Mesmo quando iniciamos a leitura de um livro em branco (leia-se in tabula rasa), como normalmente opto por fazer, há ainda assim uma certa expectativa subjacente, um horizonte que criamos mais ou menos involuntariamente e talvez até de modo inconsciente. Pelo título apenas presumi que se tratasse de um romance biográfico que desse conta do processo de escrita de Frankenstein, um dos livros que mais me marcou na adolescência. A narrativa inicia justamente com um cenário idilíco e uma prosa lírica, quando Mary Shelley caminha nua nas margens do Lago de Genebra em 1816. Contudo, no capítulo seguinte, num Reino Unido pós-Brexit, encontramos Ry Shelley, um médico, numa espécie de convenção ou feira de robótica, que pretende estudar de que forma os robôs afectarão a saúde mental e física dos humanos. Ao longo do livro, as duas histórias alternam, e as personagens de uma época encarnam noutra.
Este romance pretende romper com as convenções, ao mesmo tempo que intenta uma crítica mordaz, divertida, ao limiar da realidade que conhecemos, num mundo que se aproxima cada vez mais do imprevisível. Victor Stein (que partilha o nome do médico do clássico de Mary Shelley), é um investigador da Inteligência Artificial; Ry Shelly, outrora mulher, é um médico transgénero, que fornece partes de corpos humanos a Victor, com quem se envolve numa relação amorosa e sexual que não se pretende classificar; Ron Lord, um empresário que tem em mente criar uma inovadora gama de sex dolls; Polly D, uma jornalista em busca de um furo; e Claire, uma cristã evangélica que consegue ver no trabalho de Victor algo de religioso.
É muito particularmente em Ry que parece recair a simpatia da autora, um transgénero que pode aliás ser tomando como transhumano: «Não sou muito alto, com 1,72 metros. A minha constituição é magra. Tenho ancas estreitas e pernas compridas. Quando fiz a mastectomia, não havia muito a remover, e as hormonas já me tinham alterado o peito. Gosto do meu peito como o tenho agora: forte, suave, plano. Uso o cabelo puxado para trás num rabo-de-cavalo, como um poeta do século XVIII. Quando me olho ao espelho, vejo alguém que reconheço. Foi por isso que escolhi não fazer a cirurgia genital. Sou aquilo que sou, mas aquilo que sou não é uma só coisa, um só género. Vivo com a duplicidade.» (p. 84)
Jeanette Winterson entretece neste livro diversas questões actuais, cada uma por si só suficientemente problemática e passível de se ramificar em diversas perguntas existenciais, mas sem querer deter-se demasiado para as aprofundar. A autora pretende sim brincar com este admirável mundo novo onde homens e mulheres preferem robôs que fazem a vez de brinquedos sexuais e de parceiros perfeitos; em que o alcance da imortalidade é uma possibilidade, como em Frankenstein, através da criogenética ou com um simples download dos nossos cérebros para uma cópia de segurança que sobreviva ao nosso corpo e permita um futuro upload num corpo de carbono; em que uma mulher consegue alterar a sua biologia e transformar-se num homem; onde a incerta perfeição da Inteligência Artificial não será, ainda assim, pior que a inteligência humana, até porque num mundo pós-humano, a inteligência artificial vence a raça humana, pois por não ser sentimental tende para os melhores resultados possíveis (p. 71).
«Li hoje que os seres humanos dizimaram 60 por cento da vida selvagem desde 1970. No Brasil, temos um ditador a fazer-se passar por presidente democraticamente eleito que está a abrir a Amazónia aos interesses comerciais. Os seres humanos não têm mesmo melhor hipótese do que a IA. É demasiado tarde para outras opções.» (p. 232)
Contudo, um leitor atento consegue perceber que a narrativa se contradiz, e daí a sua complexidade ou não fosse este livro também uma paródia, pois noutra passagem Victor proclama, numa declaração de amor a Ry, que «Os seres humanos evoluíram. Estão a evoluir. A única diferença, aqui, é que estamos a pensar e a desenhar uma parte da nossa própria evolução. Deixámos de esperar pela Mãe Natureza. Temos todos de crescer. Não é a sobrevivência do mais apto – é a sobrevivência do mais esperto. Nós somos os mais espertos. Nenhuma outra espécie é capaz de interferir com o seu destino.» (p. 140)
Voltando à história de amor entre Victor e Ry, uma pequena nota sobre a tradução do livro. Intitulado, no original, Frankissstein: A Love Story, a Elsinore optou por simplesmente suprimir o subtítulo. É certo que este pouco parece acrescentar, mas se olharmos o grafismo do título, quer no original, quer na capa da tradução portuguesa, com o jogo de cores, percebemos que este contém também um jogo de palavras, pois podemos separá-lo em 3 palavras: Frank kiss Stein.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.