Órix e Crex – O Último Homem, de Margaret Atwood, publicado no final do ano passado pela Bertrand Editora, é uma reedição de uma autora há muito aclamada internacionalmente e que tem sido agora reprojectada, após o sucesso de A História de uma Serva. Ver artigo
Robinson Crusoe, obra essencial à formação do romance moderno inglês publicada em 1719 e, possivelmente, o segundo livro mais traduzido em todo o mundo, a seguir à Bíblia, cruza o documentário com a ficção. Daniel Defoe aposta novamente nessa fórmula três anos depois, mais ou menos quando deflagra nova epidemia de peste em Marselha, ao escrever este Diário do Ano da Peste. Tudo aponta para que este narrador na primeira pessoa, que assina o final do livro como H. F. seja um tal de Henry Foe, tio do autor. Defoe procura assim dar a crer que se apoiou num diário deste seu antepassado para narrar esse fatídico ano de 1665, quando a peste grassou em Londres mais de 200 000 vidas. Defoe teria então cerca de 5 anos. Ver artigo
A Escola de Topeka, de Ben Lerner, publicado pela Relógio d’Água no final do ano passado, com tradução de Alda Rodrigues. Considerado como um dos grandes autores contemporâneos, este livro foi finalista do Prémio Pulitzer, vencedor do Los Angeles Times Book Prize e considerado como um dos 10 Melhores Livros do Ano para o New York Times, a revista Time e o Washington Post. Sendo este o seu terceiro romance, Ben Lerner sofre no entanto, entre nós, da desvantagem da sua obra estar traduzida de forma dispersa e talvez por isso quase passar despercebida. O seu romance de estreia Leaving the Atocha Station continua por publicar entre nós. A Teorema publicou 10:04, o seu segundo romance, em 2015, e a Elsinore publicou o ensaio Ódio à Poesia (a poesia é curiosamente ominipresente na obra do autor, na sua prosa poética, bem como nas constantes citações implícitas de poemas). Ver artigo
Viagem ao País da Manhã, de Hermann Hesse, publicado pela Cavalo de Ferro em Janeiro deste ano, é uma narrativa breve e incontornável do autor alemão agraciado com o Nobel em 1946. À semelhança de outras obras suas, Hesse narra o percurso singular de uma personagem cuja vida é eivada de espiritualidade e conhecimento, como Demian, Siddhartha ou Goldmundo. Ver artigo
Rapazinho, de Lawrence Ferlinghetti, foi publicado pela Quetzal em novembro de 2019, ano em que o autor completava 100 anos. Faria 102 anos no próximo 24 de março. Morreu dia 22 de Fevereiro, vítima de doença pulmonar, em casa em São Francisco, nos Estados Unidos, junto da família. Ver artigo
1984, de George Orwell, foi publicado pela Livros do Brasil na colecção Dois Mundos em simultâneo com a Quinta dos Animais. Dois clássicos fundamentais agora reeditados por uma boa parte das grandes editoras (a capa da Porto Editora conta ainda com ilustrações de Vhils), assinalando a entrada da obra de Orwell em domínio público, que procuram novos leitores ou simplesmente uma releitura, uma vez que parece ter chegado o tempo das distopias, entre pandemia, desgovernação, novas tecnologias, e a ascensão de regimes neofascistas. Note-se que logo em 2017, com a eleição de Trump, as vendas de 1984 (originalmente publicado em 1949) dispararam.
Winston Smith, de 39 anos, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é reescrever a História. Vive em Londres, a principal cidade de Pista Um, terceira província mais populosa da Oceânia, onde a filosofia dominante é o Socing. O mundo está dividido em três grandes superestados, Oceânia, Estásia, Eurásia, em guerra permanente há 25 anos.
