O texto abaixo é retirado do site da Editorial Presença apenas para apresentar a obra, enquanto não a lemos de forma crítica: Ver artigo
Praça de Itália, o primeiro livro de Antonio Tabucchi, publicado em 1973, tem agora a sua primeira edição em português.
Nas livrarias a 7 de Março. Citando a editora Dom Quixote: Ver artigo
Chega às livrarias a 27ª. EDIÇÃO (com data de Fevereiro de 2017) do quarto romance de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, que a par de O Meu Mundo não é deste Reino pode ser entendido como um díptico sobre os Açores, visto que os outros dois livros (Memória de ver matar e morrer e Autópsia de um Mar em Ruínas) se referem a memórias da guerra colonial, onde encontramos referências explícitas a esse modo de vida das ilhas em passagens como: «o pasmo dum arquipélago que encalhara na mística religiosa do século XVI.» . Ou note-se ainda a alusão que é feita intratextualmente ao seu anterior romance: «em que todos viram (…) a caricatura de um país mitológico e intemporal…» , pois o narrador assume-se, ainda que num logro intencional e ilusório, como sendo uno com a voz autoral. Contudo, se Gente Feliz com Lágrimas pode parecer, num primeiro impacto, uma continuação de O Meu Mundo Não É Deste Reino, em que se retoma esse povo do Rozário quando, num tempo mais actual, se atreve finalmente a partir além desse mar branco que envolve as ilhas, a ambiência mágica que antes perpassava na Ilha vai desaparecer, associada à própria partida do protagonista para Lisboa. Além disso, a opressão aqui retratada prende-se com um menino que vive num medo constante de um pai violento e que materializa na paisagem da sua infância esses fantasmas, puramente internos, que o assombram:
Tudo irreal e oculto, como o próprio sol o era na sua esfera parda e oblíqua. Envolvendo as mães dos pêssegos e dos outros frutos, as matas de criptoméria eram presenças fulvas, cor de estanho, postas ali de propósito pelos antepassados só para captarem o tempo parado dos mortos. O ninho esdrúxulo do Grande Medo abria-se para receber o frio de meu corpo. Passavam então, como num desfile, por cima das copas das árvores, os mortos da família (…). Ver artigo
As altas montanhas de Portugal, de Yann Martel, mais uma grande narrativa da Editorial Presença, é o mais recente romance do autor canadiano de A vida de Pi.
Apesar do ritmo lento na primeira parte do livro, se bem que há quem defenda que essa é a parte mais rica e que depois a intriga desacelera, é uma história divertida e original muito bem escrita e com laivos filosóficos. O livro é composto por três narrativas distintas que acabarão por se entrecruzar misteriosamente, de forma mais ou menos revelada.
O autor de A vida de Pi refere nesse mesmo livro que o seu projecto inicial era escrever uma história passada em Portugal em 1938 mas que ao chegar à Índia e ao ouvir a magnífica história que cativou milhares de leitores por todo o mundo (e deu origem a um filme de Ang Lee) do menino à deriva num barco com um tigre acabou por abandonar essa ideia inicial.
Em As altas montanhas de Portugal o autor regressa a Portugal, começando por narrar a história de Tomás, no ano de 1917, que vive em Lisboa e é facilmente distinguível por entre as ruas da cidade pois anda “às arrecuas”, como forma de protesto a Deus, depois de ter perdido a mulher e o filho. Deparando-se com um mistério decide encetar uma viagem de carro ao Norte (penso sempre que Altas Montanhas é no fundo uma tradução incerta de Trás-os-Montes) em busca de um crucifixo do século XVII que pode muito bem conter ou representar um segredo que faria tremer os fundamentos do próprio Cristianismo. A sua travessia feita de carro, aliás num dos primeiros automóveis do país, e por alguém que nem sabia conduzir, tem um fim inesperado. Esta é das três narrativas a que se afigura mais simples, mas apesar da monotonia da viagem de carro descrita à exaustão acaba por prender o leitor ao livro logo de início.
Na segunda narrativa, 30 anos depois da história de Tomás, encontramos o Dr. Eusébio Lozaro, patologista, que prestes a começar uma autópsia é visitado pela esposa…
Na terceira narrativa, passamos à actualidade, onde encontramos Peter Tovey, um membro do Parlamento do Canadá, que após a morte da esposa acaba por adoptar um chimpanzé e muda-se com o animal para Portugal. Esta é a história mais intrigante, na forma como se questiona a natureza humana e animal, a relação entre ambos (que já se encontrava noutras obras do autor), e começamos finalmente a ligar as várias pontas soltas em torno destes homens e de uma escultura que acarreta uma possível revisão da religião e da fé.
