Haruki Murakami, autor japonês, supostamente eterno candidato ao Nobel, continua a habituar os seus leitores ao ritmo mais ou menos regular de um livro por ano, todos publicados pela Casa das letras.
Se há fãs que sofrem de uma verdadeira febre de Murakami, a envolvência com que o narrador nos envolve (a narrativa é contada na primeira pessoa) acusa muito mais o próprio prazer que Murakami parece ter em escrever e perder-se nas suas próprias histórias. O ritmo lento e em crescendo na forma como apresenta as personagens, as suas rotinas, a música que ouvem para se poderem ouvir pensar (ou jazz ou música clássica), o ambiente estranhamente melancólico em que o fantástico incorre nunca se sabe bem por que frincha, a hipnose de uma leitura que rapidamente se torna viciante, são alguns dos aspectos com que Murakami nos seduz. E se um livro seu parece ser sempre um eco do anterior, a verdade é que nada será igual.
Neste livro aliás parece que a certa altura estamos a ler sobre a própria narrativa de Murakami:
«Quando a passamos em revista, a nossa vida parece realmente estranha e misteriosa, recheada de coincidências inacreditáveis e desenvolvimentos imprevisíveis e fantásticos. À medida que se desenrolam, torna-se difícil identificar o que têm de bizarro, por mais que olhemos com atenção. Imersos na rotina, essas coisas parecem normalíssimas e perfeitamente naturais. Apesar de não fazerem sentido, o tempo encarrega-se de lhes conferir coerência.» (p. 75)
A Morte do Comendador está repartido em dois volumes e o segundo sai já no dia 12 de Março, pelo que ainda vai a tempo de ler este para depois devorar o seguinte, num intriga que gira em torno de um quadro, de uma ópera e de misteriosas visitas por parte de uma figura anã saída do quadro. O autor é traduzido entre nós a partir do inglês por Maria João Lourenço (agora com uma ajuda) e publicado pela Casa das letras, numa tradução que, tem de ser dito, para muitos leitores peca por não respeitar o original ao incorrer no uso (ainda que agora mais contido) de expressões da gíria portuguesa. Contudo, acto contínuo, os livros de Murakami são sempre intrigantes e difíceis de pousar. Ver artigo
Se o nome causa alguma estranheza é por causa da sua herança galega.
A autora nasceu em 1937 no Rio de Janeiro. Formou-se em Jornalismo em 1956 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Publicou o seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, em 1961.
Actualmente com 81 anos, este é o primeiro livro que a autora publica depois de ter recebido o Prémio Vergílio Ferreira 2019. Um livro intimista, feito de memórias, pensamentos soltos, reflexões, aforismos.
«Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que na solidão da caverna acendeu o primeiro fogo.» (p. 18) Ver artigo
Figura de destaque das letras britânicas, com duas dezenas de romances, além de biografias e ensaios, distinguida com o título Dame Commander of the Order of the British Empire, irmã da escritora A. S. Byatt, Margaret Drabble estreia-se em Portugal com este romance publicado pela Quetzal.
