A Casa das Tias, publicado pela Teorema, é o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio. A autora nasceu em 1958 no Porto e é mestre em Literatura Portuguesa Moderna pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi professora convidada entre 1991 e 2006. Professora de Português e de Literatura Portuguesa no ensino secundário, investigadora do Centro de Estudos do Teatro, publicou trabalhos sobre literatura, teatro e sobre a educação literária dos jovens. É ainda co-autora do Programa de Literatura Portuguesa do 10.º e do 11.º anos.
A Casa das Tias é uma promissora estreia literária, pela elegância e poesia da escrita em que a autora apresenta uma história de família de modo fragmentado e recortado, como um enigma ou um álbum de família composto por fotos em tons sépia, como na capa, ou mais geralmente em fotos de cores vivas que retratam o percurso das duas tias e dos irmãos, bem como dos que se sucederam na família: «A casa dali era a casa das tias, assim o dizíamos nós e a nossa mãe, no tempo em que o mundo parava nos eternos dias de Setembro da nossa infância feliz, cheia de mimos.» (p. 181)
O livro é narrado numa sucessão de episódios, muitas vezes breves, constituíndo capítulos curtos, intitulados de forma sugestiva e em jeito cúmplice com o leitor, como no primeiro capítulo: «Eram duas as tias».
A herança
A história começa naturalmente pelo fim, isto é, num tempo presente mais próximo ao leitor em que M., a herdeira, recebe a casa na aldeia em Constantim onde as tias Teresinha e Francisca sempre viveram: «Ficaram ali para sempre. Os irmãos saíram cedo de casa. Os mais velhos para trabalhar em Lisboa, os mais novos para estudar no liceu e se formarem depois.» (p. 6). Apesar de as tias serem solteiras e sem filhos conseguem manter este legado da família que teria cabido a todos os irmãos por igual, e aos seus descendentes, se não fosse um estranho revés do destino: «A casa com cem anos que ficou para M. de modo inesperado era a casa das tias, a dos pais do seu avô materno, onde elas viveram a vida toda. Era a casa de um lavrador rico com nove filhos, melhor, oito, com a morte de uma menina muito nova que não conheceu, nem de fotografia.» (p. 5). Ao herdar a casa, M. herda ainda os sussurros da memória, os objectos perdidos, meio trastes, meio relíquias, e as fotografias, e, como se pode deduzir da passagem anterior, mesmo quando não há registo ou instantâneos que o comprovem, M. reúne ainda as histórias de família que foram passadas de boca em boca. Existem ainda agendas, cartas (pelo menos até à década de 50, até serem substituídas pelo telefone), cadernetas do liceu… Mas as histórias são muitas vezes apenas rumores e deduções e não encerram todo o passado ou toda a verdade: «Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas.» (p. 6). Desta passagem, destaque-se o advérbio Talvez ou a forma verbal Conta-se que são palavras recorrentes na narrativa e que ilustram como se tenta narrar uma história a partir de suposições e, ao jeito de qualquer narrativa que se preze, do divagar e do fazer de conta. Oscilamos entre o facto e o rumor, o imaginado e o vivido, o afirmativo e o negativo ou a certeza e a dúvida, mas no fim é como nos diz a voz narratorial: «De que mais precisa um escritor senão de assunto?» (p. 196).
Recuperar o fio da história
Em quase todos os capítulos, em jeito de conclusão, existe um depoimento de M. que nos é transcrito ou transmitido pela narradora – nem mesmo no fim saberemos se é de facto uma narradora, apesar de se referir que foram colegas do colégio, mas preferimos acreditar que sim…
A narradora está sempre presente no livro, como uma cúmplice de M., e é a ela que cabe, mais do que ouvir e reunir os fragmentos das memórias da amiga, reinventar e reencaixar as peças de um passado fragmentado e incompleto: «Fala-me dos tios em pequenas histórias, algumas já conhecidas, porque as contava nos dias do colégio para nos entreter. São momentos de maledicência benigna, caricaturas de figuras da casa com qualquer coisa embaraçosa e ridícula, fixada por repetidos recontos.» (p. 196). Ainda que lhe tenha delegado expressamente essa tarefa de cronista, M. por vezes exaspera-se com a amiga e narradora e prefere rasurar as releituras que esta faz, não sabemos se num assomo de pudor da verdade ou de manter o bom nome da família: «M. não quer que continue, não percebe o interesse desta história, diz que é melhor ficar o que está como está.» (p. 75); «M. acha cruel o que escrevo. Que não devo escrever tudo o que conta.» (p. 30); «M. acha que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.» (p. 95). A narradora chega aliás mesmo a narrar em alguns momentos como episódio verídico aquilo que não passa de congeminações como no final declara.
