Partilhamos o comunicado de imprensa:
«Repleto de emoções, como a alegria e a tristeza, e uma intriga bem construída.» Sunday Post
A ILHA DOS SEGREDOS
Um livro para ver, viajar e sonhar Ver artigo
Se a metáfora de “a vida é um palco” já se torna batida, aqui a vida é uma noite de stand-up comedy.
Num livro talvez desconcertante ao início, o leitor levará algum tempo a familiarizar-se com uma narrativa que discorre na primeira pessoa, durante uma performance, pontuada por analepses, em que se alterna ainda entre o discurso do artista, a descrição das acções que se sucedem ininterruptamente e o pensamento, aliado ao seu rememorar, de Ashai Lazar, o protagonista. A própria vida é aqui vista e repensada como uma performance, em que os nossos actos podem voltar no futuro para nos confrontar ou, como acontece a certa altura com o artista durante a sua performance, há a franca possibilidade de darmos bofetadas em nós próprios. Aquilo que parece um espectáculo sem nexo, quando ouvimos um artista em palco que tanto pretende fazer rir o público, como de repente se esquece e se põe a relembrar e recontar a sua vida, pode ainda ser interpretado como uma alegoria dos tempos actuais, em que tudo aquilo que fazemos é colocado em foco, como se estivéssemos ou nos imaginássemos perante um palco (com um certo egotismo e narcisismo, como nas selfies que inundam as redes sociais), dignos da atenção do mundo inteiro pelos gestos mais banais.
O artista pretende gozar com tudo e o público continua a rir, mesmo quando se sente incerto ou mesmo incomodado pelas piadas que versam inclusivamente a doença ou a morte, como se na vida tudo fosse risível ou talvez seja o riso a única salvação e a melhor forma de relativizar. Mas o humorista também corre naturalmente o risco de se tornar anedota…
A dada altura, Ashai Lazar, o protagonista, especialmente convidado pelo artista a comparecer, até porque ele é um juiz (e quem melhor do que um juiz para julgar a sua performance?) sente-se mesmo tocado por esta performance de stand-up comedy como há muito tempo a arte não o fazia sentir: «Como é que a sua verborreia histérica e as suas piadas irritantes tiveram sobre mim o mesmo efeito que a luz estroboscópica sobre os epilépticos, precipitando-me mais e mais para dentro de mim, para a minha vida?/E como é que ele, no seu estado, fez por mim aquilo que nenhum dos livros que li, dos filmes que vi ou das consolações que os meus amigos e parentes me ofereceram fizeram nos três últimos anos?» (p. 87)
O texto ganha assim laivos metaficcionais, na medida em que se pensa a si próprio e reflecte sobre a literatura. É curioso aliás que este juiz ainda por cima seja autor de textos ou sentenças incisivas e mais ou menos cuidadas literariamente: «Pensei nas minhas sentenças, cuja mínima frase polia e limava e nas quais de vez em quando – de uma forma obviamente discreta e sem pretensões – introduzia alguma metáfora florida, citação de um poema de Pessoa, Kavafy ou Nathan Zach, ou até alguma imagem poética da minha autoria.» (p. 75) Ver artigo
João Reis nasceu em Vila Nova de Gaia em 1985. Licenciado em Filosofia, foi fundador e editor da Eucleia Editora, de 2010 a 2012. É tradutor literário, especialista em línguas nórdicas, tendo traduzido para português livros de Knut Hamsun, Halldór Laxness e Patrick White, entre muitos outros. Entre 2012 e 2015, trabalhou e residiu na Noruega, Suécia e Inglaterra, onde exerceu várias profissões, como trabalhar numa cozinha ou num armazém de vinhos. Não deixa de ser curioso o percurso deste jovem tradutor e autor, que aprendeu diversas línguas pela sua própria iniciativa, procurando professores particulares. Ver artigo
Nascido em Washington em 1977, este autor é uma das jovens vozes proeminentes da literatura norte-americana. Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2012) foi um sucesso inclusivamente adaptado ao cinema, apesar de abordar um tema delicado, pois trata de uma criança cujo pai foi vítima do 11 de Setembro. Sem querer entrar em comparações e superlativações, podem encontrar-se ecos na sua escrita de Jonathan Franzen e de um Philip Roth mais jovem. Neste Aqui Estou, o autor regressa à questão do judaísmo, como aconteceu em Está Tudo Iluminado, o seu primeiro romance, escrito aos 24 anos.