Apesar do título, retirado a uma citação em epígrafe de D. H. Lawrence («O corpo vai morrendo aos bocados e, tímida, a alma vê apagar-se a sua pegada quando sobe a maré negra.»), não se pense, contudo, que há aqui espaço para a melancolia. Quem quiser ler este livro como um canto de cisne desengana-se logo que desvenda as primeiras linhas, face ao humor negro que perpassa a narrativa: «Muitas vezes tem suspeitado que as suas últimas palavras para si e para o mundo virão a ser «Sua grandessíssima tola» (p. 11)
Fran, figura central que aglomera em torno de si directa e indirectamente um significativo rol de outras personagens, «já tem idade bastante para não morrer nova e demasiados anos para escapar aos joanetes e à artrite» (p. 11). Apesar de já poder gozar pacificamente a sua reforma, como algumas das suas amigas fazem, prefere andar constantemente atarefada, numa luta contra o tempo que lhe resta, a atravessar o país de carro a trabalhar para uma ONG preocupada com o alojamento para idosos, e a aproveitar ao máximo cada copo de vinho e cada momento de repouso nalgum quarto de hotel dos lugares por onde passa. Fran recusa-se a abrandar, ainda que veja as suas amizades se ficarem pelo caminho, e continua a intrigar os próprios filhos, ao mesmo tempo que cuida do ex-marido e observa o mundo com algum cinismo: «Podemos abster-nos de convidar pessoas para uma festa de aniversário, mas não podemos banir os membros da família dos funerais.» (p. 340)
A maré crescente das vagas de migrantes oriundos de África e do Médio Oriente, as maravilhas electrónicas e digitais deste Admirável Mundo Novo, o futuro do planeta e dos seus habitantes, os cuidados a prestar à terceira idade, o que fazer na reforma para não enlouquecer, para que serve realmente a literatura ou a arte na vida e para quê ensiná-la ou estudá-la, o criminoso baixo preço do álcool, as mudanças climatéricas, a comida de plástico e os corantes que a tornam irresistível, as relações entre marido e mulher, mãe e filhos, os homens que tomam as cunhadas viúvas como mulheres, a bênção de se morrer jovem e não ter de adoecer e envelhecer, a precariedade de relações entre pessoas do mesmo sexo que se apoiaram mutuamente toda a vida mas não são reconhecidas legalmente como cônjuge e eventual beneficiário, José Saramago e os seus romances em torno de possibilidades improváveis (E se…?)… Todos estes temas se entretecem neste romance onde se unem um sentimento de balanço de final de uma vida e uma arguta reflexão sobre o estado actual do mundo.
A autora esteve em Portugal entre os dias 21 e 23 de Janeiro para promoção do livro e concedeu uma brilhante entrevista a Isabel Lucas, no Público. Ver artigo
Para falar do prazer que me deu descobrir e ler este livro agora publicado pela Tinta da China, numa belíssima e luxuosa edição, de grande dimensão, assumindo-se em simultâneo como um documento etnológico, um hino ao resgate da cultura local, um álbum de fotografias e uma espécie de postal dos produtos marítimos algarvios, tenho de fazer um introito em que recapitulo as memórias da minha infância que estão fortemente ligadas a esta área geográfica, ao mar e, consequentemente, a esta obra.
Tendo crescido junto ao mar (pois os meus avós tinham uma casa na ilha de Faro – se bem que na verdade se trate de uma restinga – e eu era aí despejado pelos meus pais nos finais de Junho, ou às vezes no início de Julho – logo depois do meu aniversário – para ser recolhido nas primeiras semanas de Setembro quando as aulas estavam prestes a começar), vivia, portanto, como um índio da meia-praia, sem roupa (à excepção de uns calções de banho), sem calçado, sem preocupações, durante cerca de 3 meses, em que a rotina consistia em tomar o pequeno-almoço ansioso para chegar à praia, ainda deserta, estrear o areal limpo de pegadas e caminhar até à Quinta do Lago, local onde desemboca a ponte de madeira… para depois alternar entre leituras estendido na toalha e revigorantes mergulhos. Seguia-se o almoço de peixe com batatas, após o qual se esperavam as fatídicas 3 horas de digestão, durante as quais se podia dormir a sesta (nem por isso…), jogar monopólio (com as netas da vizinha da casa do lado, filhas de emigrantes de franceses) ou ler. Pelas 16h, a minha avó pegava num farnel, voltávamos para a praia, de onde só regressávamos quando o sol quase se punha e se levantava aquele vento quente de levante, enquanto me enxaguava na bica em frente à casa (na altura ainda não havia água canalizada que chegasse à casa) para depois jantarmos peixe com batata ou batata com peixe (para ir variando a dieta alimentar). Era esse o único momento do dia em que o televisor era destapado e ligado, ver a Tieta do Agreste (sim, as novelas ainda eram brasileiras, na altura) ou ir para a rua brincar com os filhos dos pescadores das casas ao lado. Retomando o assunto em mãos, guardo com enorme carinho as memórias dos pescadores a puxar as redes cheias de peixe-rei que brilhava como prata, da chegada dos homens nos seus barcos de madeira com motor, que depois empurrávamos para a areia, sendo, depois, o peixe vendido no mercado de Quarteira ou de Faro ou deixado na areia a quem o quisesse levar (ainda era a época da abundância), das mulheres a lavar o lingueirão, dos passeios pela ria Formosa quando vazava e onde eu gostava de tentar descobrir peixes retidos em latas ou pneus, que ficavam encalhados nos regos de água como detritos que a ria se recusava a levar mais longe, apenas para de vez em quando ser enxotado por algum homem mal-encarado que me acusava de andar a pisar o viveiro de amêijoas (sempre me transcendeu que se demarcassem pedaços de terreno na ria como quem delimita uma horta), dos homens a limpar os seus aparelhos de pesca onde no fio de nylon, brilhante como prata e invisível como um fio de baba, enrolado em grandes novelos se ia enfiando o isco nos anzóis. Lembro-me nitidamente como a minha avó recebia agradecida o peixe que os pescadores lhe traziam, quando sobrava, resmungando no caminho para a despensa que já tinha poucas batatas mas que tinha de retribuir, enquanto as enfiava num alguidar que me incumbia de oferecer em troca…
O livro
A ideia deste livro de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz e Vasco Célio parte de uma ideia desenvolvida durante o processo de elaboração do livro Algarve Mediterrânico. Tradição, Produtos e Cozinhas (2015) também da autoria de Maria Manuel Valagão e Vasco Célio, e com Bertílio Gomes. Bem estruturado, de leitura acessível, em linguagem escorreita, que recolhe depoimentos de «homens e mulheres que fizeram a sua vida no e com o mar» (p. 15), fixa a vida dos produtos do mar (peixe, marisco, sal) e da memória da pesca, com os barcos, os aparelhos de pesca, os usos e costumes marítimos, recolhendo as vozes da memória individual e colectiva no Algarve mediterrânico e atlântico.
Foi através do mar que Portugal se aventurou ao mundo, e ainda hoje o país tem uma vasta plataforma marítima, fonte de alimento e riqueza. Mas é sobretudo pelo Algarve dentro que o mar se estende e se faz sentir, nessa «extensa costa (…) ponto de partida, de chegada de outros povos e também de regressos», onde até ao século XX era mais fácil a «aproximação pelo mar e pelos rios Arade e Guadiana» (p. 23). Aqui «mar e terra entrelaçam-se» (p. 25) na usual prática (como a minha avó o confirma) de se trocar produtos da terra por produtos do mar ou na forma como nas papas de milho (o xarém agora tão em voga nos restaurantes quando antes era uma comida de pobres) se incluem os bivalves, como berbigão, conquilhas ou amêijoas, e o toucinho frito. Se a sotavento a costa estende-se num cordão arenoso, com várias aberturas, que criam a ilusão de ilhas, a barlavento existem práticas arcaicas e intimamente ligadas como a pesca a linha nas falésias da costa rochosa, e nesses trilhos descobriam-se enxames de abelhas bravas alojados na rocha calcária cujos favos de mel eram recolhidos e o mel generoso escorria pelas rochas até ao mar. A maritimidade já vem dos tempos pré-históricos, como o comprovam os concheiros, depósitos de cascas de mariscos diversos e as sepulturas dos primeiros habitantes da costa vicentina decoradas com camas de percebes. E essa maritimidade revela-se das formas mais inesperadas, quer no conhecimento íntimo que o povo ainda hoje tem das marés, como num surpreendente farol integrado na torre sineira de uma igreja. O Algarve marítimo é aqui desvendado, desde os tanques de salga das grandes estações arqueológicas, aos portos e barras, cujas areias móveis abrem e fecham, aos faróis dos cabos, aos estaleiros navais, às indústrias transformadoras de peixe, passando pelas marinhas, agora conhecidas por salinas, até à ria Formosa (Parque Natural de singular beleza) e a ria de Alvor, cujos ecossistemas complexos são «profusamente povoados por espécies animais e vegetais» (p. 47). Este livro retrata as comunidades marítimas nas suas vozes e vidas, transcritas em diversos relatos, ao mesmo tempo que transmite a informação mais diversa, e bastante preciosa, como descobrir que o peixe de viveiro pode ser mais saboroso do que o selvagem.
