David Machado nasceu em Lisboa em 1978, e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade foi adaptado ao grande ecrã, com realização de Joaquim Leitão e participação do autor na elaboração do guião. O livro foi vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, prémio aliás que abriu portas ao autor, pois levou a vendas de direitos para uma dezena de países, tradução dos seus livros anteriores, a premiação da edição italiana e a participação de David Machado em vários festivais e feiras do livro.
Um livro que levou cerca de três anos a ser escrito, conforme se sente na tessitura narrativa, mais burilada, e a procura de uma originalidade no estilo e na forma como tenta cruzar três narrativas diferentes, sem propriamente simplificar a história, cingindo-as a um enredo único. Na segunda parte do livro existe mesmo um jogo literário mais evidenciado, na forma como o autor inova e procura reflectir sobre o processo da própria escrita. Processo esse que «Custa tanto» conforme as suas personagens referem.
O autor inova ainda, particularmente na primeira parte, e naquela que é a narrativa mais forte e que mais marcas deixará certamente no leitor, ao adoptar uma voz narrativa feminina, pois as suas personagens anteriores são maioritariamente masculinas. Apesar de inicialmente a voz da personagem de Júlia nos parecer encaminhar para uma história de violência, pelo modo como deixa perceber, gradualmente e sempre de forma ambígua, como esta adolescente terá sido vítima de maus tratos ou de abuso há cerca de um ano, sem nunca se deter propriamente nesse episódio, para que o leitor o capte e veja na sua totalidade, esta jovem irá revelar como se convive com uma dor profunda, que se tenta camuflar na esperança que adormeça. A história desta adolescente de dezanove anos, emancipada, magoada, que sente repúdio de qualquer contacto físico ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sente as lágrimas virem-lhe aos olhos assim que lhe tocam, é um desvelar de como se vive o trauma e a dor, a memória de um acto profundamente doloroso, físico ou emocional, que deixa marcas duradouras e impressões indeléveis, debaixo da pele. Pode até parecer um cliché a forma como uma das constantes da vida de Júlia, mesmo dentro do casulo do seu quarto, ser o barulho constante das discussões acesas do casal vizinho, como um ruído de fundo à história de Júlia, conforme lida com a depressão e o trauma do que lhe aconteceu, e da forma como isso a impele a querer salvar uma menina de cerca de cinco anos, a filha do casal do lado, cujo som de desamor atravessa as paredes e atinge o âmago da dor que Júlia procura disfarçar. Ver artigo
Docente de História na Sciences Po, em Paris, onde tem sido responsável por vários cursos, nomeadamente História da Europa e História de Portugal no século XX, doutorado com uma tese sobre o salazarismo e especialista em História Contemporânea de Portugal, Yves Léonard é publicado entre nós pela Objectiva.
O livro conta ainda com um prefácio de Jorge Sampaio, presidente da República Portuguesa entre 1996 e 2006.
Em cerca de 300 páginas, podemos percorrer o século XX desde a queda da monarquia até à actualidade, pós-Troika. Como escreve o autor: «Foi um século XX bastante longo na medida em que não começou em 1900, nem sequer em 1910 com o derrube da monarquia e a proclamação da República (…) mas sim com a crise provocada pelo Ultimato britânico em Janeiro de 1890.» (p. 21)
Desde a queda da monarquia até à actualidade, o autor apresenta o país numa «síntese em dez fotogramas do Portugal moderno, nascido com a proclamação da República», segundo o prefácio, através do «cruzamento de fontes diversificadas», como a antropologia, a política, a economia, a análise social, a cultura, e, em particular, a literatura.
Yves Léonard ressalva logo na «Introdução» do livro que, apesar dos lugares comuns como as proezas de Cristiano Ronaldo, os êxitos da Selecção Nacional, os nomes sonantes da literatura, mesmo que ainda apenas contemos com um único Nobel, o Portugal contemporâneo continua por descobrir enquanto «verdadeiro objecto de estudos e investigações, autónomo e de uma grande fecundidade, palco de uma história singular, a um nível semelhante ao da “idade de ouro” dos Descobrimentos» (p. 18).