Corre o ano de 1984, se bem que Winston não tem já a certeza, pois ao reescrever a História falsifica-se todo o passado e apesar de ele próprio contribuir para tal não tem como o provar: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e ruas foram renomeadas, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua, dia após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão.» (p. 160)
A reescrita da verdade, aliada à ideia de se viver numa guerra permanente, permite a uma sociedade completamente hierarquizada, descendente dos antigos regimes totalitários, manter a sua estrutura intocável. Os habitantes da Oceânia, cuja vestimenta foi em tempos uma farda dos trabalhadores manuais, vivem na pobreza e ignorância, o que se tornou fácil com a manipulação da ordem pública pela imprensa e uma vigilância permanente por parte do Grande Irmão, figura que parece viver nos telecrãs omnipresentes que tudo registam e tudo emitem, num escrutínio que parece até capaz de ler pensamentos. Por isto, acções simples como Winston registar os seus pensamentos num diário ou amar Julia revelam-se actos criminosos:
«Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e sentia desejo, ponto final. Mas, hoje em dia, não era possível ter um amor puro, nem desejo puro. Nenhuma emoção era pura, porque estava tudo misturado com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax uma vitória. Tinha sido um golpe contra o Partido. Tinha sido um ato político.» (p. 131)
Winston Smith, de 39 anos, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é reescrever a História. Vive em Londres, a principal cidade de Pista Um, terceira província mais populosa da Oceânia, onde a filosofia dominante é o Socing. O mundo está dividido em três grandes superestados, Oceânia, Estásia, Eurásia, em guerra permanente há 25 anos.
Corre o ano de 1984, se bem que Winston não tem já a certeza, pois ao reescrever a História falsifica-se todo o passado e apesar de ele próprio contribuir para tal não tem como o provar: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e ruas foram renomeadas, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua, dia após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão.» (p. 160)
A reescrita da verdade, aliada à ideia de se viver numa guerra permanente, permite a uma sociedade completamente hierarquizada, descendente dos antigos regimes totalitários, manter a sua estrutura intocável. Os habitantes da Oceânia, cuja vestimenta foi em tempos uma farda dos trabalhadores manuais, vivem na pobreza e ignorância, o que se tornou fácil com a manipulação da ordem pública pela imprensa e uma vigilância permanente por parte do Grande Irmão, figura que parece viver nos telecrãs omnipresentes que tudo registam e tudo emitem, num escrutínio que parece até capaz de ler pensamentos. Por isto, acções simples como Winston registar os seus pensamentos num diário ou amar Julia revelam-se actos criminosos:
«Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e sentia desejo, ponto final. Mas, hoje em dia, não era possível ter um amor puro, nem desejo puro. Nenhuma emoção era pura, porque estava tudo misturado com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax uma vitória. Tinha sido um golpe contra o Partido. Tinha sido um ato político.» (p. 131)
Uma Paixão Simples, de Annie Ernaux, com tradução de Tereza Coelho, publicado na coleção Miniatura da editora Livros do Brasil, é um pequeno mas controverso livro de 72 páginas, uma narrativa que quebra os estereótipos do romance sentimental, adaptada ao cinema por Danielle Arbid.
Depois de ter ficado surpreso e maravilhado com a técnica narrativa da autora em Os Anos, publicado também em 2020 pela Livros do Brasil (talvez um dos melhores livros do ano passado, e apresentado no Postal do Algarve), li este livro com expectativa.
