As Mulheres da Minha Alma, de Isabel Allende, publicado simultaneamente pela Porto Editora e pelo Círculo de Leitores em Novembro de 2020, com o subtítulo Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas, é o mais recente livro de Isabel Allende, pouco menos de um ano depois do seu retorno à ficção histórica em Longa pétala de mar, poderoso romance ao nível dos melhores livros da autora. Isabel Allende tem agora quase 80 anos, mais de 20 livros publicados, cerca de 70 milhões de exemplares vendidos um pouco por todo o mundo e é a autora de língua espanhola mais lida.
Este não é o primeiro livro de não-ficção da autora, mas é certamente dos mais complexos, construído num palimpsesto. Apesar de começar com um tom memorialista, num registo autobiográfico da infância à idade madura, converte-se depois num manifesto feminista, onde não faltam números, estatísticas, citações, situações experienciadas em primeira mão e dados preocupantes que revivificam a jornalista que Isabel Allende era antes de se dedicar à escrita por inteiro. Allende criou aliás uma Fundação destinada ao empoderamento das mulheres e meninas de alto risco com as receitas provenientes do livro Paula, uma memória e uma carta de celebração da vida da sua filha – não lhe podemos chamar despedida pois para Allende a sua filha Paula, tal como outros espíritos amigos, nunca partiu completamente.
Este livro, escrito para as suas leitoras, é também uma declaração de amor para essas mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida – Paula, a agente literária Carmen Balcells, a mãe Panchita – e que nós já conhecemos tão bem como as suas personagens de papel, como a omnipresente Eliza Sommers (heroína de Filha da Fortuna), além de outras mulheres cuja vida tem sido dedicada a tornar o mundo um lar para todas as mulheres, e ainda escritoras companheiras de percurso que Allende vai evocando e citando, como Margaret Atwood ou Virginia Woolf. Mas além do feminismo este é também um livro sobre envelhecer com graciosidade e sobre o amor, mesmo em tempos de pandemia. Ver artigo
O Último Verão de Klingsor, de Hermann Hesse, publicado pela Dom Quixote em Junho de 2020 com tradução de Patrícia Lara (a partir da edição mais antiga da Guimarães), foi escrito pouco depois do fim da I Grande Guerra e narra o último verão da vida de um famoso pintor, Klingsor, que vive uma explosão final de criatividade.
A julgar pela capa com base num quadro de Van Gogh, percebemos que Klingsor é um pintor expressionista, e ao longo desta narrativa, nem sempre linear, desfila a reflexão de uma vida vivida no extremo. Se bem que é, ainda assim, superado pelo seu velho amigo (e alter ego?) Louis, o Cruel, «o viajante, o imprevisível, que vivia no comboio e tinha uma mochila como atelier».
«Só pintamos por faute de mieux, meu caro. Se tivesses sempre no colo a rapariga que te agrada de momento e a sopa que te apetece no prato, não te incomodarias com esta brincadeira infantil e disparatada. A natureza tem milhares de cores, e nós metemos na cabeça reduzir a escala a vinte. A pintura é isto. Nunca se está contente, e ainda por cima temos de ajudar a sustentar os críticos.» (p. 21)
O livro tem laivos autobiográficos, pois Hesse começou a pintar por volta de 1917 e este livro é escrito dois anos depois, no Verão de 1919, quando o autor se instala numa aldeia nas montanhas para iniciar uma nova fase, sem a família, provavelmente, tal como o protagonista do livro, a viver um «amor serôdio de um quarentão por uma rapariga de vinte anos» (p. 38). Além disso, um pormenor curioso e de somenos relevância, também Li Tai Pe, outra personagem que parece ser, afinal, mais um alter ego do protagonista, nasceu a 2 de Julho tal como Hermann Hesse (e que é também o meu dia de aniversário). Conforme se pode ler na badana do livro, uma das personagens, Hermann, o poeta, pode ainda ser confundido com o próprio autor, e Louis por Louis Moilliet, um artista seu amigo.
