O regresso de Júlia Mann a Paraty, de Teolinda Gersão, cuja obra é publicada pela Porto Editora, foi lançado em Janeiro deste ano, em simultâneo com a publicação da 7.ª edição da colectânea de contos A mulher que prendeu a chuva e outras histórias. A autora, que completa agora 81 anos e celebra os seus 40 anos de vida literária, foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim, e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada.  

Este pequeno grande livro compõe-se de três novelas que se entrecruzam, de modo surpreendente, e daí poder ser lido como um romance.

Um livro que rememora o século XX, na forma como dá voz a dois dos seus grandes pensadores, nomeadamente Thomas Mann, que cruza filosofia com literatura, e Freud, mentor da psicanálise, com a sua perspicácia em detectar recalcamentos e fazer analogias. E quem mais se exteriorizou na escrita, vivendo as paixões homossexuais que em vida procurou reprimir, do que Thomas Mann? Não precisamos de pensar no mais óbvio Morte em Veneza, mas se lermos a tetralogia de José e os seus irmãos, é difícil não nos ofuscarmos com o amor do autor pelo jovem José. Mas a homossexualidade de Thomas Mann parece tornar-se invisível, face ao pecado maior da mãe, Júlia, que traz em si a mancha de um sangue impuro, mestiço, pois Júlia tem ascendência portuguesa e índia, tendo vivido no Brasil até aos sete anos, sendo depois arrancada a esse mundo de liberdade, de excesso, de cores vibrantes, de doce, quando é levada para a Alemanha.

O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas nunca escritas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. Virtuosismo narrativo que culmina num volte-face, presente e insinuado, mas revelado apenas no final.

P – Uma das primeiras impressões deste livro, nos seus 40 anos de escrita, é a de que cruza parte do seu percurso geográfico: Alemanha e Brasil.

R – É verdade que vivi três anos na Alemanha e dois no Brasil, em São Paulo, e portanto conheci por experiência os dois países. Claro que foi sobretudo no Brasil, que considero o meu segundo país, que me senti mais “em casa”, não só por falar a mesma língua, como pela afectividade das pessoas, e por ser, como nós, um país do Sul. Também eu pertenço ao Sul,  gosto do sol, do calor, do modo de ser dos povos do Sul. Temos obviamente defeitos (sou muito crítica dos nossos), mas não somos em nada inferiores aos povos do Norte. Aliás recuso-me a aceitar que haja culturas superiores ou inferiores, o que há são culturas diferentes, mas todas igualmente válidas. É um erro enorme, e uma arrogância insuportável, a forma displicente, paternalista ou punitiva com que somos por vezes tratados pelos povos do Norte, na União Europeia e não só.

Dito isto, viver, estudar e ensinar na Alemanha, sobretudo em Berlim, foi uma experiência imensamente enriquecedora. Pela primeira vez olhei Portugal a partir de fora, e confrontei-me com uma cultura muito diferente da minha. Encontrei-lhe defeitos, mas também enormes qualidades.

P – Outra primeira impressão é a de que este livro parece iniciar como ensaio para depois se tornar numa ficção, um ensaio de biografia de uma figura secundária na História, quase uma nota de rodapé na vida de outros.

R – Creio que o registo ficcional está sempre presente, desde o início: Parti de uma investigação sobre figuras reais, e os factos narrados aconteceram, mas o leitor percebe de imediato que se trata de um livro de ficção. Júlia é de facto uma figura secundária, comparada com as grandes figuras de Freud e de Thomas Mann. Mas  o livro pretende trazê-la para o primeiro plano e dar-lhe voz, porque também ela é, a seu modo, uma personagem extraordinária, embora tenha vivido na sombra.

P – Nesta narrativa opta por uma cronologia inversa, pois começamos com a geração dos filhos de Júlia Mann, nas primeiras duas novelas, para depois chegar ao percurso de vida da mãe. Como se as gerações vindouras fossem marcadas por um passado que só depois é desvelado. Pode inclusive ler-se que os seus dois filhos eram escritores porque herdaram «a sua capacidade infinita de memória, e o poder de a recuperar, nos mínimos detalhes» (p. 101).