O trabalho é extenso e complexo, mas apresentado de forma acessível, provavelmente tal como foi apresentado nos cursos assegurados pelo autor, e lê-se com prazer este documento histórico como se fosse uma epopeia. Numa dezena de capítulos organizados, naturalmente, por ordem cronológica, passam-se em revista, os momentos cruciais da nossa história no último século: «Quatro regimes políticos diferentes, quatro Constituições, quatro ditaduras», entre elas a mais longa da Europa Ocidental, a do Estado Novo salazarista, dois chefes de estados assassinados, uma «descolonização tardia» e uma «emigração endémica» (p. 21). Ver artigo
Ponta Gea é o mais recente livro de João Paulo Borges Coelho e provavelmente o mais corajoso, assumindo não somente uma narrativa feita na primeira pessoa como também uma perspectiva em que os acontecimentos narrados são filtrados a partir do espaço-memória de infância. O autor, muitas vezes enquanto criança, rememora os lugares que persistem, muitas vezes, apenas na memória e na imaginação de uma cidade inventada.
Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões.
O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E.
Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»:
«A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal?
Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11)
Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fotografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna.
«Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12) Ver artigo
David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade é uma história já apresentada por mim no Cultura.Sul, foi adaptado ao grande ecrã e vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura. Ver artigo
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel. Ver artigo
Reler um romance como Rebecca após 10 anos tem o condão de fazer ressurgir lembranças bem vívidas, como a sinistra Mrs. Danvers, a ingénua protagonista sem nome, e o emblemático final em que a sugestão paira no ar como um clarão distante, ao mesmo tempo que se faz a leitura de todo um novo livro que desconhecíamos por completo e que merece justamente ser revisitado, como quem regressa a Manderley.
Os pressentimentos e maus presságios conferem um ambiente fantástico ao romance, que se afasta do melodrama romântico para se aproximar mais do universo policial e misterioso, em que a eterna inominada e jovem heroína, Mrs. de Winter, segunda esposa de Maximilian de Winter e sucessora de Rebecca, tenta juntar as peças desse enigma chamado Rebecca para poder compreender o comportamento do seu enigmático e por vezes irascível marido, o ódio da governanta que se move como uma sombra a dominar a casa, ao mesmo tempo que tenta lutar contra o fantasma omnipresente da sua antecessora, senhora da mansão de Manderley, que parece capaz de devorar tudo e todos, inclusivamente a sua própria identidade.
Rebecca, de Daphne Du Maurier
Originalmente publicado em 1938, conheceu inúmeras reedições e Alfred Hitchcock adaptou-o ao cinema em 1940, vencendo dois Óscares. Foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que aliás já publicou outras obras da autora, também adaptadas ao pequeno e grande ecrã, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel. Ver artigo
Rodrigo Guedes de Carvalho, nascido em 1963 no Porto, é uma presença assídua na vida de muitos portugueses, como apresentador do telejornal das 20 h na SIC, mas é bom lembrar que já escrevia antes de se tornar conhecido como pivô e nos entrar pela casa dentro. Escreveu ainda argumentos cinematográficos, como Coisa Ruim, filme realizado pelo irmão Tiago Guedes, e um guião para teatro. Pertenceu à direcção de informação da SIC entre 2007 e 2016, interregno em que suspendeu a sua paixão pela escrita. Dez anos depois do seu anterior romance, Canário, Rodrigo Guedes de Carvalho regressa à ficção, com O Pianista de Hotel, o seu quinto romance, publicado em Maio de 2017 pela Dom Qixote, e que soma já várias edições.
Apesar da frase colocada em epígrafe do livro, «Boy meets girl», apresentada como «Ideia de Hitchcok para um filme», nestas páginas não se toca nenhuma melodia de amor nem nenhum ambiente de fundo como música de hotel ou de elevador. A melancolia é aliás o tom dominante.
