Depois do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos, chegou em fevereiro às livrarias A melhor máquina viva, o novo romance de José Gardeazabal, com o selo da Companhia das Letras, mas no contexto pandémico que então se vivia tem passado bastante despercebido. Este seu segundo romance é também o primeiro volume da Trilogia dos Pares. A título de curiosidade, José Gardeazabal é o pseudónimo de José Tavares, e o autor é irmão de Gonçalo M. Tavares.
Um livro difícil, romance muito pouco convencional, onde conflui (fazendo eco das palavras da crítica de José Riço Direitinho ao seu anterior livro) um discurso político, alegórico e aforístico, conforme passa em revista a história e memória do século XX, do Holocausto ao 11 de setembro, ao mesmo tempo que parodia o discurso bíblico, como quando compara a queda das Twin Towers à queda da Torre de Babel:
«Aconteceu uma segunda queda. Porquê uma segunda queda, não bastou a primeira? Aquele chão seco de paraíso, aquele enjoo de dilúvio. Protegidas por uma poeira cinzenta e fina, as pessoas mascararam-se de desconhecidas, de palhaço, na certeza de este ser um susto novo. Aprenderam rapidamente a respirar lentamente, invocando ao telefone uma salvação impessoal. Ninguém os ouviu. Estavam entre a realidade e a verdade, e a realidade ganhava. A realidade ferro, cimento e vidro transparente, a realidade simultânea de dois desastres, tão improváveis como uma má aposta. Deuses distraídos tinham jogado aos dados e o nosso deus tinha perdido.» (p. 129-130)
Na prosa perpassa ainda a noção da metaliteratura ou da metaficcionalidade, pois a escrita pensa-se a si mesma conforme se plasma no papel, num jogo com a linguagem, onde entram aforismos e, muito especialmente, títulos de livros que nos servem de referências culturais no labirinto em que a história se pode tornar.
Anders Kopf é um jovem aspirante a escritor que decide mergulhar na pobreza por um ano e afastar-se de um passado doloroso. Toma essa decisão no dia seguinte a uma tragédia familiar mas adia por uns tempos a sua execução, enquanto passa por um orfanato. Nesse seu intento de se tornar pobre o protagonista parece evocar os grandes autores russos (lembremo-nos tão somente de Crime e Castigo), numa fuga ao capitalismo e excessos da literatura norte-americana. Nesse exercício temporário da fome e do despojamento Kopf aspira a melhorar a literatura – a «ciência dos pobres» (p. 36) – pelo que faz um batismo de pobreza – «pobreza é reflexão» (p. 197): «abandonará pão, paz, saúde, habitação. Vestuário.» (p. 35)
Em torno de si, reúne 3 pobres a quem se atribui nomes esclarecedores: Prejworski, o Subjetivo; o antiamericano Gilles; cidadão Elias Kane, um «negro enorme, de literatura», de cinema. Com esses novos companheiros acabará por cometer um roubo num matadouro –que aqui representa um símbolo do tempo histórico do século XX e, muito particularmente, do capitalismo –, mas aquilo que rouba será essencialmente quantidades astronómicas de papel branco.
Mas o projecto de Kopf, o de ser pobre para poder alimentar-se da escrita, pode vir a ser gorado quando Eeva Wiseman, a bela capitalista herdeira do matadouro, decide, na ressaca de um acidente, que quer ser amiga de um pobre.
O autor nasceu em Lisboa, onde vive actualmente. Viveu, trabalhou e estudou em Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. O seu livro de poesia, história do século vinte, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, foi editado em 2016, ano em que publicou também Dicionário de ideias feitas em literatura, colectânea de prosa curta escrita em 176 entradas, uma espécie de dicionário. Em 2017, editou três peças de teatro, reunidas na obra Trilogia do olhar.
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