
Depois de Pequeno-almoço de campeões e Matadouro cinco, chegou a vez deste Cama de gato, do irreverente e contestatário Kurt Vonnegut, autor cuja obra tem vindo a ser publicada pela Alfaguara. A tradução é de Miguel Cardoso.
Ler Vonnegut é sempre uma viagem, e uma vertigem, como fica claro na epígrafe do romance, «Nada neste livro é verdadeiro», e também nas primeiras linhas deste primeiro capítulo, intitulado «O Dia em Que o Mundo Acabou».
“Chamem-me Jonas. Os meus pais chamaram. Enfim, mais ou menos. Chamaram-me John.
Jonas, John… Ainda que eu fosse Sam, seria um Jonas: não porque tenha trazido infortúnio aos meus semelhantes, mas porque alguém ou algo me forçou a estar, impreterivelmente, em determinados lugares, em determinados momentos.” (p. 15)
Jonas, ou John, é um jornalista que quer saber mais sobre a catástrofe de Hiroxima. A pesquisa leva-o à ilha de San Lorenzo e ao enigmático Felix Hoenikker, um dos criadores da bomba atómica, vencedor de um Nobel, agora ocupado com a sua mais recente invenção: o gelo-nove, substância capaz de extinguir a vida na Terra, e que é detida apenas por duas potências mundiais, naturalmente os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Os capítulos, mais de 100, são breves, muitas vezes escritos em jeito de pergunta-resposta, como convém aos fragmentos de entrevista que parecem constituir. Ao longo da narrativa, o narrador, que se assume logo de início como um ex-cristão, agora dedicado ao bokononismo, cita passagens de «Os Livros de Bokonon».
Pode ler-se, a dada altura: “Quando um homem se torna escritor, assume uma obrigação sagrada de produzir beleza, iluminação e conforto a toque de caixa.” (p. 230)
Na prosa delirante e fascinante de Kurt Vonnegut não é isso que se faz, até porque as voltas que a história percorre em pouco contribuem para dar sentido a um mundo sem sentido. Este livro é, contudo, mais acessível – sem nos atrevermos a usar a palavra linear – do que outras obras do autor. A forte crítica social, como sempre, está lá, ao falar-nos das intrigas políticas daquela estranha nação, a República de San Lorenzo, onde Jonas conhece Papa Monzano, o governante ditatorial da ilha, e a religião ilegal fundada por Bokonon. À habitual sátira da Guerra Fria própria dos seus livros que são clássicos de contracultura junta-se uma intrigante história apocalíptica sobre o destino do planeta – não é por acaso que o livro termina num “rebuliço cataclísmico” (p. 257).
Kurt Vonnegut (1922-2007) nasceu em Indianápolis, nos Estados Unidos, descendendo de emigrantes alemães que chegaram ao país no século XIX. Por influência do pai, estudou Bioquímica na Universidade de Cornell, embora tivesse mais interesse nas Humanidades. Alistou-se no Exército em 1943. Pouco depois do suicídio da mãe, foi enviado para a Europa, e combateu na Batalha das Ardenas. O seu esquadrão foi dizimado pelas forças alemãs. Como prisioneiro de guerra, seguiu para Dresden, na Alemanha, onde viveu num matadouro e trabalhou numa fábrica alimentar. Em 1952 publicou Player piano, o seu romance de estreia. A crítica sentiu-se desconcertada, desde o começo, perante um escritor que não encaixava nos géneros mais canónicos nem nos estilos mais em voga.
Leave a Comment