O cientista e escritor António Damásio recebeu no passado dia 20 de março o Prémio de Vida e Obra na Gala da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). A cerimónia decorreu no Centro Cultural de Belém e será transmitida em direto pela RTP.
O seu mais recente livro, publicado o ano passado, é A Estranha Ordem das Coisas: A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas.
O autor aborda as emoções, os afectos humanos, os sentimentos (que defende como uma combinação única de corpo e cérebro) como propulsores da actividade cultural. Numa escrita acessível e ligeira, com espaço para o humor, o autor tenta perceber como é que a vida humana está ligada hoje ao que era no seu início, há 3,8 mil milhões de anos, procurando explicar como é que os sentimentos estão na base da cultura produzida pelo homem tanto então como agora. O autor considera ainda como apesar de até as culturas de bactérias se poderem comportar como comunidades humanas, na forma como se agrupam para sobreviver, o condão da criatividade humana cabe exclusivamente ao homem, pois esta capacidade «assenta na vida e no facto extraordinário de que a vida vem equipada com uma ordem precisa: resistir e projectar-se para o futuro, aconteça o que acontecer.» (pág. 50)
Autor conhecido internacionalmente, tem publicado a sua investigação lá fora, antes de ser traduzido para Portugal, e as suas ideias estão descritas em diversos livros, como O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (1995), O Sentimento de Si: O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência (2000), Ao Encontro de Espinosa: As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir (2003); O Livro da Consciência: A Construção do Cérebro Consciente (2010) e o mais recente A Estranha Ordem das Coisas: A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, publicado o ano passado.
Os seus livros são publicados em Portugal pela Temas e Debates, estão traduzidos em mais de trinta línguas e estudados em universidades do mundo inteiro.
Destaque-se ainda, em jeito de conclusão, a luminosa frase: «As ciências, por si só, não podem iluminar a experiência humana sem a luz que provém das artes e das humanidades.» (p. 17) Ver artigo
Este livro (publicado pela ASA) inicia uma saga em 5 volumes das Crónicas da Família Cazalet.
Entre os anos 30 e 50, conta-se a história das três gerações desta família «tão grande e chegada, com todos os seus costumes e tradições e piadas» (p. 94).
O primeiro volume começa com as férias de Verão de 1937, em que a família se reúne na sua casa de campo no Sussex. Os irmãos Hugh, Edward e Rupert com as suas mulheres e filhos, a irmã solteira Rachel e os pais.
A escrita é estranhamente actual e ligeira, bastante aditiva, que nos leva a folhear rapidamente as páginas, enquanto lemos os eventos descritos entre os adultos e as crianças, entre a aristocracia e a criadagem, num ritmo voraz. A autora contudo nasceu em 1923, trabalhou como modelo e actriz antes de se tornar romancista. Kingsley Amis foi o seu terceiro marido.
Consta que está a ser realizada uma série da BBC em cinco temporadas. Ou que já foi realizada…? Ver artigo
Ler este livro é como ler um esboço de Cem Anos de Solidão. Gabriel García Márquez, em Viver para Contá-la, não refere este autor italiano, nascido em Pisa (1943-2012), como uma das suas leituras de formação, mas este romance de estreia de Tabucchi lembra muito o realismo mágico de Gabo. Na Praça de uma aldeia toscana junto ao mar, onde se vive o tempo de uma nação, assiste-se ao cair da monarquia e ao erigir da democracia, com duas guerras pelo meio. A acção dá-se em saltos, onde o capítulo seguinte tanto pode retomar o fio da narrativa, como nos levar para o futuro ou para o passado, enquanto no decurso de três gerações, com nomes como Garibaldo, Quarto, Volturno, ou Melchior, passamos de avô para filho para pai, sendo que os próprios nomes das personagens se repetem em estranhas revivescências, numa família que «troca as voltas ao tempo» (p. 87). O tema do duplo está ainda implícito no patriarca Plínio que tem duas vezes gémeos.
E tal como acontecia na Macondo dos Buendía, os acontecimentos mágicos invadem toda a aldeia, pelo que quando uma bomba estilhaça todas as janelas da aldeia, é mais natural assumir que estas se libertaram das dobradiças e partiram em voo como um bando de gansos selvagens. Como se indica logo no início esta é uma «Fábula popular em três tempos, um epílogo e um apêndice», escrita em 1973 e publicada dois anos depois.
O livro começa pelo fim para depois nos levar novamente até ao princípio, sem perder a capacidade de chocar com um fim anunciado e com a surpresa de uma reviravolta anunciada apenas no final e que confirma como os horóscopos não são fáceis de enganar mesmo que se adiem os prognósticos.