Vivem ambos na mesma cidade, o que começa a aproximar-se mais das comédias românticas de Woody Allen pois imagina o leitor uma série de peripécias e encontros que os irão aproximar. Mas o narrador vai apenas e sucessivamente apontando as várias ocasiões em que se frustrou um encontro entre Maria Luísa e Luís Gustavo, os dois protagonistas centrais da história, que aliás partilham um nome próprio comum: «Luís Gustavo ainda não sabe, mas irão jantar no restaurante onde Maria Luísa trabalha.» (p. 183). Mas nem essa afinidade do nome os salva dos recorrentes desencontros. Os capítulos são normalmente alternados, centrados em torno de cada uma destas personagens, e os episódios são muitas vezes apresentados na sua simultaneidade, como se pode ler logo no segundo capítulo: «Sensivelmente à mesma hora, num outro ponto da cidade, mas afinal tão parecido.» (p. 25). Esta técnica narrativa aproxima aliás a prosa do autor da escrita de argumento.
Maria Luísa e Luís Gustavo partilham também a condição de orfandade, pois se ele foi abandonado pela mãe, logo após o parto, ela perdeu a mãe quando tinha dezasseis anos. Apesar da superlativa beleza de Maria Luísa, que o narrador por pudor e respeito se esquiva a descrever com exactidão para não a surpreendermos à saída do duche, invejada pela mãe que se sente traída quando o seu parceiro tenta violar a filha, embora possamos presenciar em vários momentos como outros se viram para olhar o corpo magnífico de Maria Luísa, apesar de até uma médica colocar em risco a sua carreira para pode chegar a esta jovem empregada de mesa num restaurante, apesar do refrão que perpassa no romance «O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós», a solidão de Maria Luísa permanece e nada a parece resgatar da monotonia. Maria Luísa vê-se mesmo incapacitada de amar a cínica tia, o único familiar que lhe resta e que a nomeará sua herdeira. Podemos remeter-nos, uma vez mais, para as frases em epígrafe do romance e que dão o tom da narrativa, neste caso um excerto da letra da música «Eleanor Rigby» dos The Beatles: «Ah, look at all the lonely people».
À solidão junta-se um sentimento de frustração ou de insatisfação pois todas as personagens se sentem aquém das suas possibilidades e desejos: Maria Luísa não pôde prosseguir os estudos, Luís Gustavo queria ser médico mas ficou-se pela profissão de enfermeiro, o cirurgião Paulo Gouveia sente-se cansado da sua carreira, a mãe de Maria Luísa, «segunda secretária de um subsecretário» aspirava a mais mesmo que para isso usasse o corpo (ao contrário da filha, que nem se apercebe do corpo que tem), Saul Samuel que passou a vida como bailarino numa discoteca gay até que se cansa, mas sem saber o que fazer depois. A morte, que aparece transfigurada ou personificada logo no primeiro capítulo, quando Maria Luísa tem a visão do fantasma da mãe, é o desfecho que precipita uma série de desencontros afectivos, como se as personagens apenas se dispusessem a querer tocar os seus entes queridos quando confrontadas com a inevitável realidade da sua ausência, o que leva, por exemplo, Pedro Gouveia a transferir o seu amor pela filha para o enfermeiro Luís Gustavo. Ou o acto falhado do amor que Saul Samuel alimenta por Rui Begonha, que ao deixar desabrochar a sua homossexualidade nos seus breves encontros com Saul Samuel acaba por depois se fixar num outro homem, apesar de ser Saul Samuel a vítima da fúria física dos filhos, quando descobrem da homossexualidade do pai. Ou a mãe de Luís Gustavo que carrega o peso da culpa de ter abandonado o filho mas nem sabe o quão próximos estão nem o procura.
