Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasáqui, Japão, em 1945, e reside no Reino Unido desde os seus cinco anos. A Gradiva publicou recentemente O Gigante Enterrado, o seu último romance. O autor tem vários livros, todos eles traduzidos e publicados por esta editora, de que se destacam Os Despojos do Dia, o seu primeiro romance de fôlego, e Nunca Me Deixes, considerado também uma das suas melhores obras.
Em Os Despojos do Dia (1989), vencedor do Booker Prize e adaptado ao cinema, com interpretações de Anthony Hopkins e Emma Thompson, a ação decorre no período pós-guerra em Inglaterra, em 1956, quando Stevens, um mordomo, empreende uma viagem de carro que é também o mote para uma digressão ao seu passado. Ao fim de três décadas de serviço incondicional, este mordomo dá por si a rever o seu passado, a sua lealdade para com o senhor da casa, Lord Darlington, figura moralmente duvidosa, mesmo que Stevens o tenha servido sempre incondicionalmente, procurando ignorar as falhas do patrão. Este mordomo que procurou ser sempre um modelo de dignidade e das regras de etiqueta (considere-se, a título ilustrativo, essa série de costumes que é Downton Abbey que tão bem procura retratar o modo de vida e os dilemas da criadagem de uma grande casa senhorial) pode parecer ao leitor uma figura pouco simpática, pela sua reserva e conservadorismo, mas cuja verdadeira natureza humana, cheia de dúvidas e remorsos, se vai revelando mais e mais, até ao reencontro entre Stevens e Miss Kenton em que ela lhe confessa como tentou que ele respondesse aos seus sentimentos e afecto.
Nunca Me Deixes (2005), igualmente nomeado para o Booker Prize, conta-nos uma extraordinária história que varia em muito em termos de género das suas obras anteriores, como é aliás habitual neste autor, incorrendo nos meandros da ficção científica. Alguns críticos encararam a história como chocante, o que não invalidou a sua adaptação ao cinema, contando com interpretações de uma geração mais jovem de autores como Keira Knightley, Carey Mulligan e Andrew Garfield. O tema do livro é uma visão da humanidade confrontada com a sua própria fragilidade, a sua mundanidade e o seu desejo de imortalidade pois o leitor aperceber-se-á que as personagens de Kathy e Tommy, estudantes em Hailsham, a melhor e a mais privilegiada das escolas, sujeitos a uma vigilância constante e a testes médicos semanais, são afinal clones, que vivem vidas breves e vazias, criados pelo Estado com a função única de gerarem e providenciarem órgãos saudáveis aos cidadãos britânicos.
Não contando com os contos de Nocturnos (2009), O Gigante Enterrado é o regresso do autor ao romance, após quase dez anos.
Da mesma forma que a fição científica não tem apenas a ver com naves e robots, mas sim com as grandes questões existenciais da Humanidade e da ausência ou da possibilidade de um futuro melhor, quer seja ou não suportado por uma evolução tecnológica, a fantasia e a alegoria permitem atentar no real e no ordinário tão ou mais eficazmente do que um retrato cruamente realista dessa mesma realidade. O Gigante Enterrado tem sido considerado como uma obra de fantasia (ressalve-se na capa do romance a citação de um dos mais aclamados contemporâneos autor de fantasia, Neil Gaiman, que escreveu sobre este romance no The New York Times), onde o mito e a memória, a alegoria e a imaginação, jogam um importante papel.
«Teria sido necessário procurar muito tempo para encontrar o género de vereda sinuosa ou de prado tranquilo que mais tarde viriam a celebrizar a Inglaterra. (…) Nevoeiros gélidos pairavam sobre rios e pântanos, sendo vantajosos para os ogres que nesse tempo ainda habitavam a região.» (p. 9). O início do romance remete claramente a ação a um passado distante e situa-a na Inglaterra do mito e das brumas, esboçando ainda com a referência aos ogres o género de fição aqui explorada, uma fantasia pós-moderna cujos limites são naturalmente esbatidos, que catapulta o leitor para um tempo remoto, em oposição ao futuro explorado no romance anterior.
A bruma referida logo na abertura do romance e que inicialmente parece representar essa eterna condição climatérica nebulosa da Grã-Bretanha, é afinal um nevoeiro que traz consigo não tanto a falta de visibilidade mas sobretudo o esquecimento. Por isso mesmo, os protagonistas Axl e Beatrice são um casal de idosos por quem é inevitável sentir profunda simpatia e carinho, dada a sua profunda devoção um pelo outro, mesmo que eles próprios já não se recordem porque permanecem juntos ao fim de tantos anos. E a reforçar esse sentido alegórico da narrativa pode ler-se que «Talvez esses não fossem os seus nomes exactos ou completos, mas, por uma questão de facilidade, é assim que nos iremos referir a eles.» (p. 10).
Kazuo Ishiguro escreve sobre um mundo no passado que não consegue recuperar o seu passado, sem história e sem rumo, condizente com o período medievalizante que retrata, de Idade das Trevas, possivelmente entre os séculos V ou VI, num reino outrora governado por Artur, em que Bretões e Saxões convivem pacificamente. Apesar do nevoeiro desmemoriante que assola esse mundo, Beatrice agarra-se à convição de que ela e Axl tiveram em tempos um filho, que partiu para uma aldeia distante e de quem há muito não recebem notícias, mas que ela sente intensamente chamar por eles. Encetam assim uma viagem por territórios desconhecidos, mas vagamente familiares, num reino de bruxas, ogres, monges e dragões, encontrando pelo caminho cavaleiros que parecem personificar figuras lendárias como Beowulf, no caso do guerreiro Wistan, cuja missão é matar o dragão Querig, ou cavaleiros da Távola Redonda como Gawain, sobrinho do Rei Artur (e figura assaz quixotesca) cuja missão é defender essa mesma criatura. Mas não confundamos este romance com o género épico patente em A Guerra dos Tronos: aqui o ritmo é lento, os diálogos são ritmicamente repetitivos, a ternura entre o casal de velhotes é símbolo de um amor que vive além do tempo e dos erros do passado, o sentido de honra é premente mesmo quando cavaleiros se digladiam entre si ao mesmo tempo que tecem louvas ao nobre adversário, e o passado espreita sempre sob um primeiro olhar de breve reconhecimento. Numa narrativa simples, poética, por vezes com ritmo lento, perceberemos, num final em aberto, e com algumas surpresas, que nem tudo é assim tão linear, nomeadamente quando se fala nesse barqueiro que no fim da travessia interroga os casais, para apurar se estão realmente unidos pelo amor verdadeiro, ou de como um jovem mordido por um dragão se torna num apaixonado do dragão-fêmea, cujo bafo é o responsável pela neblina que embota a memória, e de como o esquecimento tem a grande virtude de permitir perdoar e viver numa paz aparente com o outro. Fica também a dúvida, no final, se o Gigante Enterrado é o dragão, o peso do esquecimento e do passado, ou talvez a esperança que dá pelo nome dessa Espada que desenterrada traria os tempos áureos do Rei Artur de volta.
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