A história de uma mulher culta, independente, divorciada, com filhos adultos, que vive numa completa suspensão a viver uma paixão cheia de regras (que a si própria impõe), à espera dos momentos livres de um homem casado, estrangeiro, mais jovem (quando o reencontra, finda a paixão, ele terá então 38 anos): «Tudo era uma carência interminável, a não ser o momento em que estávamos juntos a fazer amor. E, além disso, obcecava-me o momento seguinte, em que ele se ia embora. Vivia o prazer como uma dor futura.» (p. 41)
Podemos supor que a narradora escreve como se dirigisse uma carta a um eu mais jovem, sem admoestar ou zombar a sua cegueira de então, mas na verdade, naquele que parece ser um texto assumidamente autobiográfico tão honesto quanto intenso, ela escreve para reviver essa mesma paixão pois quando começou a escrever era «para continuar nesse tempo» (p. 55). Da mesma forma que ao vivê-la tinha a impressão de estar «a escrever um livro, a mesma necessidade de não falhar nenhuma cena, a mesma preocupação com todos os pormenores» (pp. 17-18). Uma paixão que pode ser simples, mas nem por isso menos plena de significado ao ponto de nela se consumir: «E até pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim desta paixão – sem dar um sentido preciso a «até ao fim» -, da mesma maneira que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto, daqui a uns meses.» (p. 18)
Para esta narradora, corajosa e contida, não se trata de «explicar» a sua paixão, mas de «expô-la», advertindo o leitor de que «é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante» (p. 37). Mas escrever, ainda que não o assuma plenamente, vai além de um acto egoísta e privado, e é também uma forma de comunicar com o mundo: «Pergunto a mim própria se não escrevo para saber se os outros fizeram ou disseram coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas. Ou mesmo para que as vivam, esquecendo-se de que leram aquilo um dia em qualquer parte.» (p. 59)
E a autora-narradora está ciente do que publicar este texto implica: «Quando eu começar a passar este texto à máquina, e ele me aparecer em caracteres públicos, a minha inocência acabou.» (p. 63)
Depois de ter ficado surpreso e maravilhado com a técnica narrativa da autora em Os Anos, publicado também em 2020 pela Livros do Brasil (talvez um dos melhores livros do ano passado, e apresentado no Postal do Algarve), li este livro com expectativa.
A história de uma mulher culta, independente, divorciada, com filhos adultos, que vive numa completa suspensão a viver uma paixão cheia de regras (que a si própria impõe), à espera dos momentos livres de um homem casado, estrangeiro, mais jovem (quando o reencontra, finda a paixão, ele terá então 38 anos): «Tudo era uma carência interminável, a não ser o momento em que estávamos juntos a fazer amor. E, além disso, obcecava-me o momento seguinte, em que ele se ia embora. Vivia o prazer como uma dor futura.» (p. 41)
Podemos supor que a narradora escreve como se dirigisse uma carta a um eu mais jovem, sem admoestar ou zombar a sua cegueira de então, mas na verdade, naquele que parece ser um texto assumidamente autobiográfico tão honesto quanto intenso, ela escreve para reviver essa mesma paixão pois quando começou a escrever era «para continuar nesse tempo» (p. 55). Da mesma forma que ao vivê-la tinha a impressão de estar «a escrever um livro, a mesma necessidade de não falhar nenhuma cena, a mesma preocupação com todos os pormenores» (pp. 17-18). Uma paixão que pode ser simples, mas nem por isso menos plena de significado ao ponto de nela se consumir: «E até pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim desta paixão – sem dar um sentido preciso a «até ao fim» -, da mesma maneira que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto, daqui a uns meses.» (p. 18)
Para esta narradora, corajosa e contida, não se trata de «explicar» a sua paixão, mas de «expô-la», advertindo o leitor de que «é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante» (p. 37). Mas escrever, ainda que não o assuma plenamente, vai além de um acto egoísta e privado, e é também uma forma de comunicar com o mundo: «Pergunto a mim própria se não escrevo para saber se os outros fizeram ou disseram coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas. Ou mesmo para que as vivam, esquecendo-se de que leram aquilo um dia em qualquer parte.» (p. 59)
E a autora-narradora está ciente do que publicar este texto implica: «Quando eu começar a passar este texto à máquina, e ele me aparecer em caracteres públicos, a minha inocência acabou.» (p. 63)
Annie Ernaux nasceu na Normandia, em 1940, e estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, formada em Letras Modernas. É atualmente uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017) e o Prémio Formentor de las Letras (2019) pelo conjunto da sua obra.
