A Sombra do Vento, publicado em 2001, foi o primeiro romance de Carlos Ruiz Zafón a ser traduzido entre nós, tendo-se tornado num êxito de vendas. O autor nasceu em Barcelona, em 1964, e tornou-se num dos autores mais lidos em todo o mundo, traduzido em mais de quarenta línguas.

A história começa de forma envolvente, situada na cidade de Barcelona, no ano de 1945, num ambiente de cinza, como o próprio título evoca, ou não estivesse o país a reemergir dos horrores da guerra civil. Acompanhamos o percurso de um rapazinho, Daniel Sempere, ainda a sofrer com a perda da mãe, e que quando faz o seu décimo aniversário recebe um presente que determinará toda a sua vida. Filho de um livreiro, Daniel é levado pelo pai a um sítio especial que poucos conhecem, o Cemitério dos Livros Esquecidos. Neste espaço dissimulado entre tantos outros edifícios e guardado por um porteiro sem idade, Daniel percorre uma biblioteca labiríntica onde estão todos os livros outrora publicados e que se encontram agora esquecidos. Nesse ambiente de pós-guerra, e considerando as pilhas de livros queimados pelo regime nazi na Segunda Guerra, não deixa de ser pertinente que a missão de Daniel seja escolher um livro, livro esse que tal como seu autor, foi tragado pelo esquecimento, tendo-se tornado perfeitamente desconhecido com o tempo. O papel de Daniel é zelar por esse mesmo livro que escolheu e que doravante lhe é confiado, sendo que é ao ler esse mesmo livro que Daniel lhe pode insuflar nova vida, como todos nós leitores. Sem querer fugir ao assunto em mãos, podiam tecer-se inúmeras considerações em torno desta trama, como, por exemplo, deixar-nos a imaginar qual o tamanho real de uma biblioteca que pudesse albergar todos os livros escritos ao longo da história da humanidade. Ou até mesmo a extensão de um corredor onde pudessem estar perfilados nas estantes todos os livros que fomos lendo ao longo de uma vida. E quantos deles ficaram irrevogavelmente esquecidos, ou pelo menos com certos pormenores desbotados, como um retrato a sépia, pois a nossa memória tem limites, da mesma forma que cada vez mais haverá livros a serem irremediavelmente relegados para o esquecimento, enquanto nos debatemos com dezenas (ou mesmo mais) de novidades literárias que todos os meses chegam aos escaparates das livrarias. Daniel Sempere, dizíamos, escolhe um pequeno livro justamente intitulado A Sombra do Vento, de um autor espanhol chamado Julián Carax. Essa escolha traçará toda a sua vida a partir desse momento, não só pela história que irá descobrir nas páginas do livro, e que o fará remontar a acontecimentos ocorridos duas décadas antes, como pela obsessiva busca e procura de sentido quanto ao que terá acontecido a esse “obscuro” Julián Carax. Daniel será absorvido pelo mistério desse autor que foi supostamente morto em Barcelona, logo no início da guerra civil, e cujas obras desapareceram por completo da face da terra, a não ser pelo livro que ele resgatou do Cemitério, talvez o único que se salvou de ter sido queimado como todos os outros por uma estranha personagem, que se faz passar por Carax, e terá adquirido todos os exemplares do romance que pôde para os queimar. O jovem Daniel deixa de viver a sua própria vida, enquanto tenta reconstruir o quebra-cabeças da vida do autor, juntando episódios que lhe são relatados por diversas pessoas que terão feito parte da vida de Julián Carax. Mas é ao reconstruir a vida de Carax, que Sempere consegue também criar a sua própria identidade, e, naturalmente, apaixonar-se.

Uma personagem inesquecível, pelo seu carácter cómico, é Fermín, um funcionário da livraria do pai de Daniel, que esconde um passado enquanto agente republicano, depois perseguido e torturado, e reduzido à mendicidade. Fermín tem qualquer coisa de Sancho Pança, na forma como ajuda Daniel e como disserta acerca da vida, do amor e das mulheres, sendo tão especial ao ponto de regressar como o protagonista de O Prisioneiro do Céu. Infelizmente, em A Sombra do Vento, bem como em quase todas as obras de Zafón, um início arrebatador, original e envolvente parece depois resvalar numa série de lugares comuns – O Prisioneiro do Céu, com a sua história de vingança, afigura-se bastante a uma recriação de O Conde de Monte Cristo. Com O Jogo do Anjo, segundo livro do autor a ser publicado, em 2008, regressamos ao universo de «O Cemitério dos Livros Esquecidos», constituindo-se assim um tríptico, embora o ambiente seja bastante mais negro, como compete aliás, para se recontar de forma eficaz a história de um autor, David Martín, que parece vender a alma ao Diabo (clara alusão ao mito de Fausto) quando aceita uma lucrativa comissão de um misterioso editor parisiense, que representa as Éditions de la Lumière. Logo no parágrafo de abertura deste romance, David Martín constata como todo o escritor incorre numa espiral descendente a partir do momento em que recebe algum pagamento pelo seu trabalho ou algum elogio ou aclamação da crítica: desse momento em diante, o autor está condenado e a sua alma tem um preço…

Como tende a ser hábito, partiu-se dos últimos livros para a tradução dos anteriores livros do autor. O autor iniciou a sua carreira literária em 1993 com O Príncipe da Neblina, O Palácio da Meia-Noite, As Luzes de Setembro e Marina. A tradução destes romances tem seguido o ritmo de um livro por ano, sendo que, em Espanha, os primeiros três livros foram publicados num volume conjunto, pois têm em comum o facto de serem thrillers “antiquados” (remontam à primeira metade do séc. XX) e imbuídos de uma aura de sobrenatural e horror. Marina foi o primeiro romance a ser traduzido e embora não seja considerado como parte integrante dessa trilogia (cujas histórias são, aliás, completamente independentes) é um romance que facilmente se enquadraria na mesma. São livros que se poderiam dizer de formação do autor, além de serem romances juvenis, até porque na sua escrita, nomeadamente nos livros da chamada Trilogia, o ambiente é mais cinematográfico do que literário, como o próprio autor salvaguarda na sua nota introdutória. As Luzes de Setembro acabou de ser publicado e é de leitura compulsiva, narrando um episódio que afetará a vida de uma família empobrecida e convidada a viver numa gigantesca mansão de um fabricante de brinquedos e autómatos (motivos que ressurgem em Marina). Uma leitura ideal para as férias de verão, mesmo quando se arrasta um pouco. É inegável que os livros de Zafón se leem de um fôlego mas a sensação de promessa com que muitas vezes começamos acaba por se desvanecer. Nuno Júdice ressalva, no seu livro ABC da Crítica, a discussão que se tem gerado em torno de autores como Zafón cuja obra será «extraordinária» e deveria entrar no «cânone da literatura actual». Por fim, cita Germán Gullón que afirma estar perfeitamente de acordo com essa opinião generalizada e remata: «Acontece ser uma excelente obra que merece entrar no cânone da literatura de entretenimento.».

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.