O fantástico mundo encantado de Juliet Marillier
Juliet Marillier, nascida em 1948, na Nova Zelândia, é uma daquelas escritoras que, na senda de damas como Marion Zimmer Bradley, está a tornar-se uma autora de culto do género fantástico. É claro que escritores que lançam um livro por ano podem ser discutíveis, tal como se podia aqui discutir se todo o tipo de obras do género fantástico cabe efetivamente nesse magnânimo e sempre estranho campo do que é a literariedade. Mas a verdade é que todos nós temos os nossos próprios prazeres culposos (soa muito melhor em inglês: «guilty pleasures», mas estava a tentar evitar estrangeirismos). Por isso é tão irritante quando certas pessoas andam em transportes públicos com livros forrados de um horrível papel celofane, como quem embrulha uma sandes. Talvez por terem vergonha de revelarem o que estão realmente a ler? Bem, assumo a minha quota parte de culpa. Tenho autores para todos os gostos, mas também sou um adepto desta senhora que, a cada novo livro, consegue surpreender-nos, ainda que ligeiramente, com uma fórmula previamente estereotipada. Que é como dizer, por exemplo, que quando se ouve um álbum de Enya ela consegue sempre a proeza de se igualar a si mesma. Todavia há sempre autores (e pessoas), iguais a si próprios, e que valem por isso mesmo, alimentando certos prazeres de pura fruição estética, em que podemos regressar a um mundo que se vai revelando cada vez mais familiar, como quem chega a casa e se encosta num sofá com uma manta e uma chávena de chá. Ainda mais agora, quase em pleno Inverno, é reconfortante podermos contar com o último romance desta autora neozelandesa, cujas paisagens desse ambiente inóspito e primitivista parecem ressaltar nas suas páginas e talvez igualar-se ao mundo céltico dos seus livros, transportando-nos a um sentimento de princípio dos tempos, em que os homens já se organizam em sociedades tribais e clãs, mas são ainda as mulheres quem tece os fios do destino, interligando assuntos deste mundo e do outro. A ascendência de Juliet Marillier é escocesa e irlandesa, tendo enveredado pela música, ensinando, interpretando, e trabalhando depois, durante cerca de 13 anos, em agências governamentais como a Commonwealth. Até que em 1999 a sua vida muda com Filha da Floresta, livro em que é mais claramente notória a inspiração que a autora bebe em lendas célticas com a fantástica história de uma jovem que tem de salvar os seus sete irmãos transformados em cisnes por meio das artes maléficas de uma terrível feiticeira. Sendo bem recebida por leitores e críticos entre o público leitor anglófono, seguiram-se outros dois volumes da saga em menos de dois anos. Em 2003 dedicou-se completamente à escrita, e enveredou ainda mais longe no folclore das ilhas gaélicas e terras nórdicas, presenteando-nos com Filho de Thor e Máscara de Raposa.
Consegue ainda ter tempo para acarinhar quatro filhos e seis netos, e ter transformado a sua casa de campo centenária, na Austrália, num asilo para cães abandonados. É também membro da ordem druídica, sendo claramente notório um espiritualismo associado ao tom elegíaco das suas histórias de jovens donzelas que, sem se aperceberem bem disso, são postas à prova, e vencem as adversidades com a natureza singela de um espírito indomável. Nestes livros, que não são livros mas sim trilogias, o tom é quase o mesmo, mas estas jovens têm sempre características marcantes e personalidades vincadas, que ajudam a demarcá-las de entre um bando de irmãs e primas, pois acabam muitas vezes por se tecer relações entre a complexa rede de famílias e romances.
Os seus romances combinam ficção histórica, fantasia e folclore, lenda e romance, porque, felizmente, estas jovens encontram sempre um amado improvável no decurso das suas viagens e aventuras. Mesmo em A Vidente de Sevenwaters, único livro em que se defende que a castidade é fundamental para manter o dom intacto da jovem rapariga, a jovem psíquica acaba por conseguir conciliar o seu dom com o seu amor.
Com Shadowfell, um dos poucos títulos não traduzidos para português, foi iniciada outra nova trilogia (ainda que tal não tenha ficado claro nem no início – e provavelmente nem no fim -, mas agora a culpa é das editoras que andam a publicar ao desbarato, saltando a ordem de certos volumes e sem esclarecer que pertencem a um conjunto maior), agora retomada com O Voo do Corvo. Ainda que a autora tenha protelado esse hábito, retoma na continuação da saga a mesma protagonista. A jovem Neryn prossegue a sua jornada, com a missão e o fardo de ser uma das poucas Vozes que ainda restam, capaz de ver os chamados Boa Gente, que povoam o Outro Mundo, como donzelas das florestas e criaturas feitas de galhos e rochas, com longos toucados onde se enredam ninhos e aves. Pode assim tornar-se uma estratega ou diplomata essencial num mundo em guerra, pois como quase sempre o ambiente fantástico remete-nos para um mundo medievalizante. Temos inclusive, como forma de espreitar o mundo da desordem e disputa masculina, o apaixonado de Neryn, Flint, que vive na corda bamba enquanto espião duplo, e conduz-nos ao seio do grupo de Rebeldes que se constituiu à margem da corte. Apesar de Neryn e Flint não estarem tão próximos fisicamente como no volume anterior, em que a proximidade e convivência eram eivadas da desconfiança dela em relação a ele, julgando-o um inimigo, desta feita, agora que se distanciam fisicamente, o amor entretanto desabrochado com um beijo roubado nas últimas páginas, tornou-se tanto mais forte quanto a distância aberta entre os dois. A força do sentimento que os une não deixa, no entanto, margens para dúvidas, até porque se comunicam em sonhos…
São reveladores e inovadores os episódios protagonizados por Flint, que nos permitem entrar na corte e conhecer melhor o rei Keldec. Pode até tornar-se desconcertante observar a duplicidade deste agente infiltrado, empenhado em ganhar a confiança do monarca, mesmo quando se pressente que afinal não são os políticos que dão a cara os verdadeiros culpados, mas sim outras “Vozes” conselheiras.
O estilo da autora é escorreito e detém-se nos meandros da natureza humana, dos receios e esperanças, mas sem nunca cair, mesmo sendo as personagens jovens quase-mulheres, em tom lamechas. Transporta-nos para os contos tradicionais da nossa infância (isto fica bem de dizer mas a verdade é que muitos de nós não tivemos esse prazer na nossa primeira fase de vida), dentro de um estilo muito característico da autora, que, como dizia no início, nos permite sentir o embalo e um marulhar ritmado que nos permite evadir por momentos da realidade mais crua para mergulharmos nos recessos do nosso coração. Afinal, homens ou mulheres, não somos todos jovens donzelas em perigo, muitas vezes divididos pela angústia das nossas próprias escolhas e desejos?
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