António Tabucchi ensinou em várias universidades de Itália, publicou 27 livros, entre o romance, o ensaio e contos, escreveu um romance em língua portuguesa, Requiem (1991), traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa, que é também protagonista de Os últimos três dias de Fernando Pessoa (incluído numa reedição de 2015 que integra três pequenas obras), em que se narra a morte de um dos nossos maiores poetas. A sua obra tem sido cuidadosamente reeditada pela Dom Quixote, como aconteceu com a belíssima edição do livro sobre os Açores, Mulher de Porto Pim (2016), com capa dura e em pequeno formato.
Hoje, dia 10 de Abril, a Dom Quixote publica ainda Autobiografias Alheias, um livro que aparenta ser uma auto-reflexão sobre algumas das principas obras do autor e que dá continuidade a alguns dos principais temas tabucchianos. É curiosa a coincidência, uma vez que na Fundação Calouste Gulbenkian, a vida e obra de Antonio Tabucchi estão em destaque, seis anos após a sua morte.
A exposição «Tabucchi e Portugal» está patente de 8 de Abril a 7 de Maio, com dois dias de intenso debate, um filme, um documentário, leituras musicadas e ainda uma exposição iconográfica e documental que compreende manuscritos, documentos, fotografias e outros objetos do acervo familiar do autor, bem como de excertos de entrevistas suas a Maria João Seixas ou Mega Ferreira. Ver artigo
Num período em que se tem falado e defendido bastante a causa do Cuidador Informal, começo a ler este livro publicado pela Alfaguara. Podendo ser incluído nesta nova tendência, quem sabe uma corrente literária, que desafia todos os géneros: autobiografia ficcionada, pois o «eu narrativo deste romance projecta-se através de sete figuras diferentes» (p. 22), conjugada com o ensaio e o documental. É a história de uma mulher que escolhe um trabalho “normal” numa loja de roupa, para poder seguir o sonho de uma carreira na arte, em horário pós-laboral, adormecendo sobre os livros na mesa da cozinha. É também a história dos exploradores que arriscaram chegar aos pólos da Terra, em regiões geladas e inóspitas. Mas é principalmente a história do seu irmão que vive preso no gelo da não-emoção e que provavelmente nem sequer tem consciência de como lutar para se libertar:
«O meu irmão é um homem preso no gelo. Vê-nos através dele. Ou, mais exactamente, no seu interior há uma fissura onde por vezes há gelo. Ele está e não está.» (p. 34)
Diagnosticado apenas quando tinha 30 anos, passou de borderline a Asperger e depois a autista, mas como o autismo engloba casos muito distintos, passou a chamar-se perturbação do espectro do autismo: «Esta denominação tão vaga parece-me um caminho de regresso à indefinição» (p. 37).
O irmão da narradora/autora tem um corpo, pelo que os outros tomam as decisões por ele, num cuidado constante que é duro para a mãe. Porque quem vive com deficiência intelectual ou física vive também em dependência, o que «pressupõe uma vulnerabilidade por parte de quem a sofre e um trabalho constante por parte de quem rodeia a pessoa afectada: cuidados proporcionados por pessoas cujo trabalho muitas vezes não é reconhecido e, por isso, não é retribuído como devia.» (p. 35) Ver artigo
A Dança do Rapaz Branco é o primeiro romance de Paul Beatty — o primeiro norte-americano vencedor do Man Booker Prize com O Vendido, também editado pela Elsinore em 2017.
Gunnar Kaufman viveu a infância protegido na idílica tranquilidade branca de Santa Monica. Mas depois de Gunnar e as irmãs se recusarem a ir para um campo de férias para crianças negras porque se consideram diferentes dos outros negros, a mãe fá-los mudarem-se imediatamente para a zona oeste de Los Angeles, para que os filhos estejam em contacto com a “sua” cultura. E é assim que Gunnar, aspirante a poeta e acidental jogador de basquetebol, começa a descobrir a sua identidade, enquanto se move entre gangues, motins, estereótipos, na violência da vida negra nos Estados Unidos dos anos 90.
Um livro cheio de peripécias que traça um retrato paródico, por vezes exagerado mas sempre cómico, da vida deste jovem negro que parece representar, pela linhagem que carrega nos genes, e apresentada nas primeiras páginas na história da família que conta aos colegas, um culminar da história negra da América ao longo do século XX. Conforme reza a contracapa, esta obra «é uma comédia literária caleidoscópica sobre um afroamericano incomum à procura da sua identidade numa América caricatural mas, de algum modo, estranhamente familiar.»