O título Aqui Estou é enganosamente simples, como a certa altura se explica, em referência ao episódio bíblico de Abraão. Quando Deus testa Abraão e o chama, este responde: «Aqui estou.»
«A maior parte das pessoas pensa que o teste é aquilo que se segue: Deus a pedir a Abraão que sacrifique o filho, Isaac. Mas acho que também podemos fazer a leitura de que o teste aconteceu quando Deus o chamou. Abraão não disse: «O que queres?» Não disse: «Sim?» Respondeu com uma afirmação: «Aqui estou.» Seja o que for que Deus queira ou precise, Abraão está inteiramente presente para ele, sem condições ou reservas ou necessidade de explicação.» (p. 134)
É um livro cujo tamanho pode assustar mas que se lê com leveza e divertimento, escrito com sensibilidade, ironia e humor. Por vezes uma crítica corrosiva ao modo de vida americano: «os Chineses são suficientemente espertos para saber que os Americanos são suficientemente estúpidos para comprar seja o que for» (p. 246).
Tragicomédia moderna, assente em parte numa revisão da cultura judaica ou de como se pode continuar a ser judeu nos dias que correm, numa América ela própria desamparada em termos de identidade, mesmo que não se entre em críticas directas a Trump – apenas surge a referência a um «presidente saloio de cabeça gigante» (p. 256).
Jacob é um escritor frustrado, resignado a escrever o guião de uma qualquer série de sucesso com dragões, seguida por 4 milhões de pessoas, e Julia, uma arquitecta que nunca viu um edifício desenhado por si construído, quarenta e três anos e uma mãe de sucesso, com três filhos, aliás, quatro, contando com o marido. Até que após quase vinte anos de vida em conjunto tudo é posto em causa por causa de umas mensagens pornográficas encontradas num telemóvel que surge no chão da casa de banho, onde um marido hipocondríaco e aparentemente recalcado se refugia todas as noites para enfiar supositórios.
Os diálogos de família são absolutamente caóticos, o que só retrata como tantas vezes a vida em família é feita de conversas cruzadas, em que todos falam em simultâneo e as falas encadeiam-se umas nas outras, e de desentendimentos que nos aproximam.
Este é também um livro sobre uma crise de fé no casamento, pois a resposta «Aqui Estou» pode ser igualmente aplicada a uma relação conjugal que é constantemente posta à prova e ainda assim encontra forma de sobreviver, perante a rotina, a apatia, a insegurança de cada um, ou a traição, quando, subitamente, um casamento pode tornar-se uma guerra civil:
«Ao décimo dia, Jacob abriu a porta da casa de banho e viu Julia a secar-se depois de ter tomado duche. Ela cobriu-se. Ele já a tinha visto sair de centenas de banhos, já tinha visto três bebés saírem do corpo dela. Tinha-a visto despir-se e vestir-se milhares e milhares de vezes (…). Tinham feito amor em todas as posições, com todas as partes do corpo vistas de todas as perspectivas possíveis.
– Desculpa – disse ele, sem saber a que se referia a palavra, sabendo apenas que o seu pé carregara ao de leve na espoleta de uma mina.» (pág. 168) Ver artigo
(agora quase recuperado da doença, e atropelado por trabalho, é altura de regressar à actividade e para isso nada melhor que ler um grande romance de uma grande dama da literatura portuguesa) Se Os Memoráveis encerrava um ciclo, iniciado com a obra de estreia sobre a Revolução de Abril, O Dia dos Prodígios, e fechado com esse trabalho de reconstrução ou resgate da memória da Revolução em Os Memoráveis, então este Estuário pode bem marcar uma nova fase na escrita da autora, como se pode ler na passagem: «Então, alguém teria de escrever esse livro, um livro que fosse, ao mesmo tempo, o último do passado e o primeiro do futuro.» (p. 15)
Se em O Vale da Paixão, o sentimento era de diáspora, e havia uma casa abandonada assombrada pelos passos desiguais dos seus poucos ocupantes, em Estuário, apesar do título dar a entender que há um desaguar ou um fluir, do rio para esse «mar oceano», o sentimento é de retorno, pois os vários filhos do pai Galeano regressam a casa.
