Marrom e Amarelo, de Paulo Scott, publicado pelas Edições Tinta-da-china, conta a história da discriminação racial no Brasil através da história de dois irmãos. Como se pode ler no próprio romance: «Nenhuma boa história é leve, Federico, Nenhuma boa história deixa de fora o que é denso, o que é pesado, observa.» (p. 152)
Filhos do mesmo pai e mãe, Federico nasce com a pele clara, enquanto o irmão Lourenço é um preto «retinto». A diferença de cor entre os irmão explica o título, pois Federico é amarelo e Lourenço marrom: «no padrão dos que perguntavam, no padrão de Porto Alegre, no padrão do Brasil daquele ano de setenta e três, eu, de pele bem clara, cabelo liso castanho bem claro puxando pro loiro, era considerado um branco, ele, o meu irmão, de pele marrom escura, cabelo crespo castanho escuro beirando o preto, embora com o mesmo nariz adunco e médio largo que o meu e a mesma boca de lábio superior fino e lábio inferior grosso que a minha, era considerado um negro» (p. 12)
Apesar de Federico ter desde cedo a percepção da diferença do irmão, não pela cor, mas pela forma como é tratado pelos outros, é emblemático o episódio que Federico rememora, em que o irmão lhe explica por que deve usar flash nas fotos que tira a Lourenço:
«Lourenço conferiu as fotos e me falou Tu sempre insiste em não usar flash, Derico, Mas tem que usar flash comigo, senão quando tá assim meio escuro eu não apareço direito, Disse aquilo com uma tranquilidade cortante, Balancei a cabeça, mostrei que tinha entendido, No início do show, avisei que ia pegar duas cervejas pra nós, saí da pista, mas não fui até o balcão, fui até o banheiro, entrei num dos boxes das privadas, fechei a porta e chorei, chorei como não chorava há um tempão, Você entende, perguntei, Sou tão orgulhoso e envaidecido de ser o irmão mais velho, De ser o protetor, Mas, droga, levei anos, décadas pra perceber aquele detalhe tão óbvio e tão importante, Imagina o resto, falei.» (p. 88)
O livro começa quando Federico, com quase 50 anos, é «um importante pesquisador das temáticas da hierarquia cromática entre peles, da pigmentocracia», assessor de ONGs por todo o mundo, e integra uma comissão que tem em vista promover uma integração justa dos negros nas universidades brasileiras. Para o conseguir o governo avança com uma proposta de criação de um software «para selecionar quem era suficientemente preto, pardo ou indígena para obter o benefício das cotas» (p. 37). Medida que tem mais de burocrática e politicamente correcta do que de justiça ou igualdade social.
A narrativa é contada na primeira pessoa e a intriga desenrola-se por volta do ano de 2016, quando Roberta, sobrinha de Federico, filha de Lourenço, é presa, justamente na data de 7 de Setembro, o dia da comemoração da independência do país. Entretanto o presente alterna com o passado, através de flashbacks do narrador. Nessas analepses em que Federico recorda o seu passado – como foi crescer entre os subúrbios violentos de Porto Alegre, no bairro Partenon onde vivem maioritariamente pessoas negras, enquanto filho de um polícia altamente respeitado, e com um irmão de cor escura – perceberemos melhor os motivos da prisão de Roberta e de como dois irmãos fisicamente tão diferentes conseguem ser verdadeiramente unidos, na «geografia inóspita da hierarquia racial no Brasil» (p. 35), um país claramente desunido e agitado, marcado por traumas e abissais diferenças sociais.
Nas memórias de Federico há dois episódios que se afiguram particularmente importantes na sua formação e crescimento. Quando Federico vai à selecção do serviço militar (como a inspecção), onde assiste aos abusos de um sargento, e quando praticamente acusa a mãe de não lhes ter dado uma educação suficientemente adequada:
«Eu olho pra maneira como vocês me criaram, pra criação que tu e o pai deram pra mim e pro Lourenço, e não vejo quase nada de negritude, do mundo negro, quase nada da cultura negra, falo dum modo dramático, que, por ser a minha mãe a interlocutora, não consigo evitar, Nós somos uma família negra, porque tu sempre disse que a gente era negro, Tudo bem, Mas onde tá a nossa negritude, Nós parecemos uma família branca, só nos relacionamos com gente branca, teus colegas e amigos, com exceção dos Moreira e dos Arantes, são gente branca, os colegas e amigos do pai são brancos, A gente se blindou, Porque acho que, no fundo, esse era o jeito do pai de se afirmar, De se blindar e não enxergar nada que envolvesse essa história de raça, de ignorar os brancos, de ignorar os brancos que não gostam de gente escura, Mas também de ignorar todo o resto, Os negros, A cultura negra, O racismo, digo. Tu tá falando do quê, Federico, diz. Estou falando dessa palavra que, até pra nós, é um tabu, Racismo.» (pp. 153-154)
Paulo Scott nasceu em Porto Alegre em 1966. Escritor e professor universitário, publicou dez livros no Brasil: quatro romances, um livro de contos (Ainda Orangotangos, adaptado para cinema por Gustavo Spolidoro) e cinco de poesia. Em Portugal, publicou dois romances, Habitante Irreal e Marrom e Amarelo (Tinta-da-china, 2014 e 2020). Recebeu os prémios Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional, APCA, Açorianos de Literatura, entre outros, e foi finalista de prémios como Jabuti, Prémio São Paulo de Literatura, Prémio Literário Casa da América Latina. Vive actualmente em Garopaba, Santa Catarina.
Marrom e Amarelo está a ser adaptado ao cinema.
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