«Se um magnata do cinema comprar os direitos cinematográficos da minha vida, a sinopse da Tv Guia dirá: Na luta pela liberdade, um jovem poeta relutante convence os negros americanos a abandonarem a esperança, e a matarem-se num final trágico e explosivo. Cheio de gargalhadas e diversão. Alguma violência e linguagem não indicada para crianças.» (pág. 10)
Paul Beatty vive em Nova Iorque e venceu o John Dos Passos Prize for Literature. Em 2016, venceu o Man Booker Prize com O Vendido, que foi também considerado um dos melhores livros de 2015 pela imprensa, em publicações como The New York Times Book Review ou The New Yorker. Ver artigo
Não posso, antes de escrever sobre o livro, deixar de recordar uma amiga que me dizia que nunca, em várias tentativas, conseguiu persistir na leitura de A Montanha Mágica, pois a partir da página 100, e consoante a descrição do ambiente no sanatório se torna mais vívida, esta minha amiga é acometida por insistentes ataques de tosse numa qualquer reacção psicossomática que acabou por criar aversão ao livro.
Mas não quero com esta história, um pouco solta, desdourar o prazer desta leitura.
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas no âmbito da arte, literatura, cinema, com alguns contos e outros romances publicados, sendo finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017 com este livro, publicado pela Dom Quixote.
Na senda de outros autores recentemente apresentados, a autora cruza ficção com não-ficção, ensaio com documento, ciência com literatura, e inicia esta narrativa numa voz que enganosamente se assume na primeira pessoa, como um tuberculoso de vinte e três anos. Contudo logo em seguida a narrativa é quase toda feita a partir de um narrador externo, desfiando a história de uma família portuguesa na primeira metade do século XX, composta por três irmãos. Mas este eu que surge logo no início do romance, percebemos que é afinal Armando, que mais tarde dará entrada no Grande Sanatório do Caramulo, o que não pode deixar de evocar a memória de Hans Castorp de Thomas Mann naquela que é uma das obras-primas da literatura mundial. Entretanto, este narrador na primeira pessoa refere, recorrentemente, uma «rapariga» que visitou «ruínas» e «coleciona histórias de tuberculosos» (p. 16), rodeada de páginas de documentos e ensaios, como o da «ideia romântica da tuberculose e os escritores portugueses que foram suas vítimas» (p. 16). A autora entretece a narrativa com um levantamento da tuberculose, um dos principais flagelos da época, ao mesmo tempo que faz uma apreciação sucinta da forma como a doença afectou escritores portugueses e brasileiros da altura, que padeceriam dessa doença ou seriam tocados pelas suas asas. Revivificam-se nestas páginas nomes como António Nobre ou Júlio Dinis.
Para complicar um pouco mais, a narrativa está ainda pontuada por considerações histórias de como a doença foi sendo considerada ao longo do século, conforme o conhecimento sobre o seu diagnóstico e cura ia evoluíndo, com particular destaque para as citações extensas de um texto intitulado «Considerações sobre a morte, alinhavadas por R. N.» – note-se as iniciais, idênticas às do apelido da autora.
A autora disserta em torno desta «peste branca», a «doença que todos receavam» (p. 92), considerando como inclusivamente a tuberculose era muitas vezes vista, de início, como uma melancolia ou um torpor que acometia sobretudo os mais sensíveis, como poetas e escritores.
«A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.» (p. 92)
A doença da tuberculose, ainda sem tratamento médico e farmacológico adequado, representa um mal maior, permitindo à narrativa efectuar um diagnóstico político e social de Portugal. Este romance, onde a febre se reveste de significados distintos, e causas diversas, como a da paixão ou a do fibrilar de uma mente mais sensível, mas sobretudo como sintoma de doença, é um retrato de uma época e de um país doente, mesquinho por vezes, apesar de se ter fechado em si para evitar flagelos exteriores como a Segunda Guerra, sob o jugo do punho forte ou tirânico de Salazar, que era aliás uma visita regular do Sanatório do Caramulo. A Guerra Civil de Espanha e a Segunda Grande Guerra, aliás, traziam para a serra portuguesa «tuberculosos abastados dos grandes sanatórios europeus» (p. 102), sendo a Madeira outro espaço eleito para a cura desta doença.