R – É verdade, a cronologia do livro é contrária à da vida real. Freud pensa em Thomas Mann em 1938, Thomas Mann pensa em Freud em 1930, e a história de Júlia termina em 1923, ano da sua morte, portanto a narrativa da última parte aconteceu antes disso.

Também é verdade que foi Júlia a trazer a criatividade e a vocação artística para a família Mann, herança que transmitiu aos filhos, como aliás Thomas Mann reconhece. Antes de Júlia, os Mann eram uma família de empresários e comerciantes, dedicados acima de tudo aos interesses da firma.

P – Ainda que Thomas Mann seja sobejamente conhecido, e figura central às duas primeiras novelas, é curioso como, na terceira novela, Júlia se centra mais em Heinrich. Muitas vezes o que sabemos de Thomas é por contraste com Heinrich.

R – O contraste entre os dois não podia ser maior, e a sua rivalidade/inimizade também não. Thomas considerava inclusive que o maior problema da sua vida era Heinrich. Esse facto só trouxe a ambos um sofrimento a que Júlia não ficou alheia. Como mãe, fez tudo o que podia para os reconciliar, e morreu na ilusão de ter conseguido esse objectivo maior da sua vida. Mas também Freud, na primeira parte do livro, dá grande relevo a Heinrich, e tenta mostrar a Thomas, numa carta que realmente lhe enviou, como a inimizade entre ambos, mais patente do lado de Thomas, só podia ser destrutiva. Mas Thomas não entendeu a mensagem.

P – Ainda que nunca o faça de forma declarada, aquela que parece ser uma grande questão da vida de Thomas Mann, a sua homossexualidade reprimida, que Freud aborda em profundidade, a vida de Júlia parece mais fortemente marcada pela discriminação, pela mancha de que os próprios filhos se envergonham, de ter uma mãe mestiça.

R – A mestiçagem começava na mistura do sangue português do seu avô Manuel com o sangue índio de uma brasileira. E depois a mestiçagem desse sangue já cruzado com o sangue alemão. Essas misturas eram mal vistas na época, nos países europeus do Norte, e a sociedade fechada, burguesa e rica de Lübeck, cidade mercantil e portuária do norte da Alemanha, era muito sensível a essa perspectiva.

P – A figura da mulher (que tem sido central na sua obra) torna-se a certa altura, de forma subtil, o eixo da narrativa da vida de Júlia, nomeadamente na forma como aborda a fachada do seu casamento convencional e burguês. «Fora vendida e comprada para as funções domésticas que desempenhava, mas ela mesma, Júlia, nunca estivera à venda.» (p. 120)

R – É uma característica da época. As mulheres não tinham autonomia económica,  o seu valor dependia da sua beleza, prendas domésticas, e sobretudo do dote, determinante num casamento. Eram de certo modo vendidas e compradas, mas os homens também se vendiam, conforme o valor do dote. Os casamentos eram de conveniência,  o amor não entrava na equação. Claro que os homens, e só eles, tinham liberdade de ter outra(s) mulher(es), o adultério masculino era socialmente aceite, por vezes até encarado como sinal de estatuto e riqueza. Não por acaso o adultério feminino foi um tema literário fortíssimo do século XIX- pensemos por exemplo em Ana Karenina, Madame Bovary, da alemã Effi Briest, ou na Luísa d´O Primo Basílio em Lisboa… Mas, ao contrário do que sucedia com os homens, o adultério feminino foi sempre punido, na literatura como na vida, com o ostracismo social e uma culpabilidade interior e sobretudo exterior, que frequentemente levava à morte das transgressoras.

Uma inesperada mudança de paradigma, talvez não suficientemente valorizada e salientada, é portuguesa: Surge em Alves & Companhia de Eça de Queiroz, no século XIX um livro revolucionário, publicado postumamente só em 1925 – possivelmente por receio da reacção social, uma vez que Flaubert foi a tribunal por ter escrito Madame Bovary… Mas a data tardia da publicação não retira a Eça o mérito de ter ousado escrever um livro muito à frente do seu tempo, em ruptura com o paradigma então vigente.

