Há 90 anos, na manhã deste exacto dia 8 de dezembro, no ano de 1930, Florbela Espanca suicidou-se. Era o dia do seu aniversário e foi a data do seu primeiro casamento. Faria 36 anos.
Ana Cristina Silva, no romance biográfico Bela, publicado pela Bertrand Editora, reconstitui a vida da poeta (Florbela não gostaria que lhe chamemos poetisa) que não viveu para saber que o seu nome entraria no cânone literário português e que ainda hoje se lêem os seus poemas. A primeira edição deste romance tem quinze anos e foi profundamente reescrita. Bela não é, contudo, a elegia que se esperaria.
A narrativa é construída numa dicotomia irreconciliável, entre os interlúdios que dão conta das memórias de Bela narradas além-túmulo, e os vários capítulos, sem nome, mas sempre com indicação de local e data, em que um narrador omnisciente dá conta das emoções e sentimentos das várias personagens cujas vidas foram tocadas por Bela, a quem raramente perspectivam a uma luz favorecedora. Cabe ao leitor discernir e escolher o retrato que deseja compor de Florbela, força da natureza capaz de provocar grandes ódios e intensas paixões. Na primeira parte, conforme se narra os momentos precedentes do seu suicídio, o tom é mais soturno, quase melodramático, como convém ao esquisso de uma vida incompreendida e apaixonada ao ponto de perseguir paixões, mesmo quando sabe que são quimeras – Bela casou-se três vezes, foi sempre infeliz com os seus maridos, e dir-nos-á que apenas conheceu verdadeiramente o amor na figura de Apeles, irmão que, quase certamente, também se suicidou. É a partir do terceiro capítulo que Ana Cristina Silva se expande na sua pujança narrativa, onde a partir de fragmentos e de meias-verdades constrói uma história arrebatadora: a de um triângulo amoroso entre João Espanca que além de trair a mulher, Mariana, com a sua amante Antónia, tem a desfaçatez de lhe pedir que crie a sua filha. Note-se que a história dos amores e desamores de Espanca-Pai dura da página 25 à 88 (quando ele literalmente sai e bate com a porta), correspondendo a quase metade do romance.
A história da infância sofrida de Bela, dos maus tratos de uma mãe (que nunca compreende se é madrinha ou madrasta) à inconstância amorosa do pai que nunca a legitimou, pode aliás ser a chave da compreensão para o comportamento de Bela. Muito pouco convencional, ousada ao ponto de sair à rua vestida de homem e não só se divorcia duas vezes, como casa ainda uma terceira vez. Faz dos seus excessos (e os da sua poesia) uma revolta contra a rejeição (p. 74), sem se deixar regrar pelos moralismos próprios de um Portugal na viragem do século XX, num tempo em que a poesia escrita por mulheres era uma ocupação ao nível dos bordados. Um dos seus maridos, médico, recomenda-lhe, aliás, «descansar a cabeça das neuroses» e «não escrever tanto, de modo a não ser vítima de perturbações nervosas» (p. 156).
«Onde é que alguma vez se vira uma mulher ir estudar para a universidade? Ainda por cima, Letras! Era suposto, acrescentou, que a poesia fosse um passatempo tão assisado como bordar ou tocar piano e não dar origem a disparates que comportavam despesas. Era obrigação de um marido enfiar algum juízo na cabecinha de vento de sua mulher em vez de alimentar os seus caprichos. (p. 115)
Ana Cristina Silva é professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de 15 romances e de um livro de contos, venceu o Prémio Fernando Namora em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu o prémio Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil. Ver artigo
Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, publicado pela Elsinore, concretiza verdadeiramente o significado de romance polifónico. As 12 personagens deste romance a várias vozes apenas têm em comum serem mulheres (excepto Mogan que se definirá como não-binária), quase todas negras, a viver no Reino Unido, geralmente lésbicas. Poder-se-ia até procurar eleger como protagonista Amma, a dramaturga cujo trabalho artístico frequentemente explora a sua identidade lésbica negra, até porque é em torno da noite de estreia da sua peça que muitas destas histórias se interligam, quando algumas destas 12 mulheres se reencontram.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020. Ver artigo
Madeline Miller regressa aos mitos clássicos em Circe, publicado pela Minotauro. Não fosse o anterior sucesso de O Canto de Aquiles (publicado pela Bertrand Editora e vencedor do Orange Prize) e ter sabido deste livro numa entrevista a Juliet Marillier (publicada no Cultura.Sul), provavelmente também me teria passado despercebido.