Existem duas descrições de actos ou (des)encontros sexuais, mas estes são tão bruscos e violentos, que parecem apenas corroborar a solidão como condição humana inviolável e o sexo como choque de corpos e vontades onde há pouco espaço para uma comunhão. A cena em que Rui Begonha tenta sexo anal com a mulher nada tem de desejo ou de paixão, pois é exclusivamente dominada pelo desespero, uma vez que ele é movido pela descoberta desconcertante de que se sente atraído por homens, enquanto ela se submete para tentar salvar o casamento. A outra cena entre Maria Luísa e Saul Samuel, dois melhores amigos, ou companheiros de jornada que tentam amenizar a solidão na companhia um do outro, acabam por se atirar um ao outro num impulso de fome de contacto físico, apesar de Maria Luísa estar perfeitamente ciente da homossexualidade de Saul Samuel.
A escrita de Rodrigo Guedes de Carvalho respira vitalidade. O autor não teme inovar e verter a sua prosa narrativa segundo uma plasticidade muito própria, onde desconstrói convenções de pontuação ou de apresentação gráfica. A linguagem no romance, muitas vezes crua e gráfica, pode chocar mas a verdade é que o autor procura retratar a realidade como ele a vê e como tantas vezes ele próprio no-la apresenta nesses estilhaços que enchem as telas dos nossos televisores. Por isso, se a linguagem muitas vezes gráfica é apenas espelho da realidade linguística, tentando aproximar-se do modo como as pessoas realmente falam, se a prosa é crua e directa, a melancolia ou pessimismo que dominam o romance podem também ser um desassombro face à realidade. O autor parece tomar posição contra o cor-de-rosa das histórias de amor e o tom delicodoce que invade as manhãs de televisão com programas genéricos que acompanham uma larga camada da população: «Vê por vezes, sobretudo em programas de televisão, que há nesta altura inúmeros especialistas em decifrar sentimentos e apontar soluções, tão seguros e confiantes que a gente se sente logo segura e confiante ao ouvi-los.» (p. 105). O narrador adopta um tom muitas vezes crítico ou até moralizador: «Imaginemos, os que de nós ainda conseguirem esse prodígio de memória, o que é crescer, num período que é só incertezas, com a certeza de que o mundo já nos tirou a fotografia.» (p. 38).
Voltamos às epígrafes, desta vez uma citação de Shakespeare: «O homem que não é sensível à música,/Que não se comove com a harmonia dos doces sons,/Nasceu para as traições, os ardis, os roubos;/Os movimentos do seu espírito são surdos como a noite».
Pode ler-se a certa altura que a televisão «faz companhia às pessoas que vivem sozinhas» (p. 416). Mas só a música parece ter o condão de matar a solidão das pessoas, como acontece com o pianista de hotel ou o artista de rua que faz Maria Luísa parar e escutar. Porque «a música, a arte, é a única coisa do mundo que pode ser bela sendo triste.» (p. 424). E apesar de o ruído e o som, próprios de uma grande cidade, estarem sempre presentes desde as primeiras linhas, é a música que surge como bálsamo, apesar de muitas vezes mal darmos por ela ou pelos artistas que no-la trazem, o que leva, por exemplo, a que Luís Gustavo e o médico Pedro Gouveia sejam tocados pelo pianista de hotel, e saberem ler os seus estados de alma pelas músicas que toca, enquanto os outros clientes do bar do hotel parecem nem dar por ele. A música assemelha-se assim ao ritmo da nossa pulsação, ao tempo da nossa respiração, como algo que nos revela continuarmos vivos: «a sensação de conforto, digam o que disserem, está muito dependente do bater do coração» (p. 110). E mesmo que esta seja uma “anti-história de amor”, apesar de se poder ler algures que «os escritores não têm de sentir nada, ou querer significar nada, têm é de escrever» (p. 391), Rodrigo Guedes de Carvalho deixa-nos uma intrigante e inquietante narrativa, mesmo que no «último capítulo», e note-se o fatalismo, se confirme o permanente desencontro do não-par amoroso, uma narrativa híbrida como a melódica onde o pungente convive com o belo, e onde tal como o teclado do piano ou a melódica que requer sopro, o instrumento nunca toca sozinho, como uma obra que só ganha som quando lida. Mas se um artista de rua quando toca, toca para si mesmo, será que um escritor quando escreve, escreve apenas para si? Ou pretende tocar outros, mesmo os mais desatentos e os mais embrutecidos? Ver artigo
Uma prosa enfeitiçante e um livro cativante que prende rapidamente o leitor, apesar da ambiguidade próxima de um ambiente fantástico que por vezes toca o grotesco mas sempre sem perder o lirismo.
