Escrevo hoje sobre um escritor de eleição que me marcou na minha tenra juventude desde as suas primeiras linhas e que, infelizmente, tendo hoje cerca de 86 anos não mais voltará a escrever, por motivos de saúde. Gabriel García Márquez foi o pai do realismo mágico e laureado com o Prémio Nobel de Literatura em 1982, nomeadamente por uma obra que ainda hoje faz corre muita tinta: Cem Anos de Solidão, que deu um grande impulso ao chamado boom da literatura hispano-americana, fazendo com que o Velho Mundo passasse a ler toda uma nova geração de autores da América do Sul. Na escrita de García Márquez sente-se como a magia invade o real e rege as leis da natureza, em que os eventos fantásticos se tornam extraordinários junto de uma comunidade mítica, a célebre Macondo, que parece viver parado num período medieval, mais ou menos no século em que os conquistadores espanhóis chegaram àquelas paragens. A Macondo de Gabriel García Márquez, uma alegorização do espaço que representa todo o continente sul-americano, é o palco da acção da sua obra de estreia, A Revoada, sendo depois retomada em Cem Anos de Solidão, numa tentativa de retratar nessa povoação o percurso histórico, social e político da América Latina, bem como em Ninguém Escreve ao Coronel, perfazendo neste tríptico o chamado «ciclo de Macondo». Por outro lado, no seu conto «A incrível e triste história de Cândida Eréndira e da sua Avó Desalmada» desenvolve-se a história dessas duas personagens que tinham já aparecido num episódio de Cem Anos de Solidão.
Mas, se lermos bem certas passagens dessa principal obra de García Márquez, podemos perceber como o extra-ordinário não é tão pacífico quanto isso: «Mal tinham começado quando Amaranta reparou que Remedios, a bela, estava transparente, com uma palidez intensa. (…) Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancou os lençóis das mãos e desdobrou-os em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas dos seus saiotes e tentou agarrar-se ao lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a elevar-se. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável.» (p. 185). A anunciar este episódio, não só existe um intróito de tamanho bastante considerável, com cerca de duas páginas, acerca da natureza singular da personagem como se alerta para um volteface, onde predominam os vocábulos (aqui sublinhados) que contribuem para reforçar a aura de mistério ou de sobrenaturalidade. Linhas depois, como que para confirmar que este evento tem muito pouco de natural, ao contrário do que seria suposto no realismo mágico e contradizendo a ideia assente de que os autores mágico-realistas defendem uma ausência ou imparcialidade por parte do autor-narrador, para quem o mágico seria sempre tomado como possível e plausível. Ressalve-se também que ainda na história se falará desse acontecimento como algo de positivamente extraordinário, a que os forasteiros se referem como «patranha» enquanto outros pensam na ascensão aos céus dessa criatura, encarada pelos outros como idiota, como um «milagre» ou «prodígio», ainda que no decurso da narrativa outros eventos igualmente estranhos sejam facilmente aceites. Pode, portanto, haver convergência desses dois mundos, pode até haver aceitação, mas não se exclui, totalmente ou em parte, uma aura de estranhamento.
Gabriel García Márquez justifica o realismo mágico como uma realidade ontológica das Caraíbas, um espaço que já é por si próprio um compósito de mestiçagem e hibridismo, onde assume a importante herança africana: «No Caribe, ao qual pertenço, misturou-se a imaginação transbordante dos escravos negros africanos com a dos nativos pré-colombianos e depois com a fantasia dos andaluzes e o culto dos galegos pelo sobrenatural. Essa capacidade de olhar a realidade de certa maneira mágica é própria do Caribe.» (Plínio Apuleyo Mendoza, O Aroma da Goiaba, p. 89). Gabriel García Márquez, em entrevista, acerca da influência que a leitura de A Metamorfose de Kafka teve em si, desde as primeiras linhas, exclama mesmo: «Porra – pensei- assim falava a minha avó.» (p. 86). O autor refere diversas vezes a avó enquanto uma grande influência igualmente decisiva na sua obra: «era uma mulher imaginativa e supersticiosa, que me aterrorizava noite após noite com as suas histórias de além-túmulo.» (p. 87). Gabriel García Márquez responsabiliza assim esta matriarca pelo seu realismo mágico ou mítico, visto que, atendendo às suas palavras, o autor colombiano defende não ter criado nada de verdadeiramente original, tendo antes repescado no tesouro da mitologia local caribenha: «Para ela, os mitos, as lendas, as crenças das pessoas, faziam parte, e de forma muito natural da sua vida quotidiana. Pensando nela, apercebi-me de imediato que não estava a inventar nada, mas simplesmente a captar e a referir um mundo de presságios, de terapias, de premonições, de superstições (…).» (p. 99). A ideia de um mundo pautado por um pensamento típico da Idade das Trevas ecoa ainda em diversos momentos de colapso, próximos de um Juízo Final apocalíptico, como quando a obra Cem Anos de Solidão termina com o desaparecimento de Macondo da face da terra, da mesma forma que se foi assistindo a horrores como o massacre da companhia bananeira, baseado num facto verídico que terá ocorrido em Ciénaga, em 1928, uma cidade localizada a norte de Aracataca, terra-natal do autor. É ainda emblemática a recorrente frase de Úrsula em Cem Anos de Solidão: «o tempo corre em círculos», especialmente numa saga familiar em que Arcadios e Aurelianos se vão sucedendo ao longo de gerações, como se fossem sempre ressurreições dos seus antepassados, com certas marcas características. A confusão gerada pela profusão dos nomes foi de tal ordem que em certas edições em castelhano se incluíram árvores genealógicas desta família.
As metáforas ganham vida na escrita deste colombiano, a que acresce o realismo da descrição, como o rasto de sangue de José Arcadio Buendía: «Assim que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de uma bala ressoou pela casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu um curso direito pelos passeios desirmanados, desceu escadinhas e subiu parapeitos, passou ao largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo recto em frente da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas rente às paredes para não sujar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou numa curva larga a mesa da sala de jantar, avançou pelo corredor das begónias e passou sem ser visto por baixo da cadeira de Amaranta que dava uma lição de Aritmética a Aureliano José, enfiou-se pelo celeiro e apareceu na cozinha onde Úrsula se preparava para partir trinta e seis ovos para fazer o pão./- Ave-Maria Puríssima! – gritou Úrsula.» (p. 107).
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