A palavra saudade, tipicamente portuguesa, é aliás algo que atravessa todo o livro, pois as três narrativas encontram-se claramente interligadas pelo sentimento de perda de um ente amado: todos os três homens perderam as esposas. Ver artigo
Villa Celeste (publicada em 1985 pela Ulmeiro e agora integrada em O Separar das Águas e outras novelas da Relógio d’Água) traz o subtítulo de «Novela Ingénua». Porque se trata de uma narrativa com cerca de 50 páginas? Porque a sua protagonista, Teresinha – e note-se o diminutivo carinhoso -, é ela própria ingénua, capaz de encontrar felicidade nas coisas mais simples, como uma criança? Porque se trata de um conto alegórico, com uma certa moral social, narrado como quem conta uma história, com um certo jeito oralizante? Ou, como apontou alguma crítica na altura, porque consiste numa novela de «simplicidade ideológica, homóloga aliás da singeleza do estilo e da linearidade da efabulação narrativa» ?
A autora foca-se aqui noutro tipo de pobreza, a de espírito, mas sem se desviar do tema da cisão social que se prefigurava em O separar das águas. A narrativa começa pelo fim, a anunciar o clímax que se seguirá – «Teresinha Rosa já passava dos sessenta quando a vida lhe armou um campo de batalha e ela tomou o gosto ao pelejar.» (pág. 85) – para depois recuar até aos vinte anos da personagem, momento em que «os pais, a braços com seis filhas para casar, a colocaram como costureira portas adentro» (pág. 85).
Mantém-se, ainda que de forma mais secundária, a questão da classe social, ou de como os ricos usam os pobres, inclusive sexualmente, e a representação da mulher em traços menos positivos. Teresinha quando é acolhida na casa de um ramo da fidalga família dos Lebrões, onde começa por trabalhar por costureira, passa portanto a viver no sótão (imagem recorrente na escrita da autora e que nos remete para esse livro…) e será visitada por mais de vinte anos pelo patrão, Manuel Lebrão (note-se o aumentativo pejorativo), que era conhecido como um libertino rapidamente rejeita a mulher mas mantém-se fiel à empregada. A mulher aliás encara essa situação muito tranquilamente: «Fora com muito alívio que a mulher, criaturinha anémica, de gestos empastados, se vira rejeitada dos nojos conjugais. Cumprira o seu dever parindo um rapazinho muito louro, enfermiço, que Teresinha acolheu no peito generoso. Uma vez garantida a permanência dos bens familiares em legítima herança, a senhora Lebrão passou a dedicar-se aos seus vários achaques e ao jornal da paróquia.» (pág. 86) (itálicos nossos). Só nesta passagem podemos logo relevar três aspectos centrais às primeiras obras de Hélia Correia: a camponesa, isto é, a mulher pobre, é mais forte e enérgica; as mulheres de uma certa burguesia ou velha aristocracia é descrita de forma débil e uma vez cumprido o seu papel de garante da sobrevivência da linhagem facilmente se desliga do marido, ou é por este rejeitado, que preferirá encontrar prazer em mulheres de classe social mais baixa; o sexo entre marido e mulher é muitas vezes descrito como algo grotesco e bestial.