Este é um novo marco, estou certo, na obra da autora e que nos prepara para o fluir de um novo ciclo. Ver artigo
Este interessantíssimo livro, publicado pela Temas e Debates, está dividido em seis capítulos e explica o funcionamento do cérebro, abordando de forma apelativa o modo como decidimos, sentimos e pensamos, desde a mais tenra idade. O autor recorre aos mais variados estudos para comprovar como o cérebro de um bebé já está predisposto para a linguagem, ainda antes de começar a falar, que o bilinguismo pode inclusivamente trazer benefícios à nossa saúde mental e física, que ocorre uma grande transformação no cérebro quando aprendemos a ler e que o ser humano forma as noções do bem e do justo, da cooperação e da competição, logo nos primeiros meses de idade. A escrita é acessível, empolgante, com momentos de humor por parte do autor, que continua a discorrer com entusiasmo e erudição, recorrendo, em vários passos, a citações literárias de variados autores, como, por exemplo, José Saramago.
É particularmente interessante como o autor procura justificar que o inato não é o oposto do aprendido, mas sim «algo aprendido na cozinha lenta da história evolutiva do Homem» (p. 35), ou que o cérebro na sua magnificente arquitectura está preparado para a linguagem mas precisa de estímulo social, que «o bilinguismo ajuda uma criança a ser o piloto do seu próprio pensamento» (p. 41), pois desenvolve a capacidade executiva do cérebro, a forma como o cérebro calcula o tempo (o que explica finalmente porque é que quando fazemos exercício físico o tempo parece muito mais lento, mas porque o contamos muito mais rápido, em função da pulsação acelerada), e o modo como muitas vezes perante uma tomada de decisões o melhor é agir impulsivamente, pois o cérebro intuitivamente encontra a melhor resposta numa fracção de segundo.
Mariano Sigman é neurocientista, físico de formação, fundador do Laboratório de Neurociência Integrativa da Universidade de Buenos Aires e uma figura internacionalmente conhecida no domínio da neurociência cognitiva da aprendizagem e da decisão. Foi galardoado com os mais variados prémios, como o Human Frontiers Career Development, National Prize of Physics, Young Investigator do Collège de France e o IBM Scalable Data Analytics for a Smarter Planet Innovation Award. Ver artigo
Luísa Costa Gomes, nascida em Lisboa em 1954, licenciada em Filosofia, professora, directora da revista de contos FICÇÕES, gosta de dispersar a sua escrita pelas mais variadas áreas, do teatro ao conto, da crónica à tradução e legendagem, da mesma forma que gosta de alternar a escrita de um romance com outras tarefas. Sob a chancela da Dom Quixote, este é o mais recente romance da autora, quatro anos depois de Claúdio e Constantino (2014), e cerca de dois anos depois da reedição revista de A Vida de Ramon (1991, reeditado em 2016), curiosamente um texto de carácter hagiográfico, um romance biográfico sobre Ramon Llull, místico e missionário nascido em Maiorca, que viveu entre 1232 e 1316 e percorreu o mundo, do Mediterrâneo a África e à Ásia.
Florinhas de Soror Nada conta a vida de Teresa Maria, nascida no seio de uma família burguesa na segunda metade do século XX, que perante um pai distante e uma mãe incrédula vai afirmando a sua vontade em ser santa: «São Francisco jejuou quarenta dias, e ela não pode saltar o jantar?» (p. 33)
Ler esta narrativa é como ouvir uma reza, tal o ímpeto da linguagem que corre escorreita, límpida, musical, coloquial, por vezes com arcaísmos. Há ainda uma profusão de vocabulário religioso, como convém a uma hagiografia ou narrativa de vida de santo, mas quase sempre aplicado com humor. Igualmente marcante é a ironia da autora, por vezes com um sentido crítico mais cáustico, enquanto procura retratar a natureza contraditória desta criança que se quer santa (note-se o subtítulo A Vida de Uma Não-Santa), ao mesmo tempo que critica os religiosos, nomeadamente os padres, e os mitos e tabus.
