Se a biografia de Agustina (aqui apresentada o ano passado com entrevista à autora) pode ser lida com o enlevo de um romance, e se no romance anterior (também aqui recenseado) se cruzava ficção e ensaio, Isabel Rio Novo dá agora um novo passo no seu percurso romanesco, confirmando-a uma vez mais como uma nova voz da literatura portuguesa contemporânea, e presenteia-nos com o que poderíamos tentar definir como um romance biográfico, mas que se esquiva, como os livros anteriores, a ser classificado numa só categoria. Ver artigo
O Dia dos Prodígios é um dos livros mais importantes para mim. É uma das obras que eu trabalhei, durante mais de 8 anos, na minha vida académica.
É o romance de estreia de Lídia Jorge, uma das maiores autoras da Literatura Portuguesa contemporânea.
Foi publicado em 1980, por acaso no mesmo ano em que eu nasci, e na altura marcou uma grande mudança na literatura portuguesa, numa sociedade que também mudou com a Revolução do 25 de Abril.
Uma das personagens favoritas do romance, e de todos os romances que conheço, é Branca.
Branca está a bordar um dragão numa colcha branca mas começa a ter medo do desenho, pois sente o dragão a mover-se pela casa como um monstro, uma assombração. Como se todo o tempo e energia que ela gastou no bordado lhe tivessem conferido algum poder vital e dado vida: «Agora o dragão começa a ter uma forma de verdadeiro animal réptil voante. Porque o contorno da asa cinza vivo se abre em leque no meio do pano e o corpo do bicho de escamas miúdas. (…) Sendo potente e metalizado enrosca pelo tecido, e as patas abertas parecem agarrar seres vivos.» (p. 88). Ver artigo
As aves não têm céu é o novo romance de Ricardo Fonseca Mota, publicado pela Porto Editora.
Leto é um homem à beira do precipício, que cruza a cidade nas noites insones, atormentado pela memória recorrente da morte da filha, de que se sente responsável: «Leto não dorme. Desde essa noite fechar os olhos passou a ser um acto proibido. Não esquecer a dor é a última prova de amor.» (p. 13)
Atormentado pela culpa, reinventando um futuro possível para a filha, mas sempre consumido pela memória da noite em que a perdeu no negrume da morte, no fundo escuro de um penhasco, este pai quer «morrer mas não quer parar de sofrer. Quer sofrer mas sente vergonha de estar vivo.» (p. 13)
Deixado pela mulher, divorciado, deprimido, oprimido pelo remorso da culpa, medicado, despedido, desalojado, Leto vive imerso numa noite escura, percorrendo uma cidade deserta, onde pouca gente se move naquele horário, mas é também no colo de uma mulher que ele entrevê uma luz salvífica.
O narrador, omnipresente ao longo do texto, assume-se, por vezes, na primeira pessoa do singular, mas, geralmente, na primeira pessoa do plural, conforme tenta deixar claro ao leitor que apenas pretende contar a história conforme a conheceu. História esta que ganha também contornos de tragicomédia quando o narrador, que tanto diz noutras passagens, indicia muito subtilmente, ainda no início do romance, a possibilidade de Leto não ser realmente o pai da criança…
Numa linguagem lírica, com passagens em que a prosa respira e pulsa como um poema, Ricardo Fonseca Mota incorre ainda num certo experimentalismo, em que a narração feita a partir da perspectiva da personagem é entrecortada, com falas ou com frases que umas vezes se completam intercaladamente e noutras ficam por fechar, como quem tenta registar o próprio pensamento desconexo de Leto, que vive numa linha ténue entre a loucura (ou a doença mental) e o passado suspenso num momento eterno de um trauma.
Ricardo Fonseca Mota nasceu em Sintra em 1987 e vive na Tábua. O seu primeiro romance, Fredo (Gradiva), venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís em 2015, foi semifinalista do Oceanos, Prémio de Literatura em Língua Portuguesa, em 2017, e está traduzido e publicado na Bulgária. Formado pela Universidade de Coimbra, é psicólogo clínico e promotor cultural. Ver artigo
David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra é publicada pela Dom Quixote.
O seu livro Índice Médio da Felicidade foi adaptado ao cinema por Joaquim Leitão e vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura. Escreve ainda literatura infanto-juvenil, com obras de destaque como Não te afastes ou O Tubarão na Banheira.
