Deste livro, publicado pela Planeta Editora, não se pode propriamente dizer que se lê de um fôlego, não só pelas suas 845 páginas, mas porque é preciso pousá-lo por várias vezes para poder dar umas boas gargalhadas. Zafón sempre primou por uma escrita literária – ainda que certos autores tenham lançado outrora o debate se Zafón pode ou não ser considerado literatura – muito cuidada: «na noite em que o meu filho Julián nasceu e o vi pela primeira vez nos braços da mãe entregue a essa calma abençoada daqueles que ainda não sabem a que espécie de lugar chegaram, tive vontade de largar a correr e não parar até que se me acabasse o mundo. Na altura eu era uma criança e a vida ficava-me de certeza demasiado grande» (pág. 15). Cada frase é trabalhada para fazer ressaltar a originalidade e a poesia da sua linguagem, eivada de mistério e de fantasia, mas é sobretudo pelo seu humor que o autor se tem destacado. Os diálogos deste livro – e são muitos, tendo em conta aliás a profusão de personagens – são sempre momentos de puro deleite e genuíno humor, para não falar de todo o cómico de personagem que é Fermín.
Neste quarto volume da sua tetralogia – cuja saga o autor indicia indirectamente poder ser apelidada de O Cemitério dos Livros Esquecidos – regressamos a Barcelona – e esta cidade é muitas vezes a principal personagem, pelo cuidado das descrições mais realistas ou mais fantasiadas –, mas desta vez nos finais dos anos 1950 (para terminar depois em 1992).
A personagem principal desta vez não é Daniel Sempere, o menino de A sombra do vento, nem Fermín, mas sim Alicia Gris. Alicia é, sem exagero, uma das personagens mais crípticas que o autor nos dá a conhecer, pois muitas vezes o leitor só pode traçar um retrato a partir do medo que ela inspira nos que a conhecem. Muito raramente entramos na sua alma ou sabemos o que se sente sob a sua pele: uma solidão imensa que acompanha esta criança que ficou órfã durante a guerra civil. Alicia será, aliás, salva por Fermín, num daqueles acasos do destino literário, quando este a encontra com sete ou oito anos, sempre agarrada ao seu livro de Alice no País das Maravilhas. Não será por acaso que Alicia, cujo nome lembra o de Alice, vai depois cair com a explosão de uma outra bomba por uma cúpula de cristal e aterrar no centro do Cemitério dos Livros Esquecidos, à semelhança de Alice ao cair pelo buraco até aterrar no País das Maravilhas. Fermín parece também servir aqui de coelho branco ou guia para esse outro mundo, como as suas palavras já anunciavam: «Tudo o que seja cair por buracos e tropeçar com chanfrados e problemas matemáticos encaro-o a título autobiográfico» (pág. 54). Alicia – mais uma vez a lembrar a mente inquisitiva de Alice e os enigmas com que se vai deparando no País das Maravilhas – será depois uma investigadora, uma das melhores, pronta a «descer aos infernos em busca de problemas»: «Alicia Gris vê o que os outros não vêem. O seu cérebro funciona de uma maneira diferente do das outras pessoas. Onde todos vêem uma porta fechada, ela vê uma chave. Onde os outros perdem a pista, ela encontra o rasto. É um dom» (pág. 102). Alicia ficou ainda exteriormente marcada pela guerra a que sobreviveu, com um ferimento na anca direita, que lhe dá dores atrozes e a obriga a usar um arnês, o que lhe dava «um ar de boneca perversa, de marioneta de obscura beleza» e lembra um vampiro, uma «criatura das trevas», de «olhar gelado e penetrante», de riso frio, «indestrutível e dura como um diamante», «criatura de luz e sombra, como esta cidade», para quem «a solidão pode ser a melhor companhia»…
O autor junta neste livro todas as personagens e todas as obras anteriores, com o intuito de fechar todas as pontas soltas e desvendar todos os enigmas, pelo que só na segunda metade do livro iremos acabar por voltar a entrar na livraria e na família Sempere. Como muitas vezes se pode ler, não há propriamente um início para toda esta história, mas sim várias portas de entrada, tal como uma cidade, até porque afinal estamos a falar de um labirinto, um novelo de histórias passadas numa cidade labiríntica, onde se esconde um labirinto de livros. As referências literárias a obras e autores também abundam, como pistas para encontrar o caminho por entre o labirinto. Contudo mais do que labirinto, é muitas vezes a ideia de Inferno que persevera no livro, em diversas referências, inclusive a famosa citação de Dante, sendo a própria cidade comparada a esse Inferno pois aquela «Barcelona dos anos de 1930 (…) era, no julgamento dos entendidos, o que mais se lhe assemelhava.» (pág. 508). Recordemos que esta cidade sobrevive a uma guerra civil para depois passar ao jugo da ditadura franquista e é nesse clima de terror que podem vingar horrores como o que a nossa protagonista vai acabar por desvendar, auxiliada por Vargas. Desta forma, este romance partilha ainda do género policial e com um caso que é, de facto, bastante surpreendente e bem conseguido.
Parece, no entanto, restar uma última ponta solta, a do destino de Alicia que a certa altura do livro acaba por nos deixar, se bem que a resposta pode estar contida, como sempre, na própria história: «O que gostaria de fazer é viajar e ver mundo. Encontrar o meu lugar. Se é que existe.»
No final, e mais uma vez revelando a mestria de Zafón, é revelada uma surpresa, ao desvendar-se por fim o enigma mais premente de todos, quem é afinal o verdadeiro autor deste livro e de todos os outros?
«Tinha calculado que aquele magnum opus produto da minha febril imaginação juvenil atingiria dimensões diabólicas e uma massa corpórea a rondar os quinze quilos. Tal como a sonhava, a narrativa seria dividida em quatro volumes interligados que funcionariam a modo de portas de entrada para um labirinto de histórias. À medida que o leitor se internasse nas suas páginas sentiria que o relato se encaixava como um cojnunto de bonecas russas em que cada trama e cada personagem conduzia a outra e esta, por sua vez, a outra, e assim sucessivamente.» (pág. 808).
E podemos confirmar que, terminada esta magna leitura, fica o desejo de regressar a todos os outros livros, para regressar ao labirinto a partir de novas entradas.

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.