Incestos e convenções
A Casa das Tias é também uma viagem através do século XX, a um tempo de convenções e etiqueta romântica, com pontuais referências históricas ou a figuras como a de Salazar, muito parecido com um dos irmãos. Contudo é curiosamente o tempo presente que impera na narrativa, como se apesar do desalinho da casa que é preciso reorganizar, o passado fosse visto como um instantâneo fotográfico que se projecta como um filme na tela a decorrer aqui e agora: «Afonso é o mais bonito dos filhos rapazes, com grandes olhos cor de mel, expectantes. Tem um nariz forte, o cabelo liso e vigoroso, a boca larga desenhada no rosto claro.» (p. 32).
Ainda que vivessem na aldeia a verdade é que nem por isso as vidas das tias eram completamente secas ou paradas, uma vez que iam por vezes passar longas temporadas a Lisboa, ficando hospedadas na casa do irmão Afonso que lhes dava todos os mimos que se podem prestar a uma amada. Reina, novamente no campo da dúvida e da suposição, a ideia de que há algo de levemente incestuoso no sentimento das duas irmãs pelos seus manos solteiros que por vezes também vêm à aldeia «passar muitos dias, em busca de mimos.» (p. 125). As suas vidas não são aliás realmente vazias, como ficamos a saber por exemplo na passagem em que Teresinha terá salvo um rapaz do Outeiro de uma perna com gangrena, «livrando-o de uma amputação certa, já marcada» (p. 126).
Teresinha, porque reconhece que «terá chegado o momento em que as duas ficarão solteiras para sempre, declaradamente tias, espera que elas possam conquistar o direito aos diplomas de Professoras de Corte e de Contramestras de Costura, que lhes servirão, tanto de ornamento como de instrumento de trabalho, caso precisem.» (p. 127). Não sabe ela que os irmãos se conluiam entretanto para salvaguardar os seus direitos apesar de as irmãs serem membros marginais na família, na medida em que não darão frutos, em detrimento inclusive do irmão Afonso, que recebe um duro golpe capaz de dividir a família quando sabe da alteração ao testamento. O que é facto indiscutível é que a certa altura as tias passam por uma transformação quando se tornam inegavelmente avarentas. Talvez por saberem que no seu mundo não há espaço a mulheres independentes, até porque estas estão aquém?
«A crosta do pão recente estala-lhe nos dedos e nem fala, admirada com o que o irmão Afonso conta ao pai sobre as suas funções, a justiça, o país, o mundo vibrante que escuta, ávido, na telefonia e lê nos jornais. Os homens discutem as notícias, sabem o nome de países, capitais, tratados, e tudo parece natural e fluido como as conversas de todos os dias.» (p. 149).
Apesar de apaixonada por Joaquim, Francisca recusa a possibilidade de um amor com um rapaz de aldeia, porque este poderia nunca estar à altura dos seus, da casa, de si…
«De novo, no escuro, a dúvida antiga, corrosiva. E se quisesse dela só o que ela tinha, ou teria um dia? Se o desejo fosse só desejo de uma vida rica?» (p. 151).
Respira-se no texto, pela densidade da memória circular ou fragmentada e nem sempre linear, pela respiração da casa como entidade viva, uma narrativa tecida com esmero com passagens belíssimas remanescente de feminismos, como quando se fala na toilette pensada e anotada como entrada de diário, na costura, no anseio por uns braços que nos cinjam na noite. Ver artigo
«Houve um momento fundador em que um Moçambique morreu para dar vida a um outro. Moçambique foi recém-nascido. Naquela noite chuvosa de 25 de Junho de 1975, o futuro chegava finalmente.» (p. 12), escreve a autora na sua nota introdutória deste livro da Guerra & Paz onde faz um sumário do que se passou no país após a independência. Com a missão de «primeiro descobrir para depois contar como tinham sido essas últimas quatro décadas de liberdade», a autora reúne oito entrevistas de diversas personalidades que lhe «pareceram dignas de registo», exemplificativas ou ilustrativas desta nação emergente. Os testemunhos aqui reunidos datados de 2015 e que dão uma perspectiva intimista da transformação do país são os do General Raimundo Pachinuapa, guerrilheiro da FRELIMO, do escritor Mia Couto, Joaquim Chissano, que sucedeu a Samora Machel na Presidência durante 18 anos, Afonso Dhlakama, líder da RENAMO, Lutero Simango, um dos filhos de Uria Simango, Naguib Elias, para muitos o mais importante artista plástico moçambicano, a activista Alice Mabota, e o realizador brasileiro Licínio de Azevedo que documentou Moçambique em mais de 40 documentários.