O terceiro volume da tetralogia publicada pela Dom Quixote José e os seus irmãos, intitulado José no Egito, de Thomas Mann, retoma, sem pausas nem saltos temporais, a narrativa do volume anterior, no ponto em que ficámos, momentos depois de José ser socorrido do fundo do poço em que os irmãos o deixaram para morrer durante dias.
Ainda que tenha aprendido uma dura lição, que o levará daí em diante a ser mais contido nas palavras e no orgulho (e simbolicamente perdido o seu manto multicolor), José continua ainda a revelar «algo de tortuoso, ao mesmo tempo amável e malicioso, algo que conseguia cativar a atenção dos demais» (p. 419). É particularmente divertida a forma como ao ser resgatado por uma caravana de mercadores madianitas que o conduzirão até ao Egito (Egipto?) para o vender como escravo, José dirá ao ancião “que o levam” enquanto o velho responde «Mete lá na tua cabeça que és tu quem chega ao lugar aonde nos levam os nossos passos. Não vou para o Egito para te conduzir a tal destino, mas sim porque tenho lá negócios a tratar» (p. 33).
José será vendido como escravo a Putifar, o eunuco chefe dos guardas do palácio do faraó, enquanto mantém a sua absoluta confiança em Deus: «Acreditava, sim, que o Altíssimo forjava planos futuros, talvez ainda não completamente claros para a razão humana, a respeito da sua pessoa, tendo-o, por isso, arrancado à sua vida passada e lançado num mundo totalmente novo.» (p. 51)
Poder-se-ia até pensar que ao ter partido sem olhar para trás, e quase sem se deter a pensar em Jaacob, o pai que tanto o amava (e preferia aos outros filhos), José se prepara para uma nova vida, não fosse o facto de ele se considerar morto a vogar no reino do submundo – e é particularmente curiosa a ligação profunda e constantemente evocada e explicitada entre o Egipto e o Mundo dos Mortos, além de que José sempre ouvira Jaacob, o pai, dizer que o Egipto equivalia ao submundo.
Talvez por isso o esmero narrativo das descrições do Egipto são sempre absolutamente fantásticas e estonteantes, evocativas de um reino de riqueza e ostentação que pode até chocar a frugalidade do deus dos hebreus. Igualmente delicioso é a forma como o narrador constantemente se intromete na narrativa, numa modernidade pouco própria ao tempo, e se justifica ou explica perante o leitor.
Thomas Mann considerou esta «monumental narrativa da história bíblica de José a sua magnum opus», baseado num profundo estudo da História, com detalhes pródigos e convincentes, Mann evoca o mundo mítico dos patriarcas e dos faraós. Os quatro livros desta tetralogia são pela primeira vez traduzidos directamente do alemão, num trabalho notável e de fôlego da professora Gilda Lopes Encarnação, que nos oferece uma tradução cadenciada e lírica.
Um Tambor Diferente, de William Melvin Kelley («o gigante esquecido da literatura americana»), a ser traduzido e reeditado um pouco por todo o mundo, foi editado pela Quetzal Editores em Portugal, com tradução e prefácio de Salvato Teles de Menezes. É o primeiro romance deste escritor afroamericano, publicado em 1962 quando William Melvin Kelley tinha apenas cerca de 23 anos, e que o equiparou a autores como Faulkner. Esse é outro dos aspectos curiosos do livro, cuja publicação original remonta há sessenta anos: não só a temática é claramente actual e oportuna, como a prosa ágil e envolvente tem um toque moderno e original. Thomas Merton afirmou: «é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje».
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa, e que é reconhecido pelos negros por estar a ser educado para um ser humano decente…
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam.
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa, e que é reconhecido pelos negros por estar a ser educado para um ser humano decente…
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam.
O Último Verão de Klingsor, de Hermann Hesse, publicado pela Dom Quixote em Junho de 2020 com tradução de Patrícia Lara (a partir da edição mais antiga da Guimarães), foi escrito pouco depois do fim da I Grande Guerra e narra o último verão da vida de um famoso pintor, Klingsor, que vive uma explosão final de criatividade.
