«O amor, dizem, escraviza, a paixão é um demónio e muitos se perderam por amor. Eu sei que isso é verdade, mas também sei que, sem amor, andamos às cegas no túnel das nossas vidas e nunca vemos o Sol.» (p. 199)
Jeanette Winterson, nascida em Manchester, em 1959, é professora de Escrita Criativa na Universidade de Manchester e uma das vozes mais originais da literatura inglesa surgida nos anos 80. Depois de Frankissstein (já aqui apresentada), a Elsinore publica A Paixão, que catapultou a autora para o sucesso, considerada pela crítica internacional uma das obras de relevo da literatura contemporânea, em que subverte o género do romance histórico, explorando temas caros à autora, como o sexo e a identidade de género. A narrativa, na primeira pessoa, decorre por volta de 1805, reparte-se em 4 partes e entre 2 personagens: na primeira parte, conhecemos Henri, de 20 anos, cozinheiro de Napoleão, um criado privilegiado e especial que escreve os seus diários, um soldado cuja paixão pelo seu líder se converte em ódio, ao fim de 8 anos de serviço, e de constantes fracassos; na segunda parte, temos Villanelle, uma veneziana de cabeleira ruiva, que usualmente se disfarça de rapaz, se apaixona por outra mulher, e perde o seu coração numa aposta de jogo; a última parte alterna entre ambos.
A paixão é o motor do mundo e o móbil destas personagens, inclusive dos figurantes, como Napoleão: «Ele estava apaixonado por si próprio e a França aderiu a essa paixão. Foi uma ventura amorosa. Talvez todas as paixões sejam assim: não um contrato entre partes iguais, mas uma explosão de sonhos e desejos que não se realizam na vida quotidiana. Só um drama se presta a tanto e, enquanto durar o fogo-de-artifício, o céu terá uma cor diferente. Ele fez-se imperador.» (p. 25)
Paixão é o vocábulo recorrente na narrativa, constantemente redefinido: «Qualquer coisa que fica entre o medo e o desejo sexual» (p. 79). A paixão carnal, a paixão por um ideal, e até mesmo a paixão mística: «Os místicos e os eclesiásticos falam em livrar-se do corpo e dos seus desejos, em deixar de ser escravo da carne. Não dizem que, através da carne, nos libertamos, que o nosso desejo de outrem nos elevará de nós próprios mais francamente que algo divino.» (p. 199)
A paixão é o elemento aglutinador das histórias de Henri e Villanelle, de mundos tão distintos como França e Veneza, de realidades aparentemente tão opostas como a guerra e o amor, pois como se pode ler: «Soldados e mulheres. É assim o mundo. Qualquer outro papel é temporário. Qualquer outro papel é um gesto.» (p. 66); «Se tivéssemos a coragem de amar, não daríamos assim tanto valor aos atos de guerra.» (p. 199)
Só a paixão por um imperador explica o que Henri descreve sobre os campos de batalha quando Bonaparte decide marchar sobre Moscovo: «Combatíamos sem rações, as nossas botas desfaziam-se, dormíamos duas ou três horas por noite e morríamos aos milhares todos os dias.» (p. 108)
Aí anuncia-se a queda de Napoleão e o amor que dá lugar ao ódio de Henri: «Se o amor foi paixão, então o ódio será obsessão.» (p. 113)
Jeanette Winterson é uma Xerazade moderna que se poderia integrar no panteão de obras e autores que se dedicaram ao filão do realismo mágico, que exploram os mundos possíveis dentro do mundo que nos é conhecido, a sua prosa verte uma torrente luxuriosa de imagens e símbolos, de elementos maravilhosos e lembra os contos de fadas, numa narrativa intrincada composta por um pequeno mosaico de outras tantas histórias que se entrelaçam.
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