A narrativa carece de precisão temporal ou espacial, mas acabaremos por perceber, quando Villa Celeste se vê rodeada de prédios em construção que estamos na periferia de uma cidade, onde não faltará um bairro pobre, e, através da referência aos cabo-verdianos e pedreiros, sempre descritos com simpatia e compaixão, que podemos situar a narrativa na altura da descolonização, quando retornados e emigrados procuram trabalho e casa perto das grandes cidades. A Revolução de Abril será também referida perto do final da narrativa, se bem que com uma certa ironia: «estava o país inteiro de grãozito na asa», «ali para milagres já bastava ver os polícias acariciar as criancinhas» (pág. 115). Teresinha Rosa que é ao início vista como uma bruxa ou uma velha louca (a andar pelo campo a apanhar ervas e a falar sozinha) acaba por ser depois percebida como alguém cuja principal vocação é ajudar e confortar, cada vez mais angustiada pelo urbanismo que grassa em redor da sua Villa Celeste: «Com aquela cidade nascida à sua volta, começou a sentir os males da solidão. (…) O que profundamente a perturbava era ver aqueles prédios a transbordar assim de criaturas a quem não conseguia falar ou ser prestável» (pág. 104). Ver artigo
Um daqueles livros que queremos começar com apenas um conto para ir alternando com outras leituras mas, subitamente, um conto sabe a pouco e queremos sempre ler mais. Desenha-se um sorriso no rosto logo desde as primeiras linhas com o tom irónico, humorístico, e a crítica sagaz que entretece uma certa análise perspicaz e prática do insólito dos contos de fadas com a observação cáustica e mordaz de alguns comportamentos da actualidade, das massas, do ser humano, que talvez não seja tão diferente nos dias de hoje do que quando vivia nas trevas da Idade Média… Cada conto não dura mais do que umas 5 a 10 páginas, mas é justamente na condensação que se pode ver a mestria e o domínio da narrativa. As histórias discorrem de forma ligeira, sem que nos identifiquemos propriamente com as personagens, talvez porque tal como nos contos de fadas sentimos sempre essa distância entre este nosso mundinho e o irreal das suas peripécias. Quando pensamos nestas personagens dotadas de fabulosa beleza ou outros atributos que tais de grande utilidade na vida, podemos perguntar-nos, no mais íntimo, «Quem não iria querer lixar estas pessoas?», como o próprio narrador indica logo ao abrir do livro. Da mesma forma que os heróis ou protagonistas não são propriamente movidos pelas mais nobres razões, até à data não há finais felizes, pelo contrário, são tristes e quase sempre solitários, nos antípodas do “e viveram felizes para sempre”.
A edição da Gradiva é absolutamente fantástica, com ilustrações de Yuko Shimizu de um carácter negro a condizer com o tom dos contos. Ver artigo
O separar das águas (1981) foi a primeira novela de Hélia Correia (as suas primeiras três novelas foram publicadas na obra abaixo ilustrada pela Relógio d’Água, em 2015) recebida pela crítica como «invulgarmente bem construída, entre o burlesco e o dramático», com «linguagem sóbria, segura» e cuja concisão narrativa revela «qualidade literária».
Sem qualquer indicação temporal específica no corpo do texto, podemos situar o início da narrativa no ano de 1917, pois proliferam referências históricas nacionais, nomeadamente a aparição de Fátima, e estende-se por dois anos incertos em que a sucessão de eventos políticos referidos mais parecem condensar mais de metade do século XX. A acção localiza-se num lugar atópico, intitulado Vilerma – certamente uma contracção de Vila Erma –, nome que convém a um espaço perdido e isolado, marcado pelo obscurantismo e pela crendice popular: «Como todas as vilas recolhidas, afastadas das grandes capitais, as notícias chegavam a Vilerma tardiamente e muito acrescentadas. A Revolução Russa e o milagre de Fátima vieram a um tempo, entrelaçados, como formas visíveis do tremendo combate de Deus e do Diabo, que arrastava consigo a perdição do mundo.» (pág. 13).
Proliferam as personagens mas ao longo da narrativa percebemos que a personagem central é o soldado José Sebastião que passa a tenente e a senhor presidente, pois os títulos alternam-se sem grande distinção. Prefiguram-se nesta novela questões centrais às narrativas da autora que se lhe seguirão: a luta de classes; relações conflituosas entre homem e mulher; um certo realismo mágico, termo que era comummente aplicado na altura da publicação das primeiras novelas da autora pela crítica, mas que se definiria melhor como um ambiente fantástico; um realismo ainda próximo do neorealismo.