Depois do êxito de A Vegetariana, vencedor do Man Booker International Prize de 2016, a Dom Quixote publica o segundo romance da autora sul-coreana Han Kang, professora de Escrita Criativa no Instituto de Artes de Seul, publicado originalmente em coreano em 2014 e traduzido a partir do inglês numa tradução atenta e cuidada.
No primeiro capítulo narra-se a história de um rapaz que procura o amigo, sendo esta voz narrativa bastante peculiar pois é narrada na segunda pessoa, como se o narrador falasse com a própria personagem: « – Parece que vai chover – murmuras para ti próprio.» (p. 13)
Esta segunda pessoa que parece dirigir-se ao leitor, identificando-o com o rapaz, marca o tom desde a primeira linha atrás citada, e apesar da ambiguidade e dos contornos incertos do que se descreve incita a uma leitura implícita da obra como um retrato político de uma realidade traumática vivida na Coreia do Sul, nos anos 1980, que resultou num dos piores massacres da história do país.
No segundo capítulo, encontraremos «O amigo do rapaz» e perceberemos que ele está morto, contando-nos a sua perspectiva do desfecho do massacre, primeiro como cadáver e depois como fantasma.
Neste livro narra-se, primeiro com ambiguidade, mas depois sem rodeios e cada vez com mais precisão, a brutalidade da repressão e da censura, num momento particularmente delicado na história da Coreia do Sul, quando o país vive sob a lei marcial e depois Park Chung-hee é assassinado pelo próprio chefe dos seus serviços de segurança, apenas para suceder ao poder outro militar autocrata.
Para narrar o inacreditável mas verídico massacre de quando em 1980 os estudantes se revoltaram contra o encerramento das universidades e a falta da liberdade de expressão, a autora Han Kang opta por filtrar os acontecimentos de forma intimista e pessoal, num tempo narrativo em que o passado se intromete recorrentemente no presente, a lembrar que a voz da história não dá descanso. Ver artigo
Uma colectânea de onze contos – transgressores, subversivos, por vezes desconcertantes –, de Hilary Mantel, autora inglesa, com catorze livros publicados, duas vezes premiada com o Man Booker Prize pelas obras Wolf Hall (adaptada a mini-série televisiva) e O Livro Negro, que formam parte de uma trilogia centrada no reinado de Henrique VIII.
Em «Desculpe incomodar» encontramos um relato estranhamente intimista num apartamento claustrofóbico na Arábia Saudita, como que simbolizando o próprio ambiente reclusivo que as mulheres vivem nesse país, sejam elas locais ou as esposas que acompanham os seus maridos em missão. Há seis meses que a protagonista vive na Arábia Saudita com o marido, enquanto tenta escrever e sobreviver às suas dores de cabeça, quando faz uma amizade improvável com um vendedor.
No conto «Férias de Inverno», uma viagem de férias por uma estrada de montanha tem um desfecho trágico enquanto um casal no banco traseiro do táxi parece considerar se é melhor ter filhos ou investir em férias.