Um romance breve e incontornável de um dos autores que mais aprecio, e que tal como outros livros de Hesse narra o percurso singular de uma vida eivada de espiritualidade e conhecimento, como Demian, Siddhartha ou Goldmundo. Ver artigo
Já está no ar a adaptação a mini-série do livro A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante, com tradução de Margarida Periquito e publicado pela Relógio d’Água. Esta leitura foi um agradável regresso a Ferrante. Apesar de ter comprado a tetralogia logo quando começou a ser badalada, fiquei-me apenas pelo primeiro volume – estou actualmente suspenso a meio do segundo volume, pois retomei a leitura da saga napolitana quando estreou a segunda temporada da série da HBO que também ainda não terminei.
«Dois anos antes de sair de casa, o meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia» é a frase inicial deste romance e é nela que se encerra quase toda a trama do livro.
Giovanna, protagonista e narradora, tinha uma boa relação com os pais, até ao momento em que por acidente ouve o pai dizer à mãe que a filha está a ficar com a cara da Tia Vittoria. Primeiramente, a reacção inicial de Giovanna será descobrir quem é afinal a Tia Vittoria que nunca viu, mas limita-se a descobrir fotos riscadas. Depois disso, a narrativa corre numa espiral ascendente (descendente?) que é, afinal, a perda da inocência da jovem Giovanna e a sua entrada na plena adolescência. E quando finalmente entra na zona pobre de Nápoles, nunca antes frequentada, e a tia lhe abre a porta, a verdade sobre Vittoria não é afinal aquela se esperava.
«Esta foi a última etapa da longa crise da minha casa e, ao mesmo tempo, um momento importante da fatigante aproximação ao mundo adulto. Soube (…) que era impossível parar de crescer.» (p. 234)
E conforme continua a crescer, a desvendar os segredos e mentiras dos adultos, a começar pelos dos pais, correndo aliás o risco de assumir o papel da tia ao trair a sua melhor amiga quando se apaixona pelo namorado desta, Giovanna passa a mover-se entre duas famílias, conforme a sua própria família se desagrega, e deambula entre duas zonas da mesma cidade, cujos habitantes não se “tocam”, em busca da sua própria identidade, na passagem da adolescência para a idade adulta, ao mesmo tempo que percebe que entrar na idade adulta é afinal incorrer num mundo de ilusões, de conveniências, e de enganos. Só a sua Tia Vittoria, uma criada, uma mulher espampanante, sem tento na língua, e com uma personalidade digna de um furacão, parece manter-se igual a si mesma.
Este livro é uma verdadeira viagem e a prosa de Ferrante agarra-nos desde a primeira frase. A mim deu-me foi vontade de regressar à Amiga Genial e parar de adiar a leitura dos restantes volumes.
«O tempo da minha adolescência é lento, feito de grandes blocos cinzentos e inesperadas gibosidades de cor verde, vermelha ou roxa. Os blocos não têm horas, dias, meses, anos, e as estações são incertas, está calor e frio, chove e faz sol. (…) De resto, o próprio colorido que certas emoções adotam é de duração irrelevante, quem escreve estas linhas sabe-o. Assim que procuras as palavras, a lentidão transforma-se em vórtice e as cores confundem-se, como as de diferentes frutos numa batedeira. Não só «passou o tempo» se torna uma expressão vazia, como também «uma tarde», «uma manhã», «uma noite» passam a ser indicações oportunas.» (p. 219) Ver artigo
Andei literalmente a namorar este livro uns anos, até que nestas festas houve finalmente oportunidade de o agarrar – e com a sorte de estar disponível em duas bibliotecas municipais (Faro e Loulé).
A Sexta Extinção, de Elizabeth Kolbert, publicado pela Elsinore em 2014, é uma leitura recomendada por Yuval Noah Harari, Al Gore, Bill Gates e Barack Obama, entre outras personalidades mundiais. Venceu o Prémio Pulitzer, foi finalista do National Book