Tânia Reis Alves nasceu em 1984 em Oeiras e licenciou-se em Jornalismo, profissão que exerce desde 2006. No final da licenciatura foi convidada a colaborar com o Jornal de África, suplemento mensal que antes acompanhava o jornal Público. Colaborou depois com a RTP África, como coordenadora dos programas Latitudes e Rumos, sobre a cultura africana em Portugal, e como jornalista e produtora do Mar de Letras, sobre literatura lusófona. Descobriu o país em 2013, tendo voltado mais duas vezes, a última em 2015, período em que passou algum tempo em Moçambique. Produziu também a série documental Ecos da Independência.
Talvez se justificasse nesta obra uma conclusão ou um testemunho da própria autora que entretecesse os vários depoimentos, bem como uma apreciação da realidade moçambicana. Ver artigo
Mais que um guia turístico ou um roteiro, este é um livro em que a jornalista e algarvia Teresa Conceição nos conduz numa visita guiada pelo Algarve, de uma ponta a outra: «De “Al” a “Al”. De Alcoutim a Aljezur, de Albufeira a Alvor, de Almancil a Alcantarilha. E também de “O” a “O”: de Odeceixe a Odelouca, de Odeleite a Odiáxere e a Olhão.». Num relato feito na primeira pessoa, a autora desfia passeios, restaurantes, praias, hotéis, alojamentos, e ilustra as suas sugestões com centenas de fotos tiradas por si, incluíndo ainda números de telefone, preços e mapas, numa travessia feita de Sotavento a Barlavento pelos Algarves, sempre com introduções e apontamentos pessoais de alguém que conta «(já) quase meio século de andanças no nosso Sul mais a sul».
Este livro da Guerra & Paz tem ainda a particularidade de resultar de um programa televisivo, pois a rubrica IR é o melhor remédio é apresentada por Teresa Conceição há mais de dez anos na SIC, onde a jornalista apresenta sempre com algum humor e irreverência as suas sugestões pessoais que, naturalmente, não se limitam a praia. Para os mais distraídos, ficam a saber que no Algarve também se podem encontrar flamingos, fazer passeios de burro pelos trilhos da costa vicentina, descobrir caminhos na serra a pé, de bicicleta ou a cavalo, e descobrir uma piscina natural numa aldeia no meio da serra.
E como algarvio que sou não posso deixar de dar o devido mérito à salvaguarda que a autora faz logo no início do livro: o Algarve não é para redescobrir ou conhecer só no Verão, muito menos durante as enchentes do mês de Agosto. Os serviços aqui sugeridos foram sempre experimentados noutras alturas do ano: «Restaurantes bons podem ter dias maus; no Algarve e no Verão, as multidões não ajudam quando se trata de prestar um bom serviço». Ver artigo
Depois do sucesso de Jessie Burton com O Miniaturista, obra que vendeu mais de um milhão de exemplares por todo o mundo, com direitos vendidos para trinta países, e vencedora de diversos prémios, a Editorial Presença publica agora A musa.
A história é contada em planos alternados, como forma de adensar o mistério, entre a Londres do século vinte, durante os anos sessenta, quando o racismo ainda é uma questão social muito marcada, vivida na pele de Odelle Bastien, uma jovem caribenha recém-chegada à capital do Império, e a Espanha rural e isolada de 1936, conforme se aproxima o deflagrar da Guerra Civil, quando Olive Schloss, filha de um negociante alemão de arte, recebe uma carta da Slade School of Fine Art, convidando-a a frequentar o curso de Belas Artes. No início do livro, ambas as personagens centrais recebem uma carta que pode determinar o resto do curso das suas vidas, indiciando-se desde logo que as vidas de ambas estarão ligadas ao longo da história, até porque é no ano de 1967 que o passado ressurge para algumas personagens ao mesmo tempo que se impõe a outras como um enigma a resolver.
O enigma é um quadro intitulado Rufina e o Leão que terá sido pintado pelo artista ou revolucionário andaluzo Isaac Robles e permaneceu desconhecido até que um jovem enamorado por Olive aparece no seu trabalho com um quadro que a mãe teve toda a sua vida pendurado numa parede do quarto e que nem sequer está emoldurado. Mas enquanto Odelle abraça o trabalho tão desejado que lhe permite dar o salto de uma sapataria para o Skelton Institute of Art, como dactilógrafa, Olive prefere renunciar à escola de artes pois sabe que a família nunca a apoiaria. E tal como na História e na vida o passado nunca é inteiramente recuperável ou transparente, há obras de arte que fascinam e seduzem ao mesmo tempo que ocultam histórias trágicas de amor, perda, mentira, traição e morte. A história é ligeira, provavelmente mais cativante para um público feminino, mas cheia de peripécias e com um sólido ambiente histórico. Ver artigo
Escrito com «o fólego de um clássico», este livro tem ecos de outros grandes que subiram a montanhas para se tornarem maiores do que a vida, e talvez por isso esteja também dividido em três partes mais ou menos correspondentes às três fases de vida de um homem.