Circe é filha de uma ninfa e do Deus-Sol Hélio, o mais poderoso dos titãs, capaz de destronar Zeus. Não possui a beleza da mãe nem o brilho do pai, e sente-se deslocada mesmo entre os seus irmãos. Considerada feia, com os seus olhos amarelos e a sua voz incómoda, «guinchenta como a de um mocho» (p. 15), porque é afinal a voz dos mortais, procura calor junto do pai e cedo sente atracção pela fragilidade dos humanos.
«Pensei que era assim que os mortais encontravam a fama. Através da prática e da diligência, tratando das suas competências como de jardins até florescerem sob o sol. Mas os deuses nasceram para o icor e o néctar, pois as excelências irrompiam sem esforço das pontas dos seus dedos. Assim, encontravam a fama provando que conseguiam causar danos: destruindo cidades, começando guerras, criando pragas e monstros. Todo aquele fumo e sacrifícios delicadamente oferecidos nos nossos altares. Só deixam cinzas atrás de si.» (p. 152)
Conforme descobre acidentalmente possuir capacidades fantásticas, capaz de transformar um comum mortal num Deus, ou a ninfa Cila num monstro marinho temível, Circe torna-se receada pelos próprios deuses, e é confinada na ilha de Ea, onde irá apurando os seus dotes.
«Deixem que diga o que a feitiçaria não é: não é um poder divino que se exerce com um pensamento e um piscar de olhos. A feitiçaria tem de ser feita e trabalhada, planeada e procurada, desenterrada, secada, partida e moída, cozinhada, falada e cantada. E mesmo depois de tudo isso pode falhar, ao contrário dos deuses. Se as minhas ervas não forem suficientemente frescas, se a minha atenção se dispersar, se a minha vontade for fraca, as poções ficam estragadas e rançosas nas minhas mãos.» (p. 95 – 96)
Madeline Miller narra prodigiosamente esta efabulação cheia da maravilha dos mitos ao mesmo tempo que humaniza as personagens, capaz de prender o leitor da primeira à última página, especialmente quando por elas vão desfilando personagens da mitologia sobejamente conhecidas, mas aqui recriadas e relacionadas de modo inédito. Sabemos que Circe transformava marinheiros de Ulisses em porcos, que se envolveu amorosamente com Ulisses, mas é-nos ainda revelado como Circe conhece o inventivo Dédalo e o seu filho Ícaro, como ajudou Medeia e Jasão do velo de ouro, como assiste ao parto do abominável Minotauro, no mesmo dia em que conhece Ariadne ainda criança, e como depois da morte de Ulisses acolhe Telémaco e Penélope.
«Raiva e dor, desejo perverso, luxúria, autocomiseração: estas são emoções que os deuses conhecem bem. Mas culpa, vergonha, remorso e ambivalência são territórios estranhos à nossa espécie, que têm de ser cartografados pedra a pedra.» (p. 176 – 177)
Circe nasce neste livro despida do mal e da perfídia, imbuída de uma natureza profundamente feminina (e feminista), revelando-se sobretudo como uma mulher perdida no limbo que medeia a humanidade e a imortalidade, terrivelmente consciente de todos os seus actos, enquanto sente os séculos se escoarem como dias, e os seus dotes mágicos de metamorfose são-nos revelados, afinal, como um acto de autodefesa – não é, afinal, por mero acaso, que esta feiticeira transformará os homens que chegam à sua ilha, cobiçosos e violentos, justamente em porcos.
«Chamava-se noivas às ninfas, mas não era verdadeiramente assim que o mundo nos via. Éramos um banquete infinito posto na mesa, belo e sempre a renovar-se. E tão más a fugir.» (p. 220)
Madeline Miller cresceu em Nova Iorque e em Filadélfia. Frequentou a Brown University, onde obteve o grau de Master of Arts em Estudos Clássicos. Ver artigo
«Aos domingos à tarde, quando o céu está azul e a brisa agita suavemente as árvores, a menina senta-se no chão do seu quarto e dobra folhas de papel. Faz aviões. (…)
O destino que a menina lhes atribui é o de ficarem caídos no passeio até que alguém passe e repare neles.» (p. 7)
A menina alimenta uma ideia. Imagina que o avião possa ser sempre atirado, pelas várias pessoas que o encontrem, para que nesses voos sucessivos possa percorrer o mundo…
Aviões de Papel, de Paulo Kellerman, publicado pela Editora Minimalista, é um livro diferente. Nele vibra um objecto volátil, delicado, «coisa de outro mundo, de outro tempo» (p. 76), que voa entre os vários breves capítulos da narrativa, interligando histórias díspares e personagens desencontradas que, nesse precioso instante, conseguem suspender-se no tempo, ao encontrar num avião de papel caído aos seus pés uma ligação ao mundo, um passaporte para a felicidade.