O livro, dividido em 5 partes, explora a relação entre o mar, a maritimidade e a paisagem em «Paisagem, recursos e portos»; os recursos do mar e das rias através dos habitats e climas em «Pesca e Pescadores»; as memórias da pesca do bacalhau e do atum em «Pescas lembradas»; o percurso do peixe desde o mar até ao consumidor em «O peixe já em terra», outrora com as antigas práticas de venda como agora nas lotas e mercados, a conservação tradicional do peixe com a salga e a secagem, e um capítulo sobre as indústrias conserveiras, cujas fábricas ainda povoam a paisagem algarvia e as grandes chaminés dessas antigas fábricas têm sido integradas em novos edifícios; e em «Última vida do peixe» transcrevem-se algumas receitas transmitidas por boca. Por fim, a concluir, dá-se voz à modernidade através do testemunho de três personalidades – Pedro Bastos, Bertílio Gomes e Dieter Koschina – que revelam como o peixe afinal puxa carroça e é uma matéria-prima muito fácil de recriar e de trazer à mesa dos portugueses e dos estrangeiros, pois «o bom peixe, sozinho, já é o cozinheiro» (p. 19), ao mesmo tempo que se questionam sobre os actuais riscos ambientais e apontam caminhos para o futuro do peixe e dos mares. Existe ainda um Anexo que reúne informação sobre muitas das espécies de peixe e marisco disponíveis nos mercados, um glossário marítimo e um útil índice das várias receitas apresentadas no livro.
Este livro não só promove a preservação de todo um legado cultural, com as vozes da maritimidade e do seu povo, para que perdure nas gerações vindouras, como pretende estruturar a identidade algarvia num mundo em mudança no sentido da globalização e onde a biodiversidade marítima, de que dependemos, corre sérios riscos como se tem vindo a ver com as mudanças climatéricas ou as ilhas de plástico flutuante que poluem os oceanos.
Os autores
Maria Manuel Valagão é doutorada em Ciências do Ambiente, investigadora em Sociologia da Alimentação e Ambiente e é actualmente investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas da Universidade Nova de Lisboa. Nídia Braz é doutorada em Engenharia Agroinsdustrial, professora na Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve e investigadora em Ciência de Alimentos. Vasco Célio é um fotógrafo baseado no Algarve. Ver artigo
Um dos grandes lançamentos de início de ano da Dom Quixote, este livro foi nomeado para o Prémio Internacional Man Booker 2017, Livro do Ano da revista Economist, vencedor do Prémio da Cultura Flamenga para a Literatura, do Prémio Literário AKO, do Prémio do Júri dos Leitores do Golden Book Owl, do Inktaap 2016 (Jovens Leitores), e foi finalista do Prémio Strega Europeo, do Prémio Literário Libris, do Prémio Fintro e do Prémio de História (Davisfond).
Stefan Hertmans nasceu em Ghent, Bélgica, em 1951, e é um dos principais autores flamengos contemporâneos, com romances, contos, ensaios, teatro e poesia, traduzido em várias línguas e vencedor dos prémios mais importantes da literatura flamenga.
