Escreve George Steiner que
«A música é a força anárquica que subverte a razão humana e o domínio sobre si da psique. Por isso, ela constitui uma ameaça direta à disciplina moral e mental, indispensável à ordem privada e cívica. Ela estimula e exalta de maneiras que escapam às economias da emoção às quais um governo adulto deverá almejar. (…) Lenine temia a possibilidade de que a Appassionata de Beethoven pudesse desviar a sua determinação blochevique das necessárias inclemências. A sublimidade wagneriana assume um papel de destaque na imagem que o Reich de Hitler almejava dar de si próprio.» (Fragmentos, pág. 51).
O novo romance de Julian Barnes, e que é grande literatura, como proclama José Mário Silva, trata justamente disso: de como a música transcende noções chãs como a razão humana, a disciplina, sistemas políticos, ordem e autocracia.
Apesar de Chostakovich (procurar também como Shostakovich que é a grafia mais comummente utilizada) reflectir diversas vezes na impossibilidade de a música expressar ironia ou sarcasmo – algo que Julian Barnes faz muito bem nesta sua prosa – a música é ainda assim algo de indefinível e que, ainda que possa ter servido para encantar as massas, sendo aproveitada ou subvertida por certos regimes como o soviético, neste caso, não deixa de ser superior ao ruído do tempo.
Em janeiro de 1936, Estaline sai intempestivamente da estreia de Lady Macbeth de Mtsensk, no Teatro Bolshoi, em Moscovo, o que naturalmente perturba extremamente o compositor ao ponto de preparar uma mala e passar a esperar no patamar da sua residência por quem sai do elevador, sempre na expectativa de ser arrastado pela polícia política. Curioso o início do romance, em que a própria mancha gráfica de parágrafos curtos e muito espaçados, dá conta dos pensamentos soltos da personagem de Chostakovich que já está à espera há 3 horas frente ao elevador, e a certa altura o narrador designa a «cacofonia de sons na cabeça dele» como «ruídos». Dois dias depois da malfadada estreia o jornal Pravda lança uma crítica com o título «Chinfrim em vez de Música», que pode até ter sido escrita pelo próprio Estaline – a técnica para identificar quando era o «Grande Lider e Timoneiro» a escrever ele próprio os artigos ou críticas era quando estes não tinham sido depurados de erros ortográficos, pois naturalmente ninguém se atreveria a corrigi-los.
Num romance tripartido sobre a vida do compositor mais celebrado pela União Soviético, mas nem por isso sem um grande custo para a sua própria alma e dignidade, Julian Barnes faz uso da corrente de consciência, mas sempre na 3.ª pessoa, levando-nos através dos pensamentos do protagonista, primeiro numa anamnese, apresentando-nos fragmentariamente a sua vida até à noite da estreia de Lady Macbeth de Mtsensk. Depois ir-se-á detendo na forma como Chostakovich tenta continuar a sua vida e obra depois de cair em desgraça para logo voltar a cair nas boas graças do regime, mesmo que isso implique ir-se anulando gradualmente, ao ponto de ler em público discursos que não escreveu e que já nem se preocupa em ler previamente: «E esse foi talvez o triunfo final que lhe impuseram. Em vez de o matarem, permitiram-lhe viver e, permitindo-lhe viver, mataram-no. Era a derradeira, irrefutável ironia da sua vida: permitindo-lhe viver, mataram-no» (pág. 190).
Julian Barnes escreve com mestria, com uma fina ironia. E ressalve-se que a ironia, mesmo que não possa ser aplicada à música, é afinal uma arma de defesa e de ataque contra o totalitarismo e a opressão. Se bem que Chostakovich chega a usar a ironia nas suas conversas com as figuras do regime que continuamente o pressionam subtilmente a fazer o que se espera dele. Por vezes retratando os seus actos e a sua vida com autocomiseração, outras vezes tentando ainda assim manter a dignidade, Chostakovich é perseguido pelo fantasma da pessoa que desejava ser, tendo sido obrigado a gestos nojentos, nas suas palavras, como assinar uma carta pública contra o romancista Soljenítsin: «Uma parte dele tinha esperança de que ninguém acreditasse – ninguém podia acreditar – que concordava realmente com o que as cartas diziam. Mas as pessoas acreditavam. Amigos e colegas músicos recusavam apertar-lhe a mão, voltavam-lhe as costas. Havia limites para a ironia: não podemos assinar cartas enquanto tapamos o nariz ou fazemos figas atrás das costas, confiando que os outros adivinhem que não queremos dizer aquilo.» (pág. 179).
Mas se Chostakovich conforme nos aproximamos do fim considera que aprendeu sobre a destruição da alma humana, também nos deixa uma nota de esperança, um acorde capaz de perdurar:
«O que podemos construir contra o ruído do tempo? Só essa música que está dentro de nós – a música do nosso ser -, que é transformada por alguns em música real. Que, ao longo das décadas, se for suficientemente forte e verdadeira e pura para afogar o ruído do tempo, se transforma no murmúrio da História.» (pág. 138).
Por vezes a escrita é tão sublime que parece aproximar-se do ensaio filosófico ou literário, como um manifesto político ou do que é a vida e a arte face às adversidades impostas pelo tempo em que vivemos: «A arte pertence a toda a gente e a ninguém. A arte pertence a todo o tempo e a nenhum tempo. A Arte pertence àqueles que a criam e àqueles que a usufruem. A arte já não pertence ao Povo e ao Partido, tal como já deixara de pertencer à aristocracia e ao mecenas. A Arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo. A Arte não existe pela arte: existe pelas pessoas» (pág. 104).
Este é decididamente um romance cinco estrelas a não perder!
Ok,rendido, apesar de Shostakovich praticamente só ouvir com maior frequência a sinfonia n.º 7, conhecida por Leninegrado, costumo adorar quando a boa literatura se debruça sobre a música e músicos, como por exemplo em Doutor Fausto de Mann ou Proust no sua Busca do Tempo Perdido.
Por isso já vou anotar este livro para as próximas aquisições.
Foi-me hoje recomendada a Sinfonia n 10 por um jovem violoncelista de Amesterdão. Rendido! E nota-se de facto o carácter bélico da música, ao serviço do regime claro.