«Pessoas sempre apressadas, como se estivessem a fugir ao tempo; ou a persegui-lo, para o tentar capturar e guardar dentro dos seus relógios.» (p. 7)
Da professora ao pai que é homem do lixo, do médico suicida ao avô que ensina um menino que não é o seu neto como lançar um aviãozinho de papel, esta galeria de personagens que abundam em interrogações e perplexidades até que, ao deparar-se com um avião de papel caído na rua, se libertam por momentos, descobrindo-se capazes de manter o espanto perante a vida e de se reencontrarem num gesto simples da sua infância: o de libertar aviões de papel como quem bate asas. E ao observar o voo que o avião descreve, permitem-se libertar, ainda que seja apenas nesses breves instantes que o leitor testemunha, do seu questionamento constante, das suas mágoas e sonhos frustrados, e gozar o efémero momento em que, ao segurar um avião de papel que uma menina um dia criou e onde rabiscou uma frase, reencontram a sua infância perdida, na pureza e simplicidade de quem não pretende saber nada. Ver artigo
Depois do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos, chegou em fevereiro às livrarias A melhor máquina viva, o novo romance de José Gardeazabal, com o selo da Companhia das Letras, mas no contexto pandémico que então se vivia tem passado bastante despercebido. Este seu segundo romance é também o primeiro volume da Trilogia dos Pares. A título de curiosidade, José Gardeazabal é o pseudónimo de José Tavares, e o autor é irmão de Gonçalo M. Tavares.
Um livro difícil, romance muito pouco convencional, onde conflui (fazendo eco das palavras da crítica de José Riço Direitinho ao seu anterior livro) um discurso político, alegórico e aforístico, conforme passa em revista a história e memória do século XX, do Holocausto ao 11 de setembro, ao mesmo tempo que parodia o discurso bíblico, como quando compara a queda das Twin Towers à queda da Torre de Babel:
«Aconteceu uma segunda queda. Porquê uma segunda queda, não bastou a primeira? Aquele chão seco de paraíso, aquele enjoo de dilúvio. Protegidas por uma poeira cinzenta e fina, as pessoas mascararam-se de desconhecidas, de palhaço, na certeza de este ser um susto novo. Aprenderam rapidamente a respirar lentamente, invocando ao telefone uma salvação impessoal. Ninguém os ouviu. Estavam entre a realidade e a verdade, e a realidade ganhava. A realidade ferro, cimento e vidro transparente, a realidade simultânea de dois desastres, tão improváveis como uma má aposta. Deuses distraídos tinham jogado aos dados e o nosso deus tinha perdido.» (p. 129-130)
Na prosa perpassa ainda a noção da metaliteratura ou da metaficcionalidade, pois a escrita pensa-se a si mesma conforme se plasma no papel, num jogo com a linguagem, onde entram aforismos e, muito especialmente, títulos de livros que nos servem de referências culturais no labirinto em que a história se pode tornar.
Anders Kopf é um jovem aspirante a escritor que decide mergulhar na pobreza por um ano e afastar-se de um passado doloroso. Toma essa decisão no dia seguinte a uma tragédia familiar mas adia por uns tempos a sua execução, enquanto passa por um orfanato. Nesse seu intento de se tornar pobre o protagonista parece evocar os grandes autores russos (lembremo-nos tão somente de Crime e Castigo), numa fuga ao capitalismo e excessos da literatura norte-americana. Nesse exercício temporário da fome e do despojamento Kopf aspira a melhorar a literatura – a «ciência dos pobres» (p. 36) – pelo que faz um batismo de pobreza – «pobreza é reflexão» (p. 197): «abandonará pão, paz, saúde, habitação. Vestuário.» (p. 35)
Em torno de si, reúne 3 pobres a quem se atribui nomes esclarecedores: Prejworski, o Subjetivo; o antiamericano Gilles; cidadão Elias Kane, um «negro enorme, de literatura», de cinema. Com esses novos companheiros acabará por cometer um roubo num matadouro –que aqui representa um símbolo do tempo histórico do século XX e, muito particularmente, do capitalismo –, mas aquilo que rouba será essencialmente quantidades astronómicas de papel branco.
