Há alguns anos fiz-me a promessa de começar o novo ano a ler um daqueles clássicos eternamente adiados. Este ano senti-me compelido a voltar a Mishima, de quem ainda só li Neve de Primavera, o primeiro de uma tetralogia que se afigura genial. Em boa hora foi reeditado este Confissões de Uma Máscara, publicado pela Livros do Brasil, na coleção Dois Mundos. Mal sabia eu, ao reunir os seus livros, que este é o ano do centenário do nascimento de Yukio Mishima.

A tradução e apresentação é de António Mega Ferreira.

A sensação ao começar é a de Proust com a sua Madalena, isto é, um homem a recordar o seu passado a partir de um momento-chave da sua infância. Neste caso, como se afirma logo nas primeiras linhas, ele lembrar-se-á de tudo, assim que nasceu – o que será impossível, uma vez que os recém-nascidos mal abrem os olhos no momento do parto. A Madalena aqui é a luminosidade dourada da claridade refractada no rebordo da selha onde lhe terão dado o seu primeiro banho. A partir desta primeira memória, o narrador, na primeira pessoa, associa algumas outras recordações apenas aparentemente desconexas. A principal memória, a mais impactante, é a de um limpa-latrinas que ao passar, quando ele tinha 4 anos de idade, o deixa fascinado. O narrador evoca, em especial, as calças de algodão azul-escuro muito justas deste jovem operário.

Originalmente publicado em 1949, Confissões de Uma Máscara narra a vida do narrador/autor desde o nascimento à juventude, numa análise introspetiva sobre identidade, pulsão sexual e procura da conformidade. É uma obra pioneira na franqueza do tema abordado, a homossexualidade – ainda que, a meu ver, pelo menos nestas primeiras páginas, as alusões a essa “amarga mistura de desejo e vergonha” (p. 29) sejam relativamente veladas. Um livro “estranho” que, afirma o narrador, já sabia, desde logo, teria de ser escrito.

A prosa é ligeira, leve, poética, e puxa-nos de imediato, como «O som de um cântico, simples, como um estranho queixume, aproxima-se.» (p. 26)

Yukio Mishima, novelista e dramaturgo, pseudónimo de Kimitake Hiraoka, nasceu em Tóquio em 1925 e suicidou-se de forma mediática, praticando o ritual japonês seppuku, a 25 de novembro de 1970, manifestando assim a sua discordância perante o abandono das tradições japonesas e a aceitação acrítica de modelos consumistas ocidentais. O idealismo que enforma a sua obra e conduzirá a sua vida está enraizado no tradicionalismo militar e espiritual dos samurais, e a sua conceção da arte liga-se a um elevado culto da alma e do corpo. Um dos mais conhecidos escritores japoneses, várias vezes apontado como candidato ao Nobel da Literatura.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.