O Retrato de Casamento, deMaggie O’Farrell, com tradução de Inês Dias, é uma das grandes estreias literárias deste ano, que, tal como o anterior romance da autora, Hamnet, surge publicado pela Relógio d’Água. Depois da época vitoriana com Shakespeare, Maggie O’Farrell revisita agora uma outra época prodigiosa, a Itália renascentista, através da vida da jovem duquesa Lucrezia de’ Medici, numa corte turbulenta.
Corre o ano de 1560 em Florença. Lucrezia é a terceira filha do grão-duque e sente-se quase num limbo entre os seus vários irmãos. A mãe é conhecida como La Fecundissima e todos os filhos da família governante têm os destinos traçados a partir do momento em que nascem; os pais, emissários, secretários e conselheiros assim o congeminam. Mas a infância e a inocência de Lucrezia conhecem um fim abrupto, quando a sua irmã mais velha, Maria, morre, na véspera do casamento com Alfonso II d’Este, o soberano de Ferrara, Modena e Reggio. Ainda que Sofia, a sua ama, tente adiar por dois anos a sua entrada oficial na idade adulta, com estratagemas de meandros femininos, Lucrezia terá de ocupar o lugar da irmã morta e vê-se lançada na ribalta política. Compreende então o fim a que realmente se destina uma jovem da sua estirpe: ser tratada como um bem. E, mais importante, gerar um herdeiro que assegure o futuro da dinastia de Ferrara.
O livro inicia com uma jovem Lucrezia convencida de que o noivo a quer matar, sentindo-se encurralada num casamento meramente contratual, tão diferente do dos pais que se casaram por amor, algo pouco próprio à época. A narrativa, apesar de contada na terceira pessoa, desenrola-se sob a perspetiva da protagonista, pelo que apenas podemos contar com a credibilidade das suas convicções. Não sabemos, portanto, até que ponto podemos crer efetivamente se ela, arrancada à infância, apenas se sente encurralada num casamento infeliz, ou se de facto o marido conspira contra si. A confirmar as suspeitas de Lucrezia, temos o burburinho que corre de que Alfonso é como Jano, com duas personalidades. Após as núpcias, o seu comportamento revelar-se-á gradualmente instável, ora agressivo, ora afectuoso. Entretanto, confirma-se como um político impiedoso, temido pela própria família, toda composta por mulheres, ao mesmo tempo que revela grande sensibilidade estética, fazendo-se rodear de músicos e artistas. Aquilo que se sabe, e que a autora nos revelou logo numa nota introdutória, é que Lucrezia estaria morta antes de cumprir um ano de casamento.
Fera enjaulada
Na infância de Lucrezia conhecemo-la como uma criança muito diferente dos seus vários irmãos, o que se confirma inclusive pelo hiato de alguns anos que distam entre ela e os outros, quer os mais novos quer os mais velhos, uma jovem dotada de uma prodigiosa inteligência, com um jeito inato para o desenho. Além disso, Lucrezia será acometida da obsessão de poder ver de perto um tigre-fêmea, a mais recente aquisição na coleção de animais exóticos do grão-duque, seu pai. Um animal aprisionado, de uma beleza indomável, com quem sentirá uma profunda e estranha afinidade da única vez que consegue avistar a fabulosa criatura, até porque, infelizmente, esta não viverá por muito tempo… Essa afinidade não surge por acaso. São, na verdade, recorrentes os paralelismos ora implícitos ora explícitos ao casamento como uma prisão, como por exemplo no primeiro momento em que Lucrezia entra no quarto às escuras e se sobressalta, confundindo a cama com uma jaula – um símbolo que se torna recorrente no livro. Note-se aliás que é quando Lucrezia está a trabalhar numa pintura em miniatura de um estorninho, que o conselheiro-chefe de Cosimo, o seu pai, tenta saber se ela já tem as regras, o que significa estar pronta para casar. É o pássaro morto que a jovem observa, conforme a embaraçosa conversa se desenrola entre o homem e a ama, refletindo como a liberdade fora tolhida: a dela; a do pássaro que encontrara nessa manhã no mezanino, e que provavelmente esvoaçara durante toda a noite incapaz de encontrar uma saída; e a da pintura que ela iria criar, a partir do modelo do pássaro pousado a seu lado, a que pretendia conferir nova vida, mas que o homem, impressionado pela qualidade do trabalho, arrebatou, quase sem pedir licença.
A arte como vida
Será através da pintura, de cujas aulas beneficiou em criança, que a protagonista encontra um escape.
“Pinta durante muito tempo. (…) Passa da taça para o mel, para as pregas e rugas da toalha. Vai traçando o seu rumo no meio dos objetos, da forma como interagem uns com os outros, dos espaços e conversas entre eles, reduzindo-se ao tamanho de um besouro para poder atravessar as reentrâncias entre os pêssegos ou os hexágonos interligados do favo de mel.” (p. 220)
Uma arte que convém manter oculta dos olhos de estranhos, em particular do marido, da mesma forma que uma natureza morta pode tapar uma pintura secreta. É natural que a pintura seja omnipresente na narrativa, inclusivamente na técnica descritiva, uma vez que a época aqui retratada remonta justamente ao apogeu da arte pictórica.
“Vai passeando junto às paredes, contemplando uma e outra vez o fresco que representa os doze trabalhos de Hércules (…). O índigo e a azurite que deve ter misturado ali, naquela mesma sala, a pedido de um dos antepassados de Alfonso, já se esbateram e desbotaram com o tempo; é quase como se as cores se tivessem retirado para o interior da parede, para se esconderem, para aguardarem a passagem dos séculos. Lucrezia imagina-as a regressar, todas ao mesmo tempo, ao seu tom original e vivo, após um sinal mágico, após a repetição de uma senha secreta.” (p. 211)
Nota-se ainda, subtilmente, nesta e outras passagens indícios de um romance histórico que nos coloca a partir de uma perspetiva inegavelmente contemporânea. Um romance belíssimo que, não obstante revisitar uma época recorrentemente trabalhada, consegue diversas proezas, nomeadamente a de arrebatar o leitor numa prosa lírica e apaixonada que, convenhamos, ganha revigorado fôlego na segunda metade do romance, com a chegada do pintor e a preparação da realização do retrato de casamento que dá título ao livro. É também a partir daí que as analepses se tornam menos frequentes e se imprime novo ritmo à intriga até atingir o clímax.
Maggie O’Farrell nasceu em 1972 na Irlanda do Norte. Cresceu no País de Gales e na Escócia. Teve várias profissões: jornalista no The Independent on Sunday; professora de Escrita Criativa na Universidade de Warwick e na Goldsmith’s College, em Londres. É autora de nove romances, vários deles premiados. Venceu, em 2010, o Costa Book Award com The Hand That First Held Mine. Além de Hamnet, tem vários livros publicados em Portugal, o último dos quais publicado pela Elsinore: Estou viva, estou viva, estou viva (2018). Os restantes títulos, publicados há anos pela Editorial Presença, encontram-se infelizmente esgotados: Antes de nos Encontrarmos; Incertezas do Coração; Depois de Tu Partires; O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox.
A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Vive atualmente com a família em Edimburgo.
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