Luto, do autor guatemalteco Eduardo Halfon, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, é uma das fortes apostas da Dom Quixote para este mês de Abril. O romance tem recebido inúmeras distinções, como Prémio do Melhor Livro Estrangeiro (França), Prémio Edward Lewis Wallant e Prémio Internacional do livro latino (E.U.A.), Prémio das Livrarias de Navarra (Espanha).
«Chamava‑se Salomón. Morreu aos cinco anos, afogado no lago de Amatitlán. Era o que me contavam em criança, na Guatemala. Que o irmão mais velho do meu pai, o filho primogénito dos meus avós, aquele que teria sido o meu tio Salomón, morrera afogado no lago de Amatitlán, num acidente, quando tinha a mesma idade que eu, e que nunca se encontrara o seu corpo.» (p. 11)
Assim inicia este livro, com cerca de 100 páginas, que rapidamente nos toma de assalto. Quando «o pequeno Eduardo» visita o velho chalé que tinha sido dos avós, nas margens do lago de Amatitlán, esse local da sua infância espoleta uma série de memórias de infância e levam o autor-narrador a rever o seu passado familiar: da mudança da família para a Florida, em fuga à violenta situação política vivida na Guatemala nos princípios de 1980 ao mistério do tio Salomón, que talvez nem tenha existido pois na família ninguém parece querer reconhecer o nome, assim como breves instantâneos de uma família de emigrantes judeus libaneses que sobreviveu aos campos de concentração da II Guerra e se radicou nos E.U.A. e na Guatemala.
«Sabia que o meu avô tinha saído de Beirute em 1919, quando tinha dezasseis anos, com a mãe e os irmãos, de avião. Sabia que tinha voado primeiro para a Córsega, onde a mãe morreu e ficou sepultada; para França, onde todos os irmãos embarcaram num barco a vapor em Le Havre, chamado SS Espagne, rumo à América; para Nova Iorque, onde um funcionário dos serviços de imigração calaceiro ou talvez caprichoso decidiu cortar o nosso apelido ao meio, e também onde o meu avô trabalhou vários anos, em Brooklyn, numa fábrica de bicicletas; para o Haiti, onde vivia um dos seus primos; para o Peru, onde vivia outro dos seus primos; e para o México, onde ainda outro dos seus primos era fornecedor de armas de Pancho Villa. Sabia que ao chegar à Guatemala tinha passado por cima do Portal del Comercio – quando defronte do Portal del Comercio ainda passava um trâmuei puxado por cavalos ou mulas – e aberto ali um armazém de tecidos importados chamado El Paje. Sabia que, nos anos sessenta, depois de estar sequestrado por guerrilheiros durante trinta e cinco dias, o meu avô tinha regressado a casa voando.» (p. 15)
Personagem e autor e narrador fundem-se neste livro, consoante Halfon prossegue na busca de um segredo de família, até que as suas próprias memórias ganham espessura e emergem. Quando a narrativa chega a um fim, e até as memórias que Halfon reprimira são desveladas, há um forte simbolismo nesse episódio final, na beira do lago, com «um menino moreno, magro, dos seus dez ou doze anos» dentro do seu cayuco de madeira: «na base do vulcão, ao longo de toda a orla da água, os chalés abandonados pareciam‑me agora as lápides e cruzes de um grande cemitério, e o lago um único sarcófago. (…) Quis meter as mãos para lavar a cara e a nuca, mas na superfície da água flutuava uma crosta verde de sujidade e por isso fiquei apenas a observar a imensidão do lago, pensando na sua quietude e bonança, no seu estoicismo e lenda, no esplendor que em tempos teve. Aqui há dragões, pensei, ou talvez tenha sussurrado, olhando para baixo e recordando a frase dos antigos cartógrafos que, postados na orla do desconhecido, no fim do mundo, desenhavam dragões nos seus mapas.» (p. 103)
Já não e a primeira vez que ouço falar bem deste escritor, mas ainda nunca o li…