também pontuada por algumas referências clássicas, pois a música «tem o condão de ressuscitar a vivacidade das lembranças, ao ponto de fazer doer» (p. 86). Além do universo estranho que Murakami cria, onde não falta um conto inspirado em A Metamorfose de Kafka, em que o inusitado não é Gregor Samsa acordar como um insecto gigante mas sim como um jovem humano.
Homens sem mulheres, como o título deixa adivinhar, são também sete histórias de amor e desamor, quase sempre dominadas pela solidão destes sete homens, vítimas do luto ou da separação ou da saudade de uma mulher: «ao recordar a época em que eu tinha vinte anos, o que vem à tona é a minha solidão. Não tinha namorada para me aquecer o corpo e o coração, nem um amigo no qual pudesse confiar. Não sabia o que fazer dos meus dias, era incapaz de imaginar o que o futuro me reservava. Estava quase sempre fechado na minha concha, ao ponto de passar uma semana sem falar com ninguém.» (p. 86)
Como a Xerazade do seu conto, acerca de Murakami poderemos dizer um dia que se ignora «se as histórias eram reais, se não passava tudo de pura invenção, ou se era uma combinação das duas. Realidade e efabulação, observação e sonho pareciam inextricavelmente ligados, e raramente era capaz de as destrinçar.» (p. 129-130). Ver artigo
Este é talvez o livro mais intrigante (e para alguns poderá ser desconcertante) que li recentemente desta nova e jovem voz da literatura portuguesa, finalista do Prémio Leya, publicado pela editora casa das Letras, mas com outros romances já publicados e com colaboração assídua na imprensa de crónicas e artigos.
Sem querer adiantar algumas das surpresas do livro para não tirar a devida surpresa ao leitor podemos começar por situar a acção num tempo incerto, numa localidade rural onde se sente a primitividade de tempos remotos, que mais tarde saberemos ser na noite de 2 de Fevereiro de 1893, anos antes da morte do rei D. Carlos e do fim da monarquia.
O início do livro lembra um romance gótico ou, na tradição portuguesa, um episódio de Montedemo, de Hélia Correia, quando a população da aldeia sai em peso armada de forquilhas e archotes para expurgar um pecado hediondo, sempre nomeado mas nunca explicado até vários capítulos depois, fazendo justiça pelas suas mãos como forma de expulsar o Diabo das suas terras. A voz narratorial ou a forma como a autora escolhe narrar a história é um dos pontos fortes do livro. No primeiro capítulo, quando nos vemos apanhados numa míriade de vozes em catadupa, onde o leitor toma conhecimento da acção através da corrente de consciência das personagens, e do seu discurso tantas vezes entrecortado e interrompido, o narrador quase parece desaparecer, deixando o palco a esta polifonia de vozes que constituem a aldeia – o que lembra essa quase ausência de voz narratorial em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Por isso mesmo proliferam certos arcaísmos de uma linguagem que se procura mais popular, mas em que prosa é ainda assim muitas vezes poética: «Movem-se os archotes, mais altas do que as chamas as vozes. Movem-se os archotes, e as chamas como que ferem a lua.» (pág. 20). Poderemos ler mais à frente sobre a «noite em que tomaram varapaus e foices, tochas e carqueja, em que se moveram com robustez de passos e com as vozes em tão grande arruído, as vontades como uma só e toda sanha» (pág. 50).
Mas são as personagens de Ana e do padre Engrácio, ausentes dessa turba de «coração empedernido», que se destacam no romance, justamente porque irão salvar do fogo duas crianças, fruto do pecado. Ana e o padre são-nos assim apresentados como figuras de bondade e rectidão, ainda que se movam entre mundos muito distintos: «Disse o padre Deus é grande e depois Rómulo e Remo. O quê, senhor padre? indagou a Ana. Nada que seja importante dar-te a conhecer agora, nem nunca. O padre tem noção de que a sabedoria da Ana lhe vem do coração, dos sentidos e da experiência e que em nada lhe acresceria ter acesso a erudição, conhecer um mito da fundação de Roma para quê?» (pág. 26). E estes mundos tão apartados, que são essa ciência de se ser homem ou mulher, são uma constante ao longo do romance, nomeadamente na forma como o homem é mais virado para a força bruta enquanto a mulher vive de pressentimentos e de conhecimento íntimo que lhe chega do coração. É o caso de Ana, parteira que nunca perdeu uma criança, que vive de uma sabedoria interior e de pressentimentos, ou da Brites parteira e curandeira. Contudo as mulheres são também capazes de crueldade, «piores do que os homens, pois muito entre si pelejavam de língua», como a Ascensão: «uma mulher de maus fígados e de coração enfaixado em liações de crueldade, o Álvaro Bouça é um pau-mandado da mulher, todos o sabem. É ele o regedor, mas é ela que o incita, que lhe sussurra ao ouvido, como a serpente a Eva, todas as decisões que ele deve tomar.» (pág. 35). Talvez não seja por acaso que Ascensão é descrita como sendo de «modos pouco de mulher» e um «ventre seco», à semelhança de Jesuína Palha, essa mulher varonil que em, uma vez mais, O Dia dos Prodígios é quem tem a coragem e a força para matar a cobra voadora, símbolo do pecado, sendo aqui Ascensão quem incitou a população a deitar fogo à casa na orla da floresta onde estavam as duas crianças, e quem depois incita a matar a cadela prenhe, por ser uma lembrança do pecado que tentaram extirpar pelo fogo. O Diabo é assim uma figura omnipresente no romance, cujo rasto se pode encontrar nas mais diversas aberrações, como é o caso do Carrocinha que nasce com «marca da coisa ruim», «mostrengo que nascera de cópula com Satã», mas que a mãe consegue salvar à sanha de uma outra aldeia, mas sem nunca lhe dar um nome.
