Elizabeth Finch é o mais recente romance de Julian Barnes. A nova obra do escritor britânico desafia a definição de romance, depois de em O Homem do Casaco Vermelho, em 2021,nos ter oferecido um belíssimo livro difícil de classificar, pois vive algures entre a biografia, o ensaio, e o romance de uma época, a Belle Époque.
Elizabeth Finch dá aulas de Cultura e Civilização. A sua maneira de pensar não agrada a toda a gente, alunos e outros. Vai irritar uns, intimidar outros, mas sobretudo fascinar uma boa parte dos seus alunos, deixando-os a querer saber mais sobre a sua vida pessoal. É o caso de Neil, o narrador, ator, casado e divorciado duas vezes, pai de três filhos. Mas sobre Neil sabemos muito pouco, pois todo o romance, que abre de rompante justamente com o início da sua primeira aula, gira em torno do enigma daquela que foi a sua professora. Muitos dos seus alunos vieram a tornar-se conhecidos. Ela não tanto, embora seja pontualmente mencionada em livros feministas e de História medieval.
Finch não dava aulas a partir de notas, pelo que as suas aulas compelem constantemente a atenção dos alunos. Da mesma forma que não encarava as aulas como blocos de tempo em que a informação deveria ser despejada, pois impelia os alunos a um processamento contínuo das ideias que lhes apresenta e, especialmente, a fazer uma atenta revisão das verdades que, como tudo o resto, se tornam “descoloridas e murchas” com o tempo (p. 19).
Neil continuará a encontrar-se em almoços regulares com Elizabeth Finch durante 40 anos, sem que se possa verdadeiramente dizer que se tornaram amigos, pois as suas conversas fogem ao pessoal. Quando ela morre, deixa-lhe os seus papéis e a sua biblioteca. E Neil passa então a encontrar-se com o irmão de Elizabeth, para continuar a tentar desvendar mais sobre a sua figura que se tornou tutelar na sua vida, até ao tecer esta narrativa. Poder-se-ia pensar neste romance como uma tentativa do autor de elaborar uma biografia, quase hagiografia, em torno de Elizabeth. Contudo esta figura, por quem Neil parece mesmo tornar-se obcecado (nomeadamente ao tentar descobrir se ela alguma vez se terá apaixonado), está envolta em ambiguidade. O romance contém aliás várias passagens elucidativas quanto à natureza enganadora de se conseguir biografar, e conhecer, alguém, inclusivamente nós próprios: “entender erradamente a nossa história é parte de se ser uma pessoa” (p. 207).
Logo nas primeiras páginas do romance, somos alertados para esta questão pela própria Elizabeth, que disse numa das suas aulas “Lembrai-vos de que, quando virdes uma personagem de romance, de biografia ou de livro de História reduzida e arrumada em três adjetivos, deveis sempre desconfiar dessa descrição” (p. 19).
Mas aquilo que nos prende, quer nos breves e poderosos romances de Barnes, quer nos seus livros que escapam à categoria de romance, soçobra nesta tentativa de biografia. O facto é que este livro tenta de tal forma ser ambíguo que as suas subtilezas arriscam perder a atenção do leitor, como aliás o próprio texto parece afirmar: “Alguns leitores podem considerar a expetativa insuportável. Quando ocorrerá a revelação?” (p. 186). A segunda parte do livro, entre a página 90 e 144, aproximadamente, configura-se numa espécie de ensaio em torno da figura de Juliano, o Apóstata, último imperador pagão de Roma, que desafiou o pensamento monoteísta institucional. Aqui não faltam citações ora abonatórias ora críticas da personagem de Juliano, mesmo daqueles que mal o procuraram entender. Se inicialmente pensamos que este foi um texto deixado nos papéis de Elizabeth, percebemos depois, no início da terceira parte, que foi o narrador quem o escreveu, a partir de leituras deixadas pela sua adorada ex-professora. Note-se que Elizabeth repudiava palavras iniciadas por mono: monólogo; monótono; monomaníaco; monocultural…
Afinal, a mensagem subliminar de Barnes, ao contrapor um pouco forçadamente a figura de Juliano e a da carismática professora, parece ser a da desmontagem de um “mito cómodo”: o do professor que inspira (p. 202).
Julian Barnes nasceu em Leicester e vive em Londres desde 1946. É autor de mais de uma vintena de livros. Ganhou, em 2011, o Prémio Man Booker pelo romance O Sentido do Fim – adaptado ao cinema.
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