P – A vida de Júlia é pautada por uma dicotomia irreconciliável, entre o Norte e o Sul («a virtude e a sensatez nórdica, e o desregramento sexual e moral do Sul» (p. 115), entre a vida na Alemanha e a infância no Brasil, de onde foi arrancada a um mundo de liberdade, cores, e de comida, especialmente o que é doce. É curioso como mais tarde na Alemanha Júlia sente o impulso de comer neve (p. 97).

R – São dois mundos profundamente contrastantes, com aspectos por vezes inconciliáveis. O pequeno livro de memórias que Júlia escreve aos cinquenta e dois anos, Da infância de Dôdô, só publicado trinta e cinco anos depois da sua morte, exprime gratidão pela família paterna que a acolheu e aceitou o melhor que pôde e soube. No entanto para o leitor não deixa de ser visível como foi naturalmente traumática para a pequena Júlia a perda da mãe aos seis anos, e, cerca de um ano depois, a mudança inesperada para um mundo inteiramente desconhecido, onde o ambiente social, o clima, a língua e até a religião e os costumes eram completamente diferentes. A avó paterna foi o seu grande apoio, mas também ela morre, poucos anos mais tarde. E, devido à sua idade avançada e circunstâncias de vida, apenas dois domingos por mês, depois do almoço, Júlia e os irmãos podiam ir a sua casa. Nos outros – muitos – dias do mês, viviam em internatos.

P – Este livro ter-lhe-á tomado bastante tempo de pesquisa e de leitura, e releitura, da obra dos autores aqui transformados em personagens. Chega mesmo a fazer uma análise crítica e a passar em revista diversas obras de ambos os irmãos Mann.

R- Muitos anos de leitura e pesquisa, sem dúvida. Mas não fiz crítica, literária ou outra, só referi algumas obras dos Mann nos aspectos em que interessavam ao contexto deste livro.

P – O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas nunca escritas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas.

R – Penso que o escritor, como o psicanalista, é sobretudo alguém que escuta. Também os silêncios, e o que os silêncios pode conter,  significar, ou  tentam em vão calar.

Como o psicanalista, o escritor escuta a linguagem do inconsciente, a que ninguém fala. E escrita literária, como a psicanálise, é uma tentativa de “traduzir” essa linguagem silenciosa, e transformá-la em voz.

P – Freud refere-se com condescendência ao ambicioso projecto da tetralogia José e os seus irmãos, que surge referida recorrentemente. Se lermos a obra é aliás difícil não nos ofuscarmos com o amor do autor pelo jovem José. Já teve oportunidade de (re)ler esta nova tradução recentemente relançada pela Dom Quixote com novíssima tradução do alemão? Partilha da opinião de Freud?

R – Freud não apreciou grandemente o discurso Freud e o Futuro, que Thomas Mann leu em sua homenagem na Sociedade Vienense de Filosofia Médica, como refere numa carta a Lou Andréas-Salomé. Thomas foi dias depois ler-lho a sua casa – por razões de saúde, Freud não estivera presente na sessão. Nesse texto Thomas Mann fala do livro que está a escrever, José e os seus irmãos, e, na conversa pessoal que a seguir tiveram – a única na vida de ambos – e numa carta que Freud depois lhe escreveu, o pai da psicanálise tenta mostrar-lhe que o mito dos grandes homens, como a figura bíblica de José, ou a de Napoleão, que também como José conquistou o Egipto, é um mito perigoso, e que o terreno dos mitos é escorregadio, para personalidades como a dele.

Não faltará quem considere o livro magnífico, e eu respeito obviamente opiniões diferentes da minha. Do meu ponto de vista, está longe de ser um dos melhores livros de Thomas Mann, talvez mesmo de ser um grande livro. Enquanto leitora, reconheço o esforço e a tenacidade do autor, que o escreveu laboriosamente ao longo de  dezasseis anos. Mas é uma obra a que raramente sinto desejo de voltar.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.