«[Teresa Maria] Reconhece-se na indiferença com que as paroquianas recebem a indigna invectiva, um encolher de ombros perante as tais e quais birras do padre; elas bem sabem que não pecaram, não têm o hábito de pecar, não porque não queiram, ou não possam, mas na aldeia a oportunidade raramente se apresenta. Vivem ambas num dia-a-dia de caldos e cuidados, de quando em vez há um pensamento menos caridoso, um afundar-se no desespero, mas de passagem, ao fim da tarde, antes da solidão da noite, que dormem dum sono só.» (p. 125)
A ironia e o humor pautam a escrita da autora, se bem que neste livro haja uma intenção mais vincada que por vezes aproxima o livro da sátira. É emblemático o episódio em que Teresa arranca a orelha da estátua, como quem leva uma relíquia…
Teresa Maria mostra um excesso de autoconfiança que é aliás o que lhe permite desafiar mesmo a família, que aliás pouca importância lhe dá, quando toma a peito a sua vocação ou o ofício de ser santa. Tal como outros exemplos bem documentados da história das hagiografias, não se pense que a santidade de Teresa Maria nasce sem mácula. Pelo contrário, é depois do pecado, isto é, das brincadeiras sexuais que tem com Rafael, filho da criada de casa, que Teresa Maria mais acirradamente procura redimir-se.
A autora brinca com a linguagem da mesma forma que desmonta dogmas, enquanto narra a história de uma jovem que tão depressa tem brincadeiras exploratórias sexuais com Rafael (com nome de anjo) como depois corta o cabelo à tesourada ou põe cinzas na comida. A infância desta jovem é desfiada num rosário lento e espaçado, para depois no fim a narrativa ganhar novo fôlego e ímpeto, enquanto passa em revista a idade adulta e a terceira idade da protagonista, como se a consciência da vivência do tempo fosse mais lata quanto mais pequenos somos e menos vida acarretamos.
A autora parece ainda explanar o modo como na infância a vocação ou o sentido de missão é muito mais forte, mas conforme se dá a sua imersão na vida mundana e quotidiana, a «Idade Média», Teresa Maria é cada vez menos uma Teresa de Ávila e cada vez mais uma Maria, uma mulher sofredora, pois mesmo escapando ilesa aos martírios de santos, sobre os quais discorria com um certo contentamento sádico em criança, torna-se evidente como a vida humana é bastante difícil por si só, sem o estigma da diferença:
«Sofrer ou morrer, cumprindo o lema de Teresa em Ávila? Teresa que se aguentasse em Ávila, era forte e façanhuda, tinha a sua própria ambição de vir a figurar no calendário. Mas ela não. Não, assim não.» (p. 134)
Perto do final do romance, no último capítulo justamente intitulado «Vida», lê-se em cerca de quarenta páginas a súmula de toda a vida da protagonista, ficando o leitor a saber que se casou, teve filhos, e netos, e adoeceu, sem grande encantamento ou marcos assinaláveis que distingam a vida dessa mulher de outra qualquer. É também nesse momento que é mais fácil para o leitor simpatizar ou criar empatia com as vivências da protagonista. Mas também assistimos ao modo como em Teresa Maria, no decurso da sua vida, há um decréscimo da fé, em particular após o «Sermão à Ranhosa», ao ponto de renegar completamente a sua paixão de outrora por Deus, enquanto paradoxalmente aumenta o seu apetite pelo vinho.
