João de Melo, autor açoriano, regressou ao romance cerca de oito anos depois de O Mar de Madrid (2006). No entretanto o autor não esteve parado, publicou um pequeno livro ilustrado por Paula Rego, intitulado O Vinho, cujo conto figurava na colectânea de contos As Coisas da Alma (2003) e uma novela, A Divina Miséria (2009) que configurava um retorno ao realismo mágico ou, como o autor prefere designar, etno-fantástico da sua obra O meu mundo não é deste reino e fechava de certa forma esse ciclo. O meu mundo não é deste reino (originalmente publicado em 1983), considerado por muitos a sua obra-prima, foi relançado pela Dom Quixote.
A 8ª. edição deste romance foi publicada em Junho deste ano, com a particularidade de ter sido também revista e reescrita pelo autor, nomeadamente no que concerne ao despojamento de certos regionalismos que podiam complicar a leitura de um romance que se quer fluído e universal.
João de Melo trabalhou ainda durante cerca de uma década como conselheiro cultural na embaixada de Portugal em Madrid. Reformado do ensino, o regresso a Portugal significou um regresso e uma dedicação exclusiva à escrita, que antes apenas se fazia de modo sazonal, aos domingos, dada a intensidade da sua actividade profissional, e uma acutilante percepção crítica do estado da nação.
Lugar caído no Crepúsculo foi publicado em Outubro de 2014 e à semelhança de O meu mundo não é deste reino o título parte de uma intertextualidade, desta vez não com o texto bíblico mas com uma citação que serve de incipit ao romance de Juan Rulfo: «Um lugar caído no crepúsculo, que é como quem diz, ali onde se nos acaba a jornada.». Estas são aliás duas constantes da obra do autor, cujo imaginário bebe da mitologia cristã (o autor estudou num seminário, à semelhança do protagonista de Gente Feliz com Lágrimas) bem como da literatura sul-americana.
O livro é dedicado à mãe («À memória viva da minha Mãe. Na sua morte.») que, conforme expresso em entrevista ao Jornal de Letras, terá interrogado o autor a propósito do que a esperaria depois da morte.
A obra divide-se em seis cadernos, onde se nota também a intertextualidade que se estabelece com A Divina Comédia de Dante. Os dois primeiros cadernos, «Assim na Terra como no Céu» e «O Peso da Alma», preparam o leitor para a viagem que se vai encetar, onde temos um protagonista, um ator famoso de nome Tomás Mascarenhas que nos narra as suas aventuras na primeira pessoa. O início da narrativa inicia assim de forma normal, com uma aturada descrição da cidade de Lisboa: «Encostando o ombro a uma esquina do velho Teatro Nacional, onde tantas vezes fora aplaudido e ovacionado, pôs-se a ouvir o movimento surdo e enrolado da cidade. Viu as pessoas de sempre à conversa nos portais de acesso aos pátios e às lojas; outras a andar lado a lado nos passeios, com alguns pares de mãos dadas ou abraçados, felizes, a deslizarem por entre uma gente triste e calada que caminhava de olhos no chão; e outras sentadas nos cafés, saudando-se, despedindo-se, sorrindo ou não a quem passava; e ainda outras que entre si lamentavam o estado do negócio, de pé à entrada dos pequenos comércios (…).» (pág. 13).
É apenas no segundo capítulo que se adensa uma certa confusão quando um magote de gente começa a querer cercar o ator, ao descer a Rua Augusta, e subitamente o impossível acontece: «Ao vê-la desprender-se do corpo e da bem-amada terra da sua cidade natal, e começar a subir aos céus, compreendeu que a alma se libertara de dentro de si e voava sozinha no ar, sob o firmamento de Lisboa.» (pág. 21). Neste primeiro caderno, constituído por apenas dois breves capítulos, a personagem parece incerta da sua condição, pois só nesta passagem nos apercebemos de que o que antes foi descrito como banal e quotidiano ganha laivos de fantástico em que provavelmente a sua descrição de Lisboa era já feita a partir de um outro plano.
Ainda a propósito do realismo mágico, a própria obra procura deixar bem claro ao leitor como categorizar esta narrativa ou os eventos que nela se narram quando a personagem se interroga: « «Isto só podem ser coisas da literatura», pensou então. «Outra vez o realismo mágico ou fantástico a apartar-me da minha própria pessoa (…). E como posso eu estar aqui a pensar, a dizer tudo isto, se afinal a minha alma se foi embora de mim e eu continuo vivo e de pé em terra, com a boca aberta, cheia de espantos, a assistir a semelhante desvario?» »(pág. 22).
Nos cadernos que se seguem e que de certa forma redefinem o Além entre Limbo, Purgatório, Paraíso e Inferno, haverá outras personagens a narrar cada um desses espaços a partir da sua própria perspectiva.
Curiosamente um desses espaços acabará por ver anulada a sua existência no decurso do romance, num dos momentos-chave da narrativa, em que a figura de Deus parece irromper até que se percebe que é afinal o Sumo Pontífice (Deus permanecerá oculto nos seus recantos divinos) que vem decretar a extinção do Limbo – à semelhança do que aconteceu efectivamente com o Papa Bento XVI em 2007. É deliciosa essa passagem: «De repente, foi um fragor no céu a abrir-se, a rasgar-se como um imenso manto de seda estendido por cima das nossas cabeças. Despertou-nos da indiferença e do abatimento em que nos encontrávamos. Qual relâmpago feroz, ou bicha faiscada de luz a descoser o firmamento, uma fenda de claridade encheu-nos de tal modo o olhar, que quase nos cegou a brancura da sua intensidade. Caímos dos nossos nichos baixo. Tombámos como pesos mortos, uns por cima dos outros. (…) Parecia uma ressurreição.» (pág. 71).
Apesar do humor e da ironia a que nos habituara já noutros romances, o autor mantém um tom sério no retrato que procura fazer tanto da realidade do país como desses vários planos sobrenaturais da existência. Baseando-se na tradição e na imagologia cristã, mas nem sempre os respeitando (como quando descreve o Inferno como uma superfície desolada toda coberta de neve, situada na outra margem de Lisboa), o autor parte ainda de outras referências da tradição popular e da própria literatura portuguesa que, noutras épocas, contribuiu também para imaginar como seria a vida depois da morte. Outro dos momentos altos dá-se quando percebemos que quem tenta colocar ordem na confusão que reina na barca que zarpa do Cais das Colunas, pelo Tejo acima, é o Mestre Vicente – o clássico autor da trilogia das barcas.
Apesar de este livro poder ter na sua génese o falecimento da mãe, o autor não se limita a interrogar aspectos metafísicos da existência humana pois as questões que se levantam estão sobretudo ligadas à condição de se estar vivo e por que valores se deve conduzir a nossa existência. Desta forma o autor disserta sobre várias profissões, como corruptos corretores da Bolsa, coloca os artistas no Paraíso, os ditadores no Inferno, bem como os assassinos, os burlões, e toda a «grossa ladroagem dos dinheiros públicos» (pág. 224).
Uma fabulosa efabulação da vida que nos espera para além da vida…
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