A montanha neste livro é mais do que a neve onde se pode esquiar ou as escarpas que alpinistas desafiam ou onde os caminhantes trepam. Há no ar rarefeito, frio e por vezes árido das montanhas quem encontre um modo de vida e prefira viver no silêncio e na solidão do recato de uma maneira de ser perdida nos tempos.
Pietro é um jovem quando vai com os pais pela primeira vez para a aldeia de Grana, no sopé do Monte Rosa, onde os pais alugaram uma casa e é aí que também descobre facetas novas dos pais que rapidamente se adaptam ao modo de vida da montanha, com o pai a seguir para as suas escaladas à montanha feitas com obstinação e petulância, e a mãe rapidamente mostra desenvoltura na forma como acende uma lareira ao mesmo tempo que ordena ao filho que «fosse apanhar vento e sol e perdesse aquela (…) delicadeza urbana» (p. 27). Começando por explorar o rio, Pietro acaba por travar amizade com Bruno, o rapaz que pastoreava as vacas, numa espécie de calmo cerco amoroso: «A última descoberta foi que não só eu o tinha observado, lá no pasto, como ele me tinha observado a mim enquanto os dois fingíamos ignorar-nos.» (p. 29).
É nas montanhas, onde os pais de Pietro se conheceram e apaixonaram, acabando por ficar isolados do mundo, que Pietro descobre também o valor da amizade e do companheirismo, mesmo quando se passam anos sem ver ou saber do amigo. É na montanha que se dá o desencontro e o reencontro com o pai, e que Pietro descobre o sentido da sua própria vida, mesmo quando esse destino implica virar costas a tudo o que se conheceu.
É um belíssimo livro que nos mostra como há lugares que vivem apenas na nossa infância e, perdidas as pessoas, ficam as memórias que são demasiado aguçadas para serem confrontadas com as realidades que desmoronam face ao brilho de um passado que não volta mas que está sempre vivo no íntimo. Ver artigo
Juliet Marillier é uma autora de culto do fantástico, com fãs por todo o mundo. O Covil dos Lobos é o seu mais recente romance, publicado na primeira semana de Julho pela Planeta, e fecha a trilogia Blackthorn & Grim. Ler esta autora é sempre como ouvir uma história da tradição céltica segundo a fórmula de enigma por resolver e maldição a quebrar, e na intriga deste livro em particular a autora, que nasceu em Dunedin, na Nova Zelândia, «cidade com fortes raízes na tradição escocesa», baseou-se numa história tradicional da Escócia.
Saorla, mais conhecida como Mestre Blackthorn, é curandeira e não só encontra mais um enigma e um desafio, quando conhece a jovem Cara que fala com as árvores e chama a si os pássaros, como será confrontada com as feridas do passado. Mantém-se o tom mais negro do que o usual da saga, como convém a uma personagem de temperamento difícil e tempestuoso (note-se o nome de Blackthorn – traduzido como abrunheiro mas que significa algo como espinheiro negro, a árvore que permite enfrentar a adversidade com determinação) que viu marido e filho serem queimados vivos mas tem de manter a promessa que fez a um membro do Povo Encantado de durante sete anos não se ausentar do local onde está confinada, responder a todos os pedidos de ajuda e não procurar vingança.
O fantástico está menos presente mas este fecho da saga não desilude e prende o leitor até ao fim. A escrita é simples mas apurada, com relatos na primeira pessoa partilhados pelas personagens principais que dão conta da acção de forma continuada, em capítulos alternados entre Blackthorn e Grim, até porque a certa altura se separam. Se em A Torre de Espinhos ficámos a saber que Grim é muito mais do que um matulão brutamontes, tendo vivido em tempos como monge, a personagem ganha aqui mais protagonismo. Curiosamente, neste livro encontramos ainda ecos de outras sagas da autora, como os guerreiros de cara tatuada da Ilha ou crianças humanas trocadas com as do Outro Mundo. Ver artigo
John Maxwell Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, estudou em África do Sul e nos Estados Unidos, e vive actualmente na Austrália. Foi o primeiro escritor a vencer por duas vezes o Prémio Booker, com A Vida e o Tempo de Michael K e Desgraça, e em 2003 foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura.
