Ao preparar-me para reler Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo, sobre a guerra colonial em Angola, decidi ler em paralelo este livro agora integrado na Coleção Essencial Livros RTP, editada pela Leya, constituíndo o 11.º volume, foi originalmente publicado em 1992 pela Dom Quixote.
Dividida em quatro partes, com um salto temporal de mais ou menos uma década entre cada uma das partes, esta obra acompanha a história de 4 jovens que em 1961 se reuniam na Casa dos Estudantes do Império, salta depois para o período da guerra civil, quando acompanhamos um jovem guerrilheiro na chana (algo entre deserto e floresta), para 20 anos depois encontrarmos um deles afastado da sociedade a viver quase como um eremita, até que em 1991, 30 anos depois, o livro fecha num epílogo incerto, que não se sabe se é uma nota de esperança ou de profunda ironia e desencanto perante a sociedade que estes mesmos jovens, três décadas antes, idealizavam e “desconseguiram” de realizar. Cada uma das partes do livro centra-se à vez em torno das personagens de Sara, Aníbal, Malongo e Vítor. A voz do narrador é muitas vezes entretecida com a corrente de consciência das personagens, num discurso indirecto livre que nos permite acompanhar os seus ideais e os seus ressentimentos, se bem que em cada uma das partes, exceptuando na primeira, é sempre preciso juntar as pistas até percebermos por fim quem é o protagonista. A primeira parte, talvez por acompanhar a juventude destes jovens oriundos de Angola, ora brancos (Sara), ora negros ou mestiços, que estão em vias de terminar os seus cursos, é narrada num tom mais vivo e os acontecimentos sucedem-se, entre o íntimo e pessoal e o colectivo, sendo a Casa o centro da acção, onde se reúnem para discutir os assuntos da actualidade ou simplesmente para se rever. Dez anos depois, e nas partes que se seguem, à medida que nos adentramos na idade adulta das personagens vence o tom de desencanto de uma geração que parece ter falhado o sonho que se destinava cumprir: «Isto de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Victor antes, para só falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele.». O próprio autor, à semelhança de algumas das personagens masculinas, passou por militar, político, para depois se dedicar exclusivamente à escrita. E nesta obra da póscolonialidade o autor assume claramente a sua identidade pois não há qualquer desejo de escrever o português da metrópole ou do Império pois o autor institui a diferença da sua escrita logo na primeira linha: «Portanto, só os ciclos eram eternos.», colocando-a na boca de um narrador que supomos ser Aníbal pois é ele quem o leitor surpreende a escrever pensamentos soltos. Segue-se a esta frase um parêntesis (literalmente) em jeito de nota explicatória e introdutória: «(Na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu, hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor?, perguntou o Professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português; então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como conclusão dum raciocínio? Assim mesmo, para pôr o examinando à vontade. (…) )». O autor faz recurso portanto de diversos termos usados ainda hoje em Angola se bem que próximos de uma certa coloquialidade e não propriamente apanágio de uma norma: maka, kamba, desconseguir ou a deliciosa expressão “Esse é o problema que estamos com ele.”.
É nos diálogos entre as personagens que percebemos os ideais em confronto e principalmente a forma como se falhou (um dos jovens promissores da Casa, por exemplo, torna-se um político receoso de manter o seu poder e a servir os seus próprios interesses) perante um país que depois da guerra colonial continuou em guerra civil durante 20 anos mais. Pepetela narra sem medo e de forma magistral um amplo mosaico da sociedade angolana (consegue narrar diversas realidades, entretecendo-as sem custo como o excelso contador de histórias que é) das últimas décadas (se bem que desde a publicação desta obra se tenham entretanto passado outros 20 anos mais, sobre os quais podemos ler em Se o passado não tivesse asas, mas pouca coisa parece ter mudado) e daquela que era uma geração promissora que partiu para a Europa para beber de outros ideais mas viu ainda assim goradas as suas expectativas e utopias.