Olho da rua, publicado pela Companhia das Letras, é o segundo romance de Dulce Garcia e que a confirma como uma nova voz a ter em conta. A autora estreou-se na ficção em 2017 com Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum.
Num excerto introdutório, em jeito de epígrafe, podemos ler como, no Japão, uma rapariga se suicida na noite de Natal, atirando-se de uma janela do seu local de trabalho, a principal agência de publicidade do país. Depois de, no mês anterior, ter cumprido 105 horas extraordinárias, esta jovem não vislumbrou outra escapatória possível.
Olho da rua é uma sátira mordaz, irreverente, divertida, que ficciona a realidade, ainda que a realidade ultrapasse sempre a ficção (pág. 322), do quotidiano urbano do século XXI: trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar.
«Nessa tarde soube que fazia parte de um lote de funcionários a dispensar da agência de publicidade onde trabalho. Melhor dizendo, somos seis funcionários e um de entre nós vai ser despedido, seremos nós a decidir qual. Acreditam nisto? Eu também não acreditei, mas parece que é verdade —veio cá a diretora de recursos humanos explicar que esta estratégia tem sido utilizada com sucesso no Japão. Está bem, abelha. Como se os japoneses, com aqueles roupões esvoaçantes, tivessem parecença alguma com os tugas, máquinas de drenar sangue fervente.» (pág. 18)
Particularmente centrado no período crítico em que um certo banco, aqui designado BTI, entra em falência, depois de jogar com a economia de uma boa parte da população, uma conhecida agência de publicidade e comunicação, em Lisboa, decide adotar uma inovadora estratégia japonesa de despedimento. Os colaboradores que estão na mira de ir para o olho da rua são convidados a desempenhar um moroso jogo, ao longo de várias reuniões, de autoavaliação para, por fim, se tornarem juízes dos colegas. Ou seja, cada um dos funcionários, a não ser que queira executar um golpe altruísta de harakiri, tem a oportunidade de desempenhar o papel de carrasco e escolher qual dos colegas deve ser despedido.
Em capítulos breves, alternam as vozes de uma abelha, uma ursa, uma mulher, uma barata, uma hiena, e uma mosca da fruta. Entram ainda em cena, a seu tempo, uma coruja e um polvo. Numa prosa ligeira, divertida, onde predomina a associação livre de ideias, pois passamos de um assunto a outro sem aviso, ficaremos a conhecer as personagens que se escondem sob estas máscaras, seja porque são assim apelidados pelos colegas que os desprezam, ou porque efetivamente se identificam com o animal que lhes serve de avatar. Os seus verdadeiros nomes, que lhes conferem identidade e dignidade social, surgem muito depois, quase como nota de rodapé. Também por isto podemos ler este romance como uma fábula e, sobretudo, como uma comédia de humor negro sobre uma sociedade neoliberal mesquinha. Afinal o quotidiano empresarial é isso mesmo, uma selva, onde impera a lei da selecção natural: vence sempre o mais forte, ou seja, o mais ardiloso e capaz de jogar mais sujo.
O jogo de cadeiras que se cria, e que torna esta narrativa uma leitura compulsiva, origina uma tensão crescente dentro da empresa, até que esta se transforma inevitavelmente num campo de batalha, com mortos e carros feridos. Não obstante, este livro não é nem pretende ser um policial. O que interessa aqui não é tanto o desenterrar de segredos sórdidos e passados humildes. Interessa sim a visão tão desencantada quanto divertida de um país em colapso financeiro, com óbvias repercussões no mercado de trabalho. Ainda assim há espaço para tórridos romances imprevistos, que, todavia, não estão isentos de um jogo de poder e interesse.
Dulce Garcia nasceu em 1970. Foi jornalista entre 1991 e 2017, tendo passado por publicações como o Diário Económico e a Sábado (de que foi fundadora e subdiretora) e colaborado com as revistas Elle, GQ, Vogue, Máxima, entre outras. Foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta. Atualmente, é assessora de imprensa na área da política.
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