O casamento entre José Sebastião e Maria do Patrocínio, oriundos de classes sociais distintas, surge como uma forma de ascensão social e não causa o escândalo próprio a uma certa aristocracia de épocas passadas, permitindo ao soldado assumir inclusivamente o papel de liderança antes ocupado pelo sogro, coronel Pimenta de Albuquerque, como se um título militar fosse transmissível com o dote. Esta ascensão social de José Sebastião, a quem o sogro chama por «guardador de porcos» e acusa de não conhecer o próprio avô, acarreta o próprio renegar das suas origens e, por conseguinte, da sua família com quem corta qualquer contacto depois do casamento. O casamento é assim reduzido a uma convenção social hipócrita e que tem, quase sempre, desfechos trágicos (como veremos depois em O número dos vivos) em particular a loucura das mulheres, situação clínica que se afigurava uma boa desculpa para a trancar nalgum quarto esquecido ou relegar para um lugar distante, de modo a prosseguir a vida com uma amante publicamente reconhecida ou um segundo casamento. As mulheres são representadas quase sempre de forma débil, beata ou demente: «Ao lado do enorme coronel, a esposa parecia uma pomba assustada. Punha no chão os olhos cor de cinza e ninguém conseguiu, na sua curta vida, arrancar-lhe da boca mais do que um «boa tarde» fatigado e confuso.» (pág. 23). A autora procurará, desta forma, romper com certos convencionalismos da tradição clássica literária, ao reforçá-los, se bem que de forma paródica. Na localidade de Vilerma o poder reparte-se em duas polaridades, o militar e o clerical, enquanto que o padre teme já os operários, que acabarão por se instalar definitivamente com a instalação de fábricas de conserva e que significam justamente o progresso do local. A ameaça pendente ao longo da narrativa será, justamente, o comunismo, referido logo no início, e que leva a pensar no ambiente fantástico que se respira na novela como uma exalação dessa ameaça invisível provinda das terras de leste: «- Às vezes dá-me a ideia – suspirou o tenente – de que eles não existem. De que alguém os inventa, se mascara, para nos encher de medo». (pág. 82). Reina ainda em Vilerma um certo misticismo primitivo arreigado entre o temor imposto pelo cristianismo, da mesma forma que na escrita da autora se delineia já uma tendência para o fantasmático ou irreal, a magia (temos uma bruxa), a loucura ou as ruínas a invocar o romantismo, e um certo humor e ironia, com frases que invocam um estilo próprio de Agustina. Ver artigo
A propósito da nova edição do fantástico romance de Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, um dos livros de que mais gostei do autor, e de quem divulgaremos brevemente uma entrevista a propósito de O Evangelho segundo Lázaro, divulgo o texto da nota de imprensa acabada de receber pela Porto Editora: Ver artigo
Em 1996, estava eu a terminar o 10.º ano e a fazer Filosofia quando me apercebi de que estava quase em época de exames e continuava a não perceber nada da disciplina. Ouvi então falar de O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, e implorei imediatamente à mãe (as mães são sempre melhores para estas coisas) que me comprasse aquele livro que seria essencial para o estudo (é sempre uma desculpa fabulosa que deixa os pais sem capacidade de dizer que não). Li o livro de uma assentada, perdi-me imediatamente na história, fui tomando notas conforme o autor sintetizava a obra de todos os pensadores da história da filosofia e quando cheguei à prova global – na altura ainda eram provas globais – tirei um 16. Claro que quem não percebeu nada foi a minha professora de Filosofia pois eu nas aulas dela não tirava mais do que um 9 ou um 10… Desde aí tenho seguido a obra deste autor, com quem regresso sempre à juventude, mesmo quando os temas tratados são mais delicados e actuais, como neste seu último livro. Ver artigo
O carrinho de linha azul, publicado pela Editorial Presença, é o vigésimo romance de Anne Tyler, autora nascida nos Estados Unidos da América em 1941 e vencedora do Prémio Pulitzer. Esta obra, que assinala os 50 anos de carreira da autora, trata-se de uma saga familiar que atravessa o período da Depressão até aos dias de hoje e foi nomeado como um dos dez melhores do ano (de 2015, data da publicação original) em diversas publicações americanas.
Pode ler-se na contracapa que «Estava uma linda e fresca tarde em tons de verde e amarelo…» é como Abby Whitshank começa por contar a sua história de amor com Red, no verão de 1959. Os Whitshank, com os patriarcas Abby e Red, os seus quatro filhos e os netos, são uma típica família de classe média. Reunidos no alpendre parecem o retrato da felicidade, plenos de lembranças e a celebrar o passado que remonta aos anos 20, com a chegada dos pais de Red a Baltimore. Uma imagem de perfeição que se desintegra no momento em que atravessamos a porta de entrada, quando aos risos e celebrações se juntam segredos, ciúmes e desapontamentos, guardados entre as quatro paredes de uma casa antiga que já albergou quatro gerações. Como um carrinho de linhas, esta história desenrola-se entre passado e presente, revelando ao leitor a complexidade emocional desta família.».
A primeira parte do livro, que se estende até mais de metade do livro (mais precisamente até à pág. 232, num total de 374 páginas), conta a história dos Whitshank de forma mais ou menos linear, ao focar-se no período da velhice de Abby e Red, cujos primeiros sintomas de alguma senilidade (?) acabam por fazer regressar inclusivamente Denny, o filho pródigo. É aliás em torno da figura de Denny que a narrativa começa, quando decide ligar aos pais a anunciar que é homossexual para logo depois desligar, e percebe-se de imediato que esta autora é uma exímia contadora de histórias a desfiar o seu fio de Ariadne.