Este romance saído em Maio de 2017 constitui a sequela de A Infância de Jesus, publicado em 2013 também pela Dom Quixote, obra em que o autor se demarca do seu estilo habitual e entra no domínio da distopia. No romance anterior, o leitor ficou a saber como este trio improvável de um homem, uma mulher e uma criança, sem qualquer ligação prévia entre si, passou a constituir uma família, pois Simón e Inés reclamam para si a protecção e educação de Jesus, vendo-se inclusivamente a procurar refúgio numa outra colónia, Estrella. Tem-se falado muito em linguagem alegórica ou metafórica a propósito destes dois romances, mas a escrita é aqui essencialmente cerebral, concisa, limpa de qualquer excess. Se David parece ter muito pouco de Jesus – é emblemático o episódio em que ele aliás se recusa a perdoar Dmitri – já Simón é uma personagem muito curiosa e sensata, com os seus diálogos algo socráticos, especialmente na forma como ele, Simón, responde às inúmeras questões de David, rapazinho vivaço e precoce, que recusa por norma as convenções que a sociedade possa impôr. Talvez por isso David se adapte tão bem à escola da Academia de Dança onde vai aprender a dançar para chamar os números. Como profere Simón: «-Não nos opomos a este recentíssimo desejo pela simples razão de que não temos força para isso – diz ele. – Connosco o David leva sempre a sua avante. É o tipo de família que nós somos: um amo e dois servos.» (p. 96). Simón, dotado de uma suma paciência, parece sim simbolizar toda uma geração de pais da actualidade que se vêem impotentes face à vontade dos filhos: «Eu não lhe oriento a vida, já nem sequer finjo aconselhá-lo. A verdade é que estamos fartos da sua obstinação, a mãe e eu. É como um buldózer. Espalmou-nos. Fomos espalmados. Já não temos resistência.» (p. 48). Apesar da escrita enganadoramente simples e despretensiosa, entre a questão de encontrar uma escola adequada para David e um crime passional, este livro levanta questões bem complexas e prementes. Ver artigo
A vida política Ver artigo
O Deus das Pequenas Coisas Ver artigo
Comecei ontem o último livro deste autor nascido em Newark em 1947, que nos encanta há 30 anos e depois de um interregno de 7 anos lança-nos agora esta obra magna. Esta obra, publicada pela ASA, é ambiciosa não só pelo tamanho, pois é constituída por 870 páginas de letrinha miudinha e sem bonecos, mas igualmente pela complexidade, ao narrar em 7 partes 4 caminhos alternativos para a vida de Archibald Isaac Ferguson, e pelo cuidado em narrar em simultâneo com os passos da personagem a História da América. Com o mote na contracapa «O que nos motiva verdadeiramente? O que nos leva a optar por um caminho em detrimento de outro? De que futuros abdicamos pelo simples facto de termos apenas uma vida para viver?», esta obra lembra Vida após Vida, de Kate Atkinson, que segue uma premissa idêntica, ou talvez tenham visto o filme Instantes Decisivos, com Gwyneth Paltrow, onde tudo se resumia a ela ter ou não conseguido apanhar o metro, momento em que a sua vida se bifurcou.
Cada parte do livro, depois do primeiro capítulo, 1.0, é constituída por 4 capítulos alternativos, até que já perto do final temos capítulos em branco, isto é, não-capítulos, como o 7.2 ou o 7.3… Paul Auster vai mais longe nesta obra e mostra como a cada caminho de vida tomado pelo jovem Ferguson corresponde também uma natureza e relações distintas. O título 4321 soa a contagem decrescente, talvez para dar ênfase a que, afinal, apesar de aspirarmos a várias vidas (e a ficção dá-nos tantas mais) temos apenas uma vida…
É curioso que Ferguson tenha nascido no mesmo ano que o autor, o que reforça, na minha leitura, aspectos que me parecem autobiográficos, como por exemplo o cuidado em enumerar todas as leituras feitas e os álbuns ouvidos pelo jovem Archie. Todas as 4 vidas de Ferguson giram em torno de um eixo comum, o amor pela mesma mulher, Amy Schneiderman (a obra é dedicada a Siri Hustvedt, a esposa do autor, também escritora).
Apesar do tamanho da obra a verdade é que há muito tempo não mergulhava tão facilmente num livro ou me sentia tão próximo de um protagonista, pelo que estas 870 páginas devoram-se rapidamente. Paul Auster revela-se um exímio contador de histórias, mesmo quando não se narra mais que o quotidiano banal de uma vida comum. Ver artigo
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