Nos capítulos seguintes, onde o narrador passa muitas vezes à primeira pessoa, os anos vão-se sucedendo, e a perspectiva vai oscilando de uma personagem para outra, dando conta de como a aldeia parece ter-se esquecido do sucedido, com a consciência aparentemente tranquila ou, como diz o padre Engrácio, «a hipocrisia dos homens é aquilo que melhor os define. Pessoas que vão à missa e que aparentam virtude afinal não passam de sepulcros caiados.» (pág. 51).
Quinze anos depois, coincidentemente no ano da morte do rei e da monarquia (ainda que este fundo histórico seja sempre pouco relevante), chegamos finalmente até Laura e Lourenço Duchamp, no capítulo 6.1 (haverá depois um capítulo 6.2 que dá conta de um romance bipartido a partir daqui entre estes dois protagonistas, como duas metades que se completam, a narrar directamente o que lhes sucedeu), as crianças salvas ao fogo por Ana e o padre e que foram baptizados e entregues a orfanatos distintos. O pecado continua presente, nomeadamente na vida de Laura enclausurada num asilo, protegida dos «vícios que vêm de fora» pois «o mundo é casa do demónio»: «À noite despimos a bata, o vestido e o corpete para vestirmos uma camisa também grossa e longa, parda, (…) claridade não permite que nos vejamos umas às outras, (…) olhar-se e olhar as outras é pecado» (pág. 122).
Somos introduzidos por Ana na segunda parte (e metade) do romance quando dezasseis anos depois regressa ao local do sucedido para, nos capítulos seguintes, recuarmos até ao princípio da história e conseguir perceber afinal esse mistério que se foi adensando desde as primeiras linhas do romance e ainda não desvendado, acompanhando Jacques Duchamp, um desertor do exército francês, pouco depois do cerco de Almeida e pouco antes de Fevereiro de 1811. O narrador é agora omnisciente e leva-nos por vezes a certas prolepses que o confirmam, além de ganhar uma certa ironia que lembra por vezes o jeito de Saramago: «a felicidade não apresenta dados interessantes para deles se fazer história» (pág. 179).
A linguagem é cada vez mais carregada de sentido, conforme o desfecho se aproxima, e prende cada vez mais o leitor que se sente agora puxado para uma alegoria sobre o amor (e que me lembra não sei bem porquê o mito do andrógino) e uma história que é afinal cheia da força do mito; as terras da casa outrora consumida pelas chamas são recorrentemente descritas como sendo o paraíso; António, que parece personificar o mito do bom selvagem, pois era um doutor de leis mas procura um meio de vida mais primitivo e vive como pastor pois um «homem preso a leis é um homem triste»; um gémeo que nasce filho único e desde aí é perseguido por uma saudade e uma solidão incompreensíveis aos olhos de todos (o que lembra este tema explorado na obra de João de Melo, autor açoriano, em Gente Feliz com Lágrimas ou no conto «O gémeo e a sombra»); a mesma solidão que acompanhará Laura e Lourenço; até que regressam finalmente, conduzidos unicamente pelo destino, mas avassalados pelo reconhecimento, à terra e à casa de onde foram arrancados para poder sobreviver, até chegarem a essa paisagem perto da qual corre um ribeiro de águas «tão puras como se apenas a mão do Criador as tivesse tocado num gesto inicial», sob um «céu rosa-laranja-azul como o do início dos tempos», na «primordialidade de um nascer inteiro».
Paula de Sousa Lima é certamente uma nova voz narrativa a descobrir melhor. Ver artigo
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