A narrativa estende-se numa via sacra de 13 capítulos, se bem que chegando ao fim, é como se estivéssemos já mergulhados na leitura de um outro livro, tão forte é o cisma que se sente numa segunda parte da narrativa, com a mudança de paradigma por parte de Maria Teresa, quando aos 97 anos se prepara para morrer. Chegados ao final do livro, retoma-se o que lemos no início, num género de prólogo, onde se pressentia a desconexão de uma mente perdida, próxima da demência ou do esquecimento: «A morte já passou, falta morrer.» (p. 12) Ver artigo
Publicado em Março pela Alfaguara, este livro é uma sequela de O meu nome é Lucy Barton, em que a autora explora justamente as sequelas do impacto que Lucy Barton teve naqueles que a rodeiam, em Amgash, cidade do Midwest americano, onde viveu na sua infância. Lucy Barton, antes uma criança irreverente e um pouco estranha, oriunda de uma família marginalizada, é agora uma famosa escritora, e é particularmente através da sua escrita, sob a forma de um livro de memórias, que vai ter impacto na comunidade, sobre cujas vidas podemos ler de forma fragmentada, como se esta obra fosse uma colectânea de contos, em que, todavia, as várias histórias se vão interligando entre si, com personagens que são mencionadas aqui e exploradas ali, sempre com Lucy Barton no seu centro. Também no centro das várias histórias, a entretecê-las, está a exploração do bem e do mal que vive em maior ou menor harmonia no seio de cada indivíduo, das acções cometidas no passado que ainda perseguem a memória, seja por actos cometidos em guerras impostas, seja por escolhas feitas por amores mais ou menos irreflectidos, ou por simples caprichos de uma vontade intempestiva que dita alguma palavra menos premeditada, mas que pode causar danos irreparáveis. Felizmente tudo é possível, e se as pessoas não estiverem demasiado interessadas em si mesmas, como se afirma a certa altura, é sempre possível reparar o mal que por vezes se comete, porque é isso que significa ser humano: «Somos todos uma trapalhada, Angelina, tentamos fazer o melhor que podemos, amamos de um modo imperfeito, Angelina, mas não faz mal.» (p. 56). E ao ler-se esta passagem, não parece que o nome próprio da personagem seja acidental…
Percebemos que passou um ano, e cinco das nove histórias ou capítulos que constituem o livro, quando Lucy Barton, até aí sempre comentada e analisada mediante o olhar de terceiros, aparece finalmente em cena, para um reencontro com os seus dois irmãos, na casa onde viveram em crianças, com uma mãe distante e apagada, e na mais abjecta pobreza.
A escrita de Elizabeth Strout é extremamente subtil, na forma como interliga o gesto mais banal com a profundidade psicológica e a reflexão em torno da vida, da felicidade, do amor, do remorso.
A autora obteve sucesso mundial com Olive Kitteridge (adaptado a uma fabulosa mini-série com a Frances McDormand), obra que lhe valeu um Pulitzer. Ver artigo
A Devastação do Silêncio (Elsinore) é o mais recente romance de João Reis, publicado no dia 16 de Abril, com ilustrações de Lord Mantraste, que tão bem acentuam a crueza e a ironia deste livro.
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90) Ver artigo
Claudio Magris, autor de Danúbio, nasceu em 1939 em Trieste, que é aliás o cenário de vários destes textos que podem ser lidos como crónicas.
Budapeste, Nova Iorque, Estocolmo, Berlim ou Istambul, são o palco de pequenas situações a partir dos quais o autor passa a tecer breves considerações e reflexões, que colocam em causa assuntos tão díspares como a natureza da guerra, a economia, o multiculturalismo, ou a diferença entre “andar com” e “estar com” alguém.
Seja num comboio, numa esplanada, ou num cemitério, estes instantâneos captados pelo autor podem ainda ser lidos como momentos de clareza, rasgões na tela de um fresco que subitamente permitem ler e entender algo maior sob a superfície do quotidiano: «O instantâneo é um ecrã de televisão, graças ao qual finalmente compreendo como é que tantos bancos podem ter sido tão imprevidentes e caminhado alegremente para a ruína.» (p. 53)
Este livro, designado na contracapa como «uma pequena comédia humana» reúne um conjunto de instantâneos, imagens apreendidas numa fracção de segundos que são depois dissecadas pelo vaguear imaginativo e filosófico do autor. São 38 textos breves e pessoais, com duas a quatro páginas cada, organizados em sequência cronológica, entre os anos de 1999 e 2016. E nem de propósito termina com o instantâneo intitulado «Selfie». É óbvia a capacidade imaginativa do autor, que nos deixa a interrogar até que ponto as cenas descritas não serão plena criação. Destacam-se, na minha leitura, a cena do casal numa esplanada de café, ambos focados nos seus telemóveis, cuja intimidade é devassada pelo olhar arguto do autor, em «Cenas mudas de um casamento», ou o instantâneo «Leão-marinho» em que um homem casado desafia um grupo de adolescentes para depois lamentar a liberdade perdida da juventude.
Este pequeno livro com formato de bolso e capa dura é a companhia perfeita para abrir num café ou numa esplanada, e ler um instantâneo que nos ajude também a abrir os olhos para o real envolvente. Além de ter uma particularidade interessante, pois basta despir o livro da sobrecapa para deixar na ignorância os mais curiosos que gostam de tirar “instantâneos” dos livros que os colegas transeuntes lêem nos transportes públicos ou numa sala de espera: a capa negra sem letras gravadas acentua o mistério e evita que os leitores mais púdicos tenham de forrar os livros… Ver artigo
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