Mas não se pense que se sai destas páginas com sintomas de tosse convulsa ou de algum sentimento de finitude secular mais adequado à morbidez ultra-romântica. Sai-se sim com a confirmação de que esta jovem autora é uma das novas vozes a reter na literatura portuguesa contemporânea. Ver artigo
Este livro (da Temas e Debates) debruça-se de forma científica sobre a forma como a meditação, uma prática cada vez mais corrente e assente em diversos contextos, inclusive empresas e escolas, passou nas últimas décadas a ser vista como uma panaceia. Não se infira, contudo, que os autores estão contra a meditação. Pretendem sim estudá-la com bases científicas e evidenciar com recurso a provas fundamentadas na ciência que a meditação pode alterar o funcionamento da mente, do cérebro e até mesmo do nosso corpo. Falar de meditação é também falar de outra prática que se tem tornado bastante divulgada recentemente: o mindfulness. Os autores começam por diferenciar a vida profunda da via larga, sendo a via profunda a vivência plena da meditação na sua forma mais pura, como em antigas linhagens budistas do sudeste asiático ou entre os iogues tibetanos, ou ainda a forma como a meditação deixou gradualmente de fazer parte de um estilo de vida total para ser adaptada ao gosto ocidental. Consoante se sobe de nível a meditação vai sendo considerada nas suas formas mais diluídas, tendo-se tornado também acessível a um conjunto mais amplo de pessoas.
Os autores viveram durante alguns anos em países como a Índia ou o Sri Lanka, onde imergiram noutro modo de vida, estudando os antigos textos, conhecendo estudiosos de meditação, praticando os antigos métodos e vivendo em retiros. São professores e investigadores reputados da Psicologia, Psiquiatria, ou Neurologia, e puderam usar instrumentos modernos para, por exemplo, obter, em ambiente controlado de laboratório, tomografias do cérebro de praticantes de meditação a “nível olímpico”.
«Um traço alterado – uma nova característica que resulta da prática da meditação – perdura para lá da meditação em si. Os traços alterados mudam a forma como nos comportamos na vida quotidiana e não apenas enquanto meditamos, ou imediatamente a seguir.» (p. 13)
Este é um estudo sério e sólido, num tempo em que já é possível inclusive realizar Doutoramentos ou Pós-Doutoramentos em meditação, com referência a diversos estudos de caso. Ver artigo
Recomenda-se vivamente este livro da Dom Quixote que, curiosamente, foi publicado com uma requintada edição de capa dura, o que não é apanágio usual da editora (a não ser em edições especiais de algumas das mais recentes obras de António Lobo Antunes), além do uso da cor dourada sobre um fundo negro.
Amor Towles nasceu em Boston, formou-se em Yale e o seu primeiro romance, publicado em 2011, foi considerado como um dos melhores livros do ano pelo Wall Street Journal, traduzido para mais de 15 línguas e foram comprados os direitos de adaptação ao cinema. Este segundo romance, publicado em 2016, permaneceu 40 semanas no top de vendas do New York Times. Considerado o melhor livro do ano por diversas publicações e com os direitos de adaptação à televisão comprados em 2017, percebe-se o furor que o livro tem provocado. O escritor trabalhou durante 20 anos como investidor e dedica-se agora exclusivamente à escrita.
No dia 21 de Junho de 1922, o Conde Aleksandr Ilitch Rostov comparece no Kremlin perante a Comissão de Emergência do Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, como que acusado de viver luxuosamente em tempos de mudança, onde a «classe ociosa» já não tem lugar nem um papel útil a sociedade. Perante o sonante nome desta personagem, somos transportados para as páginas dos livros de Tolstoi ou Dostoiévski, contudo o que predomina desde as primeiras páginas não é uma alma torturada pela época, mas sim uma alma livre, espirituosa, irreverente (ou não se sentisse dono do mundo onde vive) e que vive de forma mais ou menos diletante no luxuoso Hotel Metropol, com hora marcada todas as semanas no barbeiro, tendo prioridade perante quem já lá está, e tomando as suas refeições no restaurante Boiarski, onde o cozinheiro se permite indignar perante a capacidade do Conde conseguir detectar quais os ingredientes pobres que têm de ser utilizados como substitutos como substitutos numa boa receita em tempos de carestia e de frugalidade.
Há uma passagem que retrata bem o espírito desta leitura, como um libelo contra os tempos que se vivem:
«É bem verdade que um homem pode sentir-se completamente desfasado do seu tempo. Um homem pode ter nascido numa cidade famosa pela sua cultura idiossincrática e, no entanto, não compreender minimamente os hábitos, modas e ideias que exaltam essa cidade aos olhos do mundo. Avança pela vida fora, olhando à sua volta num estado de desconcerto, sem compreender as tendências, nem as aspirações dos seus pares.» (p. 107)
O humor e a ironia são claramente actuais: «embora os duelos tenham surgido como resposta aos crimes graves – deslealdade, traição e adultério -, em 1900 já tinham descido as escadas da razão em bicos dos pés e eram travados por causa da inclinação de um chapéu, da duração de um olhar ou da posição de uma vírgula.» (p. 60)
O que não belisca o prazer da leitura nem diminui a perícia do autor no reviver e reconstruir de uma época. Aliás as próprias notas do autor que surgem em rodapé são feitas na primeira pessoa do plural, como um “nós, os russos” que interage directamente com o leitor a partir do período retratado no livro. Esta é uma época dourada que está irrevogavelmente no seu ocaso e fazem do Conde Aleksandr um último sobrevivente. Ou talvez ainda haja surpresas?
