Se tivesse de nomear as minhas autoras favoritas, indicaria pelo menos três nomes. Margaret Atwood, Rachel Cusk e Kate Atkinson – todas elas com um registo diferente.

Estou, portanto, muito contente com a publicação de Desfile, mais recente romance de Rachel Cusk, uma autora original, corajosa, inovadora, que tem feito o nunca feito antes. A tradução é de Alda Rodrigues e está publicado pela Relógio d’Água.

Cusk, dona de um registo narrativo autoficcional(?) singular e inventivo, confirma-se como uma grande autora, o que se comprovou recentemente com a atribuição do Prémio Goldsmiths.

Este é um romance sobre criação, sobre representação, sobre arte, que de forma fragmentada e pouco ensaística levanta questões sobre a capacidade de a literatura representar a verdade do mundo.

É ainda um livro sobre a evolução das mulheres, o seu papel na arte e a violência de que são geralmente vítimas. É, portanto, sintomático que a narradora, embora renegue a memória, e queira escrever apenas sobre o presente, recue várias vezes ao momento em que foi atacada por uma estranha na rua.

Por aqui desfilam diversas personagens, e uma narradora, mulher de um artista de seu nome G.

Como aliás todas as outras personagens deste livro, que dão igualmente, e simplesmente, pela inicial G – seja homem ou mulher.

Cusk é autora de Segunda Casa, da trilogia A contraluz, das memórias A Life’s Work e Aftermath e de várias outras obras de ficção e não-ficção, incluindo o seu mais recente romance, Desfile. Foi bolseira Guggenheim. Vive atualmente em Paris.

Fica aqui a recensão ao seu mais recente romance e passamos em revista os seus anteriores.

Segunda Casa, publicado pela Relógio d’Água, com tradução de Sara Serras Pereira, integrou a lista de finalistas do Booker Prize de 2021.

A trilogia Outline, completada em 2018, publicada entre nós pela Quetzal – A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), ambos com tradução de Ana Matoso –, sendo o terceiro e último volume, Kudos (2019), publicado pela Relógio d’Água, representam um novo dispositivo narrativo criado pela autora, inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz, quase como se não houvesse uma intriga propriamente dita, mas sim o desfilar de uma câmara documental.

Desfile

Numa escrita que lida continuamente com o aperfeiçoamento da representação do real, Desfile mergulha justamente a fundo na questão da referencialidade e estilhaça a noção autoral, descentrando constantemente a narrativa entre uma voz narrativa pessoal e outra impessoal – encontrar o tom certo nesta excelente tradução adivinha-se desafiante. Aqui desfilam diversas personagens, enquanto a narração fragmentária alterna entre a primeira e a terceira pessoa. Se o “eu” é fixo, já os outros biografados são vários, enigmaticamente apelidados somente por uma inicial: o aclamado artista G pinta quadros onde a realidade figura de pernas para o ar; a pintora G cria a partir de fotografias; G, fracassado autor, envereda pela realização de filmes que caem igualmente na indiferença do público.

Uma voz narrativa que arrisca no limite, por vezes próxima do ensaístico, e problematiza questões – subtilmente, sem parecer interpelar o leitor (embora na realidade só se possa dirigir a este) –, sobre criação, representação, arte… em suma, a capacidade de a literatura representar a verdade do mundo. Espelhos, janelas, telas, são motivos recorrentes.

Pode um escritor arrogar-se a pretender mostrar o mundo tal como é? Ou sujeitamo-nos, como a narradora, a que a realidade nos atinja com uma pancada?

“Que pretendia ele captar? Que visão inelutável era essa que a escrita estava tão longe de abranger? A natureza declarativa da escrita era demasiado grosseira e seguia demasiadas fórmulas para fazer justiça a esta visão. Os escritores escrevem sobre o que conhecem e já decidiram que está ali. Fingem que não sabem, que não decidiram. Vendem esta ilusão aos leitores, que se associam a eles no labor da fantasia.” (p. 123)

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.