Mas o projecto de Kopf, o de ser pobre para poder alimentar-se da escrita, pode vir a ser gorado quando Eeva Wiseman, a bela capitalista herdeira do matadouro, decide, na ressaca de um acidente, que quer ser amiga de um pobre.
O autor nasceu em Lisboa, onde vive actualmente. Viveu, trabalhou e estudou em Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. O seu livro de poesia, história do século vinte, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, foi editado em 2016, ano em que publicou também Dicionário de ideias feitas em literatura, colectânea de prosa curta escrita em 176 entradas, uma espécie de dicionário. Em 2017, editou três peças de teatro, reunidas na obra Trilogia do olhar. Ver artigo
A Alma Perdida, publicado pela Fábula, é um álbum ilustrado com texto de Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel de Literatura em 2019, e ilustrações da premiada artista polaca Joanna Concejo, distinguido com uma Menção Especial do Bologna Ragazzi Award e Livro do Ano pelo IBBY (2013).
«Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm, atrasadas, as suas almas perdidas…»
Pelo tema versado e pelas ilustrações sombrias, não se confunda este belíssimo livro de capa dura, com 48 páginas, com uma obra infantil ou um breve conto. O texto é mais breve do que a história contada pelas imagens, que ganham cor perto do final, conforme o próprio Jan recupera o que perdeu algures pelo caminho ao largo da vida.
«Sem alma, vivia até muito bem — dormia, comia, trabalhava, conduzia o automóvel e até jogava ténis. Às vezes, porém, tinha a impressão de que, em seu redor, tudo era plano; parecia-lhe que se deslocava sobre uma folha lisa de papel de um caderno de matemática, folha essa toda ela coberta de quadrados iguaizinhos.»
É também sobre essas folhas quadriculadas de um caderno de matemática que Joanna Concejo assenta as suas ilustrações, até que a cor irrompe pelas páginas do álbum e se apodera de todo o espaço livre, da mesma forma que do tempo parado nos relógios enterrados por Jan vieram a nascer «belas flores, semelhantes a campânulas de várias cores».
A filosofia (espiritualidade?) de Olga Tokarczuk e a melancolia das imagens interligam-se harmoniosamente, com pistas subtis (será a alma de Jan aquela criança que surge aqui e ali?) que irrompem de recantos esquivos de página para página e reclamam a atenção plena do leitor, a sua própria paragem no tempo para se conseguir maravilhar com uma história. Ver artigo
A Biblioteca Municipal de Loulé, Sophia de Mello Breyner Andresen, volta a receber a rubrica “Livros Abertos”, com a apresentação do romance Eliete, de Dulce Maria Cardoso. A sessão realiza-se no próximo dia 25 de novembro, quarta-feira, pelas 19:30 horas, conduzida por Sandra Boto, docente e investigadora auxiliar do CIAC/Universidade do Algarve. Ver artigo
Walter Benjamin: Melancolia e Revolução, ensaio publicado pela Editora Exclamação, recentemente distinguido com o Prémio PEN Ensaio 2020 (ex-aequo com João Barrento), resulta da tese de doutoramento de Maria João Cantinho, onde a autora torna claro, numa linguagem límpida e em subtil crescendo – não isenta da «perplexidade» que por vezes o pensamento de Walter Benjamin lhe provoca –, o percurso das «ideias iniciais que constituem o fermento messiânico do pensamento benjaminiano» que conhecem um inopinado desenvolvimento através do contacto com as leituras do materialismo dialéctico e que conduzem ao seu «pessimismo», que «consiste num olhar advertido contra todos os “falsos optimismos” da história (…) que se inspiram na ilusão do progresso».
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos. Ver artigo
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, foi publicado em maio de 2017 pela Quetzal
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros. Ver artigo
Os Vivos e os Outros é o novo romance do autor angolano José Eduardo Agualusa que pode, e deve, ser lido no seguimento do anterior A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, publicado em maio de 2017 também pela Quetzal. Três anos depois o autor regressa uma segunda vez a uma personagem sua, o Daniel Benchimol de Teoria Geral do Esquecimento, jornalista que investiga desaparecimentos, e que foi também o protagonista do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, onde o autor explora o papel dos sonhos na vida das pessoas. Entre estes dois romances, Os Vivos e os Outros e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, há pontos em comum ainda que não imediatamente reconhecíveis.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance. Ver artigo
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