Depois de Debaixo da Pele, aqui recenseado em 2017, David Machado aventura-se num romance sobre 2 jovens, David e Marco, que no Verão de 2001 estão numa road trip pelos Estados Unidos da América. Apesar do narrador na primeira pessoa, o leitor pode sempre levar o seu devido tempo a querer associar o nome da personagem ao do autor. Estes 2 jovens irreverentes e recém-licenciados, que se envolvem em situações por vezes controversas, decidem suspender com esta viagem o desfecho que é convencionalmente esperado ao terminar os seus cursos. A «viagem depois da viagem» é uma espécie de horizonte sem metas, em que se alimenta o sonho de viver sem prisões nem regras. A única certeza que norteia David e Marco é serem livres e não cair na armadilha de uma vida normal, feita de rotinas e hábitos: «Pouco tempo antes, eu também fora assim, orientando-me pelo mesmo guião aborrecido pelo qual toda a gente regia a sua vida, sem questionar nada, uma normalidade convencionada, um logro cómodo para todos, porque tudo o que era diferente exigia um esforço que preferíamos evitar. Olhávamos o mundo através da mesma lente baça. Todos os nossos gestos eram repetidos – embora não soubéssemos explicar porquê. Éramos réplicas perfeitas uns dos outros, ovelhas num rebanho autónomo, sem necessidade de pastor, seguindo-se umas às outras. Eu tinha vinte e três anos: estava na altura de deixar o rebanho.» (p. 10)
Estes dois gafanhotos, aos saltos entre uma cidade e outra – até que subitamente são de tal forma abanados pela realidade que percebem qual é o seu inevitável destino –, transportam consigo muito pouco além dos seus cadernos que servem de diário da viagem. Pois essa é outra certeza a que se agarram: querem ser escritores. Os eventos que lhes ocorrem podem assim ser definidos de duas formas – “isto é muito Faulkner” ou “isto é Hemingway puro”: «Enquanto Hemingway descreve sem grande detalhe os acontecimentos – deixando espaço para o leitor interpretar aquilo que as personagens estão a sentir e a pensar -, Faulkner narra sem freios e de forma exaustiva o caos interior de um ser humano – oferecendo ao leitor todos os ângulos e leituras possíveis. De certa forma, podemos considerá-los pais de toda a literatura que se lhes sucedeu, pois, de maneira mais ou menos consciente, qualquer escritor acaba por escolher uma destas duas abordagens.» (p. 21)
A Educação dos Gafanhotos é ainda isso – um romance que trata a ténue relação entre a literatura e a vida e qual delas pode ser mais verosímil. De como a literatura só interessa quando bebe da vida, apesar de esta por vezes superar qualquer plausibilidade e lógica. De como um escritor pode até ter muito mau génio e detestar pessoas, apesar de escrever para elas – e é sintomático que o jovem David acabe por ser esmurrado algumas vezes em virtude das suas diatribes verbais, pois cospe a verdade como um veneno e nem todos reagem bem quando se vêm confrontados com as mentiras que contam a si próprios. De como alguém sente necessidade de escapar à sua verdade perante os outros e de se redefinir na mentira mediante as mais rocambolescas ficções. E de como a literatura pode ser o derradeiro escape para alcançar a liberdade e reescrever a sua própria história: «Escrever era a minha forma de rejeitar qualquer definição que o mundo me quisesse impingir. Através da literatura, eu mesmo me definiria» (p. 145). E de como a memória pode trair um escritor, ao ponto de as personagens e situações que narra conforme aconteceram parecerem tão inverosímeis que o próprio narrador suspeita se terá realmente acontecido assim ou se agora o imagina. Ver artigo
Rui Cardoso Martins nasceu em Portalegre em 1967. Foi um dos fundadores do jornal Público, trabalhou como repórter internacional e cronista, participou na produção de programas televisivos (Contra-Informação) e na escrita de argumentos para cinema.
Deixem Passar o Homem Invisível, agora reeditado pela Tinta-da-china, foi publicado em Julho de 2009 e venceu em 2010 o Grande Prémio de Romance da APE, destacando o autor como uma voz a ter em contra entre a nova geração de autores.
No incipit, o autor anuncia que «Cegos são pessoas que não vêem, na minha opinião», frase que ressoa desde logo o romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, com o incipit: «Se podes olhar vê, se podes ver repara». Esta associação fará tanto mais sentido se considerarmos que enquanto na obra de José Saramago era uma mulher quem guiava os cegos, aqui é um cego que guia uma criança.