«O assassinato de Margaret Thatcher: 6 de Agosto de 1983» é o último conto da colectânea que confere o título ao livro e aparentemente um conto original nunca antes publicado, enquanto que outros nove dos onze contos foram anteriormente publicados em revistas ou colectâneas de vários autores. Com a ambiguidade que tantas vezes perpassa nas outras histórias, temos uma senhora que mora numa rua silenciosa e tranquila, sombreada por grandes árvores antigas, de grandes casas vitorianas ou georgianas, e que espera o homem que vai arranjar a caldeira mas depara-se com o que julga ser um fotógrafo pois ele entra-lhe pela casa afirmando que precisa de um bom plano da primeira-ministra que está prestes a sair do hospital onde fez uma cirurgia ocular. O diálogo que se segue, e onde não podia faltar a preparação de uma chávena de chá oferecida ao visitante/intruso, é deliciosamente ambíguo, pois o leitor apercebe-se entranto que a vista desimpedida que o homem pretende é para poder atirar sobre Margaret Thatcher, o que não ofende particularmente a sensibilidade da dona da casa…
Transversal a todos os contos destaca-se ainda a mordacidade narrativa como, por exemplo, na passagem: «Mesmo que nunca tenham passado por Harley Street, já devem ter criado uma imagem na vossa mente: (…) no geral, um ambiente que sugere que, se tivermos uma doença terminal, pelo menos partimos em grande estilo.» (p. 80) Ver artigo
A Casa das Letras continua a publicar na íntegra a obra do autor japonês Haruki Murakami, regressando agora ao registo do conto. Homens sem mulheres reúne sete contos do autor publicados originalmente no Japão entre 2013 e 2014, que não são propriamente breves, de fôlego curto, mas lêem-se muito bem e fazem-nos regressar ao usual universo onírico do autor. É por vezes difícil destrinçar entre autor e narrador, nomeadamente na forma como se assume a narrativa na primeira pessoa em diversos contos, além de o narrador se assumir quase sempre como um escritor, que interpela directamente o leitor, ou proprietário de um bar, como Murakami foi em tempos. A riqueza das histórias aqui reunidas parece advir dos relatos que esses narradores vão recolhendo: «Ao saber que eu era escritor, Tokai começou a revelar-me a pouco e pouco a sua faceta mais intimista. Talvez pensasse que, à imagem e semelhança dos terapeutas e dos padres, os escritores têm o legítimo direito (ou o dever) de ouvir o que os outros sentem necessidade de confessar.» (p. 103). A voz do narrador e, por vezes, a do autor são aqui claramente assumida, o que aliás só faz sentido uma vez que assim que se começa a ler Murakami em conto ou em romance é fácil sentirmo-nos puxados para esse estranho mundo familiar que se equilibra de forma periclitante, tensa, entre o onírico e o fantástico e dados que poderiam ser realistas mas que nunca são claramente objectivos. Entretecem-se assim referências comuns ao autor – literárias, cinéfilas – e, claro, a música, sempre essencial à sua escrita, do jazz ao pop, também pontuada por algumas referências clássicas, pois a música «tem o condão de ressuscitar a vivacidade das lembranças, ao ponto de fazer doer» (p. 86). Além do universo estranho que Murakami cria, onde não falta um conto inspirado em A Metamorfose de Kafka, em que o inusitado não é Gregor Samsa acordar como um insecto gigante mas sim como um jovem humano.
Homens sem mulheres, como o título deixa adivinhar, são também sete histórias de amor e desamor, quase sempre dominadas pela solidão destes sete homens, vítimas do luto ou da separação ou da saudade de uma mulher: «ao recordar a época em que eu tinha vinte anos, o que vem à tona é a minha solidão. Não tinha namorada para me aquecer o corpo e o coração, nem um amigo no qual pudesse confiar. Não sabia o que fazer dos meus dias, era incapaz de imaginar o que o futuro me reservava. Estava quase sempre fechado na minha concha, ao ponto de passar uma semana sem falar com ninguém.» (p. 86)
Como a Xerazade do seu conto, acerca de Murakami poderemos dizer um dia que se ignora «se as histórias eram reais, se não passava tudo de pura invenção, ou se era uma combinação das duas. Realidade e efabulação, observação e sonho pareciam inextricavelmente ligados, e raramente era capaz de as destrinçar.» (p. 129-130). Ver artigo
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