Na linha de Sebald, à semelhança de diversos autores portugueses e internacionais, o autor parte da realidade para deambular pela ficção, pela História, pela biografia, de modo a recuperar a memória de Urbain Martien, um soldado flamengo que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, nascido em 1891 e morreu em 1981, com 90 anos, cheios de vida e de dor (…) Ver artigo
Num tempo em que o racismo, talvez sempre latente, parece eclodir e difundir-se, nem sempre sob a forma de violência física, falo deste livro de um autor sobejamente conhecido mas cuja obra só mais recentemente, e em boa hora, começa a ser publicada em Portugal pela Alfaguara.
Como pode ler-se na contracapa do livro: «Se esta rua falasse, esta seria história que contaria: Tish, 19 anos, apaixona-se por Fonny, que conhece desde criança.»
Como um Romeu e Julieta dos tempos que então se viviam (o romance foi originalmente publicado em 1974), o amor de Clementine (Tish) e Fonny será posto à prova assim que desperta e se torna visível para os que os rodeiam. É a profunda ligação que partilham, cuja manifestação viva desse amor é a criança de 3 meses gerada no ventre de Tish e que vai crescendo ao longo dos próximos 6 meses em que decorre a acção (com algumas analepses), que lhes permite fazer frente à injustiça do sistema judicial norte-americano e do «maldito homem branco». Como nos narra Tish: «A mesmíssima paixão que salvou Fonny acabou por lhe arranjar sarilhos e atirá-lo para a cadeia. Porque, sabem, ele tinha encontrado o cerne, o seu próprio cerne, dentro dele: e notava-se. Ele não era o preto de ninguém. E isso é crime nesta porcaria de país livre. Devemos ser o preto de alguém. E, se não formos o preto de alguém, somos um mau preto» (p. 46)
James Baldwin nasceu em Nova Iorque em 1924. Cresceu e estudou no bairro de Harlem. Em 1948 partiu para França fugindo ao racismo e homofobia dos Estados Unidos. Em 1953 publicou o seu primeiro romance, Go tell it on the mountain (que será publicado este ano pela Alfaguara) e cedo se destacou como romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo. Foi uma das vozes mais influentes do movimento de direitos civis e o primeiro artista afro-americano a figurar na capa da revista Time. Em 2017, trinta anos após a sua morte, foi profusamente relembrado com I am not your negro, um documentário baseado na sua obra, narrado pela sua própria voz em voz-off.
Se esta rua falasse (If Beale Street Could Talk) é o seu quinto romance, e foi adaptado ao cinema por Barry Jenkins, o realizador de Moonlight, que recebeu o Óscar de Melhor Filme em 2016. A estreia do filme está prevista em Portugal para 21 de Fevereiro. Ver artigo
Cerca de um ano depois da publicação de Semente de Bruxa, em que Margaret Atwood recria a peça A Tempestade, sai agora a recriação de O Rei Lear. A série Bertrand Shakespeare conta com um novo título num projecto lançado pela editora inglesa Hogarth, que chega a mais de 30 países e visa recriar em romance as peças do dramaturgo inglês.
A recriação daquela que é uma das mais aclamadas tragédias de Shakespeare é completamente livre e brilhantemente adaptada aos tempos modernos, em que o rei Lear é agora um multimilionário que dirige um grupo global de comunicações. O fôlego shakespeariano sente-se logo nas primeiras linhas do romance, em que as falas das duas personagens, Dunbar e Peter, um comediante alcoólico, se interpelam e atropelam, como numa peça de teatro, onde não falta o absurdo condizente a alguém que terá perdido o juízo, pois Henry Dunbar foi enclausurado pelas filhas numa casa de repouso. Florence, a Cordélia da peça original, é a filha mais nova e meia-irmã de Abby e Megan, que nunca pretendeu usurpar o trono ou o dinheiro do pai, mas que foi afastada por ele. Tal como Lear vagueia quase enlouquecido numa tempestade, também Dunbar enfrenta um nevão quando consegue juntar os resquícios de força que lhe restam e fugir da sua prisão para tentar recuperar o poder que as filhas planeiam usurpar-lhe na próxima reunião de administração, onde pretendem provar que o pai envelheceu e por conseguinte ensandeceu de vez.