Deixem Passar o Homem Invisível pode resumir-se, em traços largos, como a história de um cego que caiu por um buraco, surgido após uma forte chuvada em Lisboa, juntamente com uma criança perdida que entretanto resgatara da confusão desse dilúvio, e ambos tentarão depois encontrar uma saída por entre os labirintos dos subterrâneos de Lisboa. Numa linguagem enxuta e simples, o tom é ligeiro e irónico: «O céu devia estar cheio de rezas e choros, porque nessa tarde condensou a água de repente e choveu tudo duma vez. Fez-se escuro como a pele dum rato e, minutos depois, largou o peso na terra.»
O real é narrado a par e passo com o irreal e o tom adoptado para a narração das consequências da chuvada torna-se risível, onde o mais sério, digno de ser notícia televisiva, se entrelaça com o anedótico.
A narrativa desenrola-se num plano de alternância, entre o périplo (ideia cara a outros romances de Rui Cardoso Martins) de António e de João, o escuteiro, nos subterrâneos de Lisboa (e que mais parece representar uma espécie de descida aos Infernos) e os esforços do Comandante que planeia a operação de resgate à superfície, auxiliado pelo melhor amigo de António, Serip, o mágico ilusionista (o próprio nome é um anagrama, pois deve ler-se como «Pires ao contrário»). A narrativa alterna ainda entre o tempo presente e passado, com constantes analepses do que foi a vida de António, provocadas pelo seu constante rememorar, enquanto prossegue a sua viagem pelos subterrâneos.
Este livro representa ainda uma alegoria de um tempo em que os portugueses andavam perdidos e às escuras a tactear o caminho entre a incerteza política e uma recessão económica. Ver artigo
Voar no Quarto Escuro parece ter começado como um livro de contos. Conta a história de Eduarda, uma viúva que se casa segunda vez como forma de refazer a vida, a sua e a da filha de 11 anos. Alice, que prepara o funeral da mãe e procura esconder desejos que há muito se tornaram óbvios. Celeste, que gosta de ser admirada, por homens e por mulheres, mas prefere manter-se à distância. Catarina, que coloca no afã da limpeza e do desvelo pelo senhor Antero um chamamento de amor não-correspondido. Adelaide, a médica que recorre ao prostituto de vinte anos para encontrar a intimidade que o marido lhe nega. Ema, a mulher de poder que gera uma criança morta, prenúncio de um casamento em ruína. Beatriz, dilacerada entre o não-sentir dos antidepressivos e a necessidade de sentir demasiado para poder escrever. Célia, a ama e testemunha de um casamento de revista entre duas vidas desencontradas. Cada trecho narrativo corresponde a uma personagem feminina. Cada texto designado pelo nome da personagem central. Mas Voar no Quarto Escuro, romance de estreia de Márcia Balsas, publicado pela Minotauro, não é um livro de contos. Assim o acusa o encadeamento temporal entre as micronarrativas que se complementam e iluminam reciprocamente, refractando a realidade destas mulheres a partir de várias perspectivas; os nomes que começam a transitar de capítulo para capítulo; a forma como gradualmente na narrativa de uma das personagens se faz ouvir a voz de outra das oito mulheres, como se a narrativa começasse a oscilar entre a multitude de personagens e admitisse a impossibilidade de continuar a prender cada história num espaço estanque. Um romance que tem muito pouco de romântico, pois as relações interpessoais entre mulheres e homens são sempre desencontradas, áridas, impessoais. Até a relação meramente transaccional de Adelaide, talvez a personagem mais central de todas as oito, chega ao fim quando o jovem prostituto parece envolver-se amorosamente com o marido de outra das personagens. E quando há espaço para um canto de amor, este subsume-se a uma breve passagem quando Celeste sente que pode vir a apaixonar-se por Alice: «talvez prefira as mulheres, é maior a cumplicidade partilhada, os carinhos são mais compensadores, há uma meiguice que o corpo do homem não consegue dar» (p. 68).
A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (…). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135).
Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga». Ver artigo
Talvez devamos começar pelo jogo de ilusão patente na capa, pois ao título de Autobiografia segue-se a categorização de Romance, sobre um fundo de páginas em branco rasgadas. Não estamos portanto, pensa o leitor, no campo das biografias romanceadas. Talvez seja um daqueles romances em que se cruza a memória e vivência pessoal com a ficção? Mas depara-se o leitor, ao adentrar-se no romance, com uma epígrafe de Saramago em que se salvaguarda que «tudo é autobiografia» para depois, logo na primeira linha, encontrar a frase «Saramago escreveu a última frase do romance.» (p. 9) E, duas páginas depois, quando lemos que a campainha tocou, quem se levanta para abrir a porta é José. José Saramago, portanto, pensa o leitor, apenas para páginas adiante se aperceber que este José fala de um outro José (Saramago), que este José está a tentar escrever o seu segundo livro, e se sente partido em pedaços, enquanto o outro, Saramago, se sente completo, terminado de escrever o seu mais recente romance, intitulado Todos os Nomes, com um protagonista – de seu nome José… José, o deste livro, venceu ainda um prémio com o seu primeiro romance, à semelhança do autor, o verdadeiro, que ganhou o Prémio José Saramago (na sua segunda edição, em 2001, atribuído pela Fundação Círculo de Leitores) por volta da mesma idade do jovem escritor, personagem, com o seu primeiro livro. E este jovem escritor, José, será depois convidado a escrever a biografia do outro José, o Nobel, desdobrando-se este Autobiografia num universo literário de múltiplas realidades paralelas.
O jogo de espelhos mantém-se ao longo da narrativa, repartida em duas, mais ou menos alternadas, sendo que a história se centra mais em José do que em Saramago, enquanto o leitor vai desfiando o fio da narrativa, com as suas ideias e suspeitas, para se guiar neste exercício literário como num labirinto em que ficção e biografia se cruzam. E da mesma forma que apontamentos pessoais da vida de Saramago são reinventados num Saramago de papel, também nestas páginas se abrem outros umbrais por onde entram ainda na história figuras de carne e osso, ou inspiradas no seu referente real, como Pilar, assim como figuras de papel que conhecemos de outros romances de Saramago: o editor Raimundo Silva (História do Cerco de Lisboa); Lídia (O Ano da Morte de Ricardo Reis); Mau-Tempo (Levantado do Chão); Bartolomeu de Gusmão (Memorial do Convento); Fritz (A Viagem do Elefante).
Confluem ainda na narrativa espaços reais, da geografia íntima de Peixoto, como a Rua de Macau, e outras com nomes de ex-colónias, e muitas das personagens são ainda ressonâncias e referências de um espaço mais vasto, que assinalam a passagem de José (Luís Peixoto), o verdadeiro, pelo mundo, como é o caso de Cabo Verde. Mas a narrativa desvela mais e mais camadas, pois não só as personagens e situações são piscares de olho a um leitor atento de Saramago, como o Fritz d’A Viagem do Elefante cegar subitamente sem explicação ou esta Lídia, cabo-verdiana, ser uma lojista que em muito lembra a companhia de Ricardo Reis, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde o duplicado de Pessoa (um desdobramento também ele afim de O Homem Duplicado de Saramago) se substancia num heterónimo tornado ortónimo.
Este é talvez um dos mais inovadores romances da literatura contemporânea portuguesa de um autor que se tem afirmado um pouco pelo mundo inteiro, e que já tem viajado para escrever. Uma homenagem nada beatificada a uma figura tutelar na sua escrita e na sua vida. A afirmação de que cada escritor é um protegido e um legado vivo de todos aqueles que o precederam e que pousam no seu ombro no acto da escrita.
José Luís Peixoto, autor publicado pela Quetzal, arriscou muito, tanto que, e esse é um dos momentos cruciais do livro que se pode designar genial, chega a fazer uma incursão no maravilhoso, com um episódio que tem tanto de insólito (tal como no universo saramaguiano sempre pronto a explorar os possíveis da história) como de simbólico e de homenagem, quando o anúncio do Prémio Nobel de 1998 desencadeia uma chuva… de livros de Saramago.