A julgar pela capa com base num quadro de Van Gogh, percebemos que Klingsor é um pintor expressionista, e ao longo desta narrativa, nem sempre linear, desfila a reflexão de uma vida vivida no extremo. Se bem que é, ainda assim, superado pelo seu velho amigo (e alter ego?) Louis, o Cruel, «o viajante, o imprevisível, que vivia no comboio e tinha uma mochila como atelier».
«Só pintamos por faute de mieux, meu caro. Se tivesses sempre no colo a rapariga que te agrada de momento e a sopa que te apetece no prato, não te incomodarias com esta brincadeira infantil e disparatada. A natureza tem milhares de cores, e nós metemos na cabeça reduzir a escala a vinte. A pintura é isto. Nunca se está contente, e ainda por cima temos de ajudar a sustentar os críticos.» (p. 21)
O livro tem laivos autobiográficos, pois Hesse começou a pintar por volta de 1917 e este livro é escrito dois anos depois, no Verão de 1919, quando o autor se instala numa aldeia nas montanhas para iniciar uma nova fase, sem a família, provavelmente, tal como o protagonista do livro, a viver um «amor serôdio de um quarentão por uma rapariga de vinte anos» (p. 38). Além disso, um pormenor curioso e de somenos relevância, também Li Tai Pe, outra personagem que parece ser, afinal, mais um alter ego do protagonista, nasceu a 2 de Julho tal como Hermann Hesse (e que é também o meu dia de aniversário). Conforme se pode ler na badana do livro, uma das personagens, Hermann, o poeta, pode ainda ser confundido com o próprio autor, e Louis por Louis Moilliet, um artista seu amigo.
Um romance breve e incontornável de um dos autores que mais aprecio, e que tal como outros livros de Hesse narra o percurso singular de uma vida eivada de espiritualidade e conhecimento, como Demian, Siddhartha ou Goldmundo.
A julgar pela capa com base num quadro de Van Gogh, percebemos que Klingsor é um pintor expressionista, e ao longo desta narrativa, nem sempre linear, desfila a reflexão de uma vida vivida no extremo. Se bem que é, ainda assim, superado pelo seu velho amigo (e alter ego?) Louis, o Cruel, «o viajante, o imprevisível, que vivia no comboio e tinha uma mochila como atelier».
«Só pintamos por faute de mieux, meu caro. Se tivesses sempre no colo a rapariga que te agrada de momento e a sopa que te apetece no prato, não te incomodarias com esta brincadeira infantil e disparatada. A natureza tem milhares de cores, e nós metemos na cabeça reduzir a escala a vinte. A pintura é isto. Nunca se está contente, e ainda por cima temos de ajudar a sustentar os críticos.» (p. 21)
O livro tem laivos autobiográficos, pois Hesse começou a pintar por volta de 1917 e este livro é escrito dois anos depois, no Verão de 1919, quando o autor se instala numa aldeia nas montanhas para iniciar uma nova fase, sem a família, provavelmente, tal como o protagonista do livro, a viver um «amor serôdio de um quarentão por uma rapariga de vinte anos» (p. 38). Além disso, um pormenor curioso e de somenos relevância, também Li Tai Pe, outra personagem que parece ser, afinal, mais um alter ego do protagonista, nasceu a 2 de Julho tal como Hermann Hesse (e que é também o meu dia de aniversário). Conforme se pode ler na badana do livro, uma das personagens, Hermann, o poeta, pode ainda ser confundido com o próprio autor, e Louis por Louis Moilliet, um artista seu amigo.
Um romance breve e incontornável de um dos autores que mais aprecio, e que tal como outros livros de Hesse narra o percurso singular de uma vida eivada de espiritualidade e conhecimento, como Demian, Siddhartha ou Goldmundo.
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