O que é certo é que este nosso herói, mesmo quando se vê forçado a viver o resto da sua vida no hotel, não esmorece na compostura de um digno cavalheiro nem perde o sentido de humor ou o gosto pela vida nos gestos e acções mais simples. A intriga tem alguns saltos narrativos que nos fazem acompanhar a sua vida no Hotel Metropol primeiro como um solteiro bon vivant e depois como pai adoptivo da filha de uma jovem com quem travou amizade quando ela própria ainda era criança. Ver artigo
Entre a memória e a recriação fictícia da memória, passando pela história, pela arte e pela literatura, este livro marca a estreia na ficção desta autora nascida na Argentina. Correspondente do The New York Times em Buenos Aires, onde nasceu, colabora da revista Artforum e de um suplemento, tendo orientado cursos para artistas e ateliers de crítica de arte, co-editora de uma colecção sobre pintura argentina, e autora de um livro de ensaios sobre a arte argentina, María Gainza parece levar-nos pelas galerias da sua memória pessoal como quem nos conduz numa visita guiada a um museu: «na arte tudo se joga na distância que vai de algo que nos parece bonito a algo que nos cativa, e (…) as variáveis que modificam essa percepção podem e costumam ser as mais insignificantes.» (p. 11)
Conforme anunciado na contra-capa do livro: «Como num museu – lugar que, aliás, frequenta muitas vezes à maneira de uma sala de primeiros-socorros -, a sua vida tem obviamente obras-primas, mas também pequenos quadros escondidos em corredores escuros e estreitos. E, no entanto, todos eles importam.»
Um quadro, como uma memória, pode sempre revelar-se como um portal com duas saídas, uma para a história oficial e outra que se esconde sob a tela e apela directamente aos nossos sentidos. Como escreve a certa altura: «as coisas deste mundo parecem-me ambíguas, admitindo pelo menos duas leituras» (p. 24). Até porque como se interroga a autora: «também não sei porque estou a contar isto agora, mas suponho que é sempre assim: escrevemos uma coisa para contar outra» (p. 18)
A procura da identidade na arte é tão forte que a autora chega mesmo a encontrar um quadro que é a cópia de si própria na infância:
«Éramos ela e eu. A fascinação de me reconhecer foi a chave, não vou negar: aquela rapariga provocava-me indescritíveis excessos de ternura, queria correr a abraçá-la. Sei que as razões pelas quais me aproximei daquela pintura não passariam num exame da academia, essa casa dos espíritos sublimes onde o maior medo é fugir, mas não são afinal todas as boas obras pequenos espelhos? Não é verdade que uma boa obra transforma a pergunta «o que está a acontecer» em «o que me está a acontecer»? Não é toda a teoria também autobiografia?» (p. 128)
Entre a memória pessoal e o ensaio, com laivos de subtil perspicácia sobre a vida, a autora conta-nos na primeira pessoa como a sua vida se foi construíndo em torno da arte, enquanto nos fala da família ou de uma amiga de infância, ao mesmo tempo que reconta a vida de pintores como El Greco, Courbet ou Fujita, detendo-se particularmente nos momentos mais anedóticos ou inverosímeis, como que a desafiar a capacidade da realidade suplantar a ficção.
Este livro é ainda a prova de que a literatura latino-americana continua prolífica em ímpeto e em autores. Ver artigo
Roger Scruton é filósofo, escritor e crítico cultural, com uma vasta e multifacetada obra, é um intelectual com presença assídua e um contributo importante na discussão pública de ideias, nos vários campos da filosofia ou mesmo na metafísica. A obra agora publicada pela Gradiva é a versão revista de 3 conferências proferidas na Universidade de Princeton em 2013.
O autor começa por considerar as teorias geneticistas e evolucionistas para depois se demarcar delas com vista a sustentar a sua defesa, a partir de diversas leituras sempre referenciadas, de que a natureza humana não é simplesmente um outro estádio evolutivo da natureza animal. Isto é, o riso, a moral, a cultura, a arte, e as várias formas de prazer que o ser humano pode experienciar são condições que distinguem o Homem dos outros animais. Ver artigo
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