A leitura de Autobiografia é como uma refracção que se estende ao infinito, e que só se resolve com mais do que uma leitura do livro, onde podemos dar por nós a ler sobre a personagem (retirada de outro livro) que está a ler, agora, o mesmo livro que nós. Ver artigo
A propósito da atribuição hoje do Prémio José Saramago, lembrei-me de publicar esta recensão, ainda que extensa, publicada recentemente na Colóquio Letras Ver artigo
Esta pequena pérola constituiu a estreia do poeta e crítico literário Eduardo Pitta na ficção, em 2000, e é publicada agora Dom Quixote nesta 3.ª reedição, a partir da revisão feita à 2.ª edição em 2007. Persona é, como o título indica, uma revisitação da memória pessoal do autor, pois há uma certa quota de autobiografia, e é uma «versão moderna de uma educação sentimental». Classificado como uma «trilogia de contos morais», este livro é, na verdade, um pequeno romance em que cada micronarrativa corresponde a uma fase de vida da mesma personagem. Afonso Sacadura, primeiro aos 12, depois aos 18, e na terceira e mais longa narrativa, como uma curta novela, aos 22, vive o seu coming of age, em que, ironicamente, o evento que parece determinar o início da sua infância ou inocência é quase idêntico ao que ocorre de novo em jovem adulto. Em 1962, Afonso é punido por ter tido relações contranatura com um colega. Apesar de Tiago ser 10 meses mais velho, mas por ser um jogador de basquete, um belo rapaz louro naturalmente masculino, a culpa recai inteiramente sobre Afonso, mais efeminado, conforme apontado pelo médico que o chama para examinação quando lhe pergunta porque é que ele cruza as pernas, «atitude tão pouco masculina» (p. 18). Esse mesmo psiquiatra que despe as calças e leva a mão de Afonso à sua braguilha, de onde retira o seu pénis erecto e sugere a Afonso que pense nele como um sorvete que pode ir lambendo e mordiscando gentilmente, para se poder avaliar a sua «capacidade de resposta» (p. 21). Este evento de assédio e culpabilização, que é rapidamente narrado, numa linguagem que tem tanto de estilizada como de crua e directa, pode ser esquecido rapidamente conforme passamos para o segundo conto, em que Afonso viaja pelo Kalahari em 1967 com Ralph, um típico sul-africano branco com ar de jogador de râguebi. Mas em Pesadelo, o último conto da trilogia, com 50 páginas, enquanto os outros rondam a dezena de páginas, Afonso parece reviver o episódio de antes, mas agora nas devidas proporções, em que se vê como arguido num auto colectivo sobre homossexualidade nos três ramos das Forças Armadas, no Moçambique de 1971, onde há muitos «tubarões» (p. 49) envolvidos, incluíndo um tenente-coronel e um capelão. É aí que Afonso descobre o nojo, quando se torna vítima de uma investigação descabida, que aliás convirá esquecer como se nunca tivesse acontecido, dirigida exclusivamente a homossexuais «suspeitos de pouca simpatia pelo regime» (p. 80), pois ao contrários dos heteros são «facilmente manobráveis» (p. 59), além de que se a FRELIMO visse uma foto do sargento com a boca cheia isso iria comprometer seriamente a guerra.
O que impressiona na escrita de Eduardo Pitta é que na vivência da sexualidade de Afonso, e dos que o rodeiam, não há cedência à vergonha nem ao pudor, até porque Afonso move-se no contexto social da alta burguesia onde os podres são imensos, independentemente da orientação sexual de cada um, pois também temos homens que em menos de 24 horas despacham em viagem, como se fossem bagagem, mulher e filhos para aproveitar uma nova paixão, e mulheres sobejamente conhecidas pelo seu apetite insaciável por jovens bem constituídos de 20 anos. Inclusivamente num mundo de etiqueta onde é sabido que «um homem não bebe Sauternes» (p. 74), a homossexualidade de Afonso parece não chocar ninguém na família, embora o pai considere tal como «um desporto arriscado» (p. 82).
Persona é uma narrativa ousada e corajosa em que se reconta os últimos anos da guerra colonial a partir da perspectiva de uma minoria, melhor dizendo, de uma perspectiva outra. Tal como escritoras mulheres escreveram sobre a guerra colonial na sua perspectiva íntima, pois mesmo não tendo participado activamente na guerra, em pleno combate, nem por isso a vivenciaram menos. Uma das cenas mais memoráveis (também exemplarmente ilustrada na adaptação cinematográfica da obra) é o tiroteio gratuito aos flamingos em A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, que aliás viveu em Moçambique nesse tempo, praticado pelos dois militares, como se de um desporto se tratasse, na presença das suas mulheres, Eva Lopo e Helena de Tróia (e repare-se na força simbólica destes dois nomes, associados quer ao mito, quer à guerra, quer ao princípio dos tempos). Eduardo Pitta, dizíamos, escreve agora numa perspectiva queer (para fazer uso de uma palavra já em desuso, ligada aos estudos de literatura gay) sobre o que significou ser homossexual em tempos de guerra e de tirania, ao mesmo tempo que, conforme se percebe na última frase, se prenuncia já o final dos tempos de então, com a queda de um Estado normativo e policiado, o término de uma guerra sem sentido, e a subsequente descolonização e liberdade. Ver artigo
«Ninguém quer uma criança crescida»
Entrevista a Patrícia Reis sobre As Crianças Invisíveis Ver artigo
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