Edward St Aubyn transmite de forma viva e actual os dilemas intrínsecos às tragédias de Shakespeare, dissecando o comportamento das personagens e tornando-as humanas, e não simples joguetes nas mãos dos deuses e das forças do destino: «Ergueu a jarra por cima da cabeça, pronto a lançá-la pela janela daquela prisão, mas foi então que ficou petrificado, incapaz de a partir ou pousar, com toda a acção anulada pela perfeita guerra civil entre omnipotência e impotência que lhe bloqueava o corpo e a mente.» (p. 20)
Não falta também um fino humor, especialmente quando Dunbar se encontra ainda na casa de repouso, como quando a enfermeira o conduz para a mesa comunal: «Enquanto ela o empurrava para aquele precipício de encontros sociais aleatórios, do qual ele tinha até então conseguido manter-se bem distante, Dunbar vislumbrou Peter (…), debaixo de um letreiro verde com as palavras Saída de Emergência ao lado de uma figura a sprintar que devia estar a tentar fugir ao inferno da agência de encontros românticos da enfermeira Roberts.» (p. 34)
Edward St Aubyn chega a recorrer, num jogo literário, a passagens retiradas da obra de Shakespeare – «sono que desenreda o novelo emaranhado das preocupações» (p. 92) – e tal como nas suas tragédias presenteia-nos com um desenlace abrupto que se abate como o destino num final inconcluso e infeliz.
Edward St Aubyn é considerado um dos melhores romancistas britânicos da sua geração e o seu quinteto «A Família Melrose», escrito entre 1996 e 2012, foi adaptado no ano passado a uma mini-série televisiva, de cinco episódios, intitulada Patrick Melrose, com Benedict Cumberbatch no principal papel. Ver artigo
Do escritor israelita David Grossman, autor de Um Cavalo Entra num Bar, vencedor do Prémio Internacional Man Booker em 2017, publicado pela Dom Quixote e já aqui apresentado, chega agora este livro de não-ficção em que se revisita e reinterpreta o mito bíblico de Sansão. Explica o autor no prólogo que «Há poucas histórias na Bíblia com tanto drama e ação, tanto fogo e artifício narrativo e emoção pura, como os que encontramos no conto de Sansão» (pág. 8).
David Grossman analisa a par e passo, isto é, frase a frase, o mito bíblico desse jovem gigante, musculado e de longos cabelos entrançados, numa análise que transcende o literário, uma vez que cruza História com emoção. O autor tão depressa nos contextualiza historica e culturalmente no fim do século XII, princípio do XI a. c., para nos conduzir através deste mito, como logo a seguir argumenta logicamente que a colmeia que surge no esqueleto do leão morto por Sansão teria de ter sido um ano depois, uma vez que as abelhas cujo olfacto é tão sensível nunca se aproximariam de uma carcaça… Mas nunca perde de vista o lado humano de Sansão, como se entrássemos afinal no campo do romance, despindo-o da figura insonsa de herói e revelando-o como um homem solitário e torturado, apresentando um jovem que afinal não era apenas musculado e incrivelmente forte, mas tinha alma de poeta e vivia um enigma inconciliável, entre cumprir o seu papel como salvador do povo israelita ou procurar viver com livre-arbítrio, podendo inclusivamente escolher apaixonar-se como qualquer homem vulgar. E neste caso, como qualquer outro homem, pela mulher errada: Dalila.
O autor ainda que trate um assunto sério, de forma profunda e bem fundamentada, mantém aqui uma ironia e um humor que lhe é característico, e que definiu aliás a sua obra já referida, Um Cavalo Entra num Bar, título tomado do início de uma série de piadas e que versa sobre um performer de stand-up comedy. Note-se a seguinte passagem: «Mas qualquer pessoa familiarizada com a semiótica da narração de histórias bíblicas sabe que a simples menção de uma mulher estéril quase sempre pressagia um nascimento de grande importância.» (p. 10)
Aconselha-se a começar a leitura do livro pelo fim, pois a editora Elsinore teve o bom-senso de incluir um Anexo com as passagens bíblicas referentes a Sansão, contidas nos capítulos 13 a 16 do Livro dos Juízes.