No primeiro capítulo, que é todo em torno de Denny, o filho mais velho, temos sempre uma focalização externa, construída a partir do que os pais sabem, e do muito que conjecturam, sobre a sua vida, e a tentar compreender da melhor forma possível um filho que desapareceu das suas vidas e só dá notícias de longe a longe, regressando de vez em quando: «ele proporcionava-lhes efectivamente algo com o qual podiam sempre contar: deixava um vazio quando se ia embora.» (pág. 46). Denny chega mesmo a estar três anos sem dar notícias aos pais, um contacto ou uma morada, mas ressurge sempre nos momentos de crise com efectivo condão de conseguir ajudar os que o rodeiam. É na casa dos pais que se irão reunir as duas irmãs e os dois irmãos, assim que se apercebem de que algo não está bem com a mãe, e vamos assistindo nos próximos capítulos a um acumular de tensões e de segredos que resultam inevitavelmente dessa proeza que é viver em família. Os diálogos, principalmente os de Abby com o marido, chegam a ser hilariantes, na sua complexa rede de mal-entendidos a que se junta a surdez do marido Red. Aliás não falta a este livro uma deliciosa ironia ou genuínos momentos de humor como quando a tia Merrick visita o irmão Red e fica abismada com a confusão que reina na casa, ao que Abby responde que se mudaram para lhes dar uma ajuda pois estão a ficar velhos, ao que Merrick replica: «-Eu também estou a ficar velha, mas nem por isso transformei a minha casa numa comuna.» (pág. 143).
É particularmente curiosa, e depois deliciosa, a forma coloquial como a autora vai desenrolando a narrativa nesta primeira parte, exactamente como quem conta uma história, onde não faltam marcas de oralidade e interpelando directamente o leitor. Mais à frente, chega mesmo a pontuar o texto com diversas notas explicativas entre parênteses. Diz-se que a história dos Whitshank se resume, na verdade, a duas histórias: «Talvez porque os Whitshank eram uma família tão recente que não tinham um historial familiar. Não tinham assim tantas histórias por onde escolher. Tiveram de aproveitar ao máximo o que tinham.» (pág. 64). Red a certa altura reflecte em como, para ele, «a felicidade da família era um dado adquirido. Não se preocupava com isso. Ao passo que Abby… oh, ela preocupava-se e muito. Não suportava pensar que a sua família pudesse ser uma família perfeitamente vulgar, confusa e desunida.» (pág. 178). Mas é na segunda e na terceira parte, que consistem em analepses onde ficamos a saber o que se passou com as gerações anteriores, que percebemos que a história de uma família é sempre muito mais do que aquilo que ficou gravado numa casa que albergou nessas várias gerações ou do que fica oficializado nas conversas que passam de pai para filho: temos um homem que se envolve com uma menor, a verdadeira identidade de uma mãe e descobrimos a juventude daqueles que nos habituámos a ver apenas como a mãe ou o avô…
Na quarta parte, uma conclusão rápida, percebemos que afinal o título tem mesmo razão de ser, e que o azul do título não é afinal por causa do baloiço no alpendre da casa – que dá aliás origem a uma das histórias mais cómicas do livro e que representa toda a subtileza de que se revestem certas disputas entre marido e mulher. E sobre a forma como os casais deste livro se conhecem, e sobre o mito do amor à primeira vista, já perto do final lemos algo que não passará despercebido a um leitor atento: «Às vezes olhamos para uma mulher, e ela olha para nós, e dá-se uma espécie de reconhecimento subtil, um momento de cumplicidade, e depois disso tudo pode acontecer. Ou não. Denny desviou o olhar e deitou o copo de papel dentro do cesto do lixo.» (pág. 368).
A escrita da autora é em geral concisa e despojada, a forma como trabalha a temporalidade é reveladora de um trabalho cuidado e de uma grande capacidade de criar personagens que são entidades vivas e nota-se uma grande atenção ao pormenor na moldura histórica em que a história encaixa quando nos leva aos tempos da Grande Depressão.
E um especial agradecimento à Editorial Presença que realmente consegue uma revisão à prova de bala, onde não se encontra um erro ou uma gralha… (bem, talvez um). Ver artigo
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