O Mel do Leão – O Mito de Sansão ficou disponível ao público nas livrarias portuguesas esta segunda-feira, dia 21, numa tradução e edição da Elsinore e augura uma série de lançamentos promissores. Ver artigo
O mais recente livro de Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, publicado pela Relógio d’Água, em Setembro de 2018, é um poema em forma de narrativa, conforme à prosa poética a que a autora nos tem habituado, e com a respiração de um poema épico. O leitor sente-se perdido tacteando um horizonte de referência, quer no espaço quer no tempo, enquanto tenta situar a narrativa no género da ficção científica, ou da fábula, ou de um mito do princípio dos tempos, mas a história deste povo que atravessa o deserto em busca de uma Europa foge a qualquer classificação. Este grupo pode ser confundido com os migrantes que chegam em vagas provindos de África ou do Médio Oriente, tanto no tempo presente como outrora. Nessa travessia em busca de uma esperança as mulheres e os homens vão-se transformando. E num livro que nos fala de guerra mas também de amor e de sabedoria, o leitor é embalado pela coreografia desenhada nos movimentos das personagens e seduzido pelo ritmo da escrita de um poema que se vai desenrolando como uma serpente a rastrear as areias do tempo.
Hélia Correia é uma autora que aparece muito pouco mas foi possível conversar com ela em Sintra, no início deste ano. Ver artigo
Amos Oz, aclamado escritor israelita, faleceu no dia 28 de Dezembro de 2018, aos 79 anos de idade, vítima de cancro.
Oz nasceu em Jerusalém em 1939 e foi criado num kibbutz, uma comunidade em Israel dedicada à agricultura, baseada no trabalho colectivo e na assistência mútua. No livro Entre Amigos, apresentado no Postal do Algarve em Outubro de 2017, o autor revisitava justamente esse espaço onde começou a escrever, fazendo de um kibutz, nos anos 50, a verdadeira personagem principal desse livro.
Caros Fanáticos não é um livro de ficção, como aliás se percebe logo pela indicação na capa do subtítulo: «Fé, fanatismo e convivência no século XXI». Esta obra é uma compilação de três ensaios. Dedicada aos netos do autor, representa, muito oportunamente, uma reflexão dos actuais tempos conturbados, em que vagas de migrantes chegam à Europa, sem que se saiba bem como acolhê-los. O autor aborda temas sensíveis como o perigo do fanatismo fundamentalista ou a procura de uma solução para o conflito entre Israel e Palestina, propondo a existência de dois estados. Temas estes tão antigos como a História mas ainda profundamente actuais, sendo que o primeiro dos três ensaios, que dá nome ao livro, resulta aliás de uma série de conferências proferidas numa universidade na Alemanha, em 2002, em que o autor reflecte com ironia, mordacidade e inclusive um certo humor negro os riscos da intolerância e da cegueira religiosa: «A guerra em questão é uma guerra entre fanáticos convencidos de que os seus objectivos santificam todos os meios e todos os outros, para os quais a vida é um objectivo e não um meio.» (p. 16)
Oz, o escritor israelita mais conhecido e lido no mundo, cumpriu serviço militar na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e na Guerra do Yom Kippur, em 1973, antes de realizar os seus estudos universitários. Foi jornalista, professor universitário de Literatura, activista político e militante a favor da paz entre os estados da Palestina e Israel.
Em Portugal, a sua obra tem sido publicada pela D. Quixote, com títulos como A Caixa Negra, Não Chames à Noite Noite, Uma História de Amor e Trevas e Judas. O livro Uma História de Amor e Trevas é de inspiração autobiográfica e foi adaptado ao cinema, com interpretação de Natalie Portman. Caros Fanáticos foi o mais recente livro do autor a ser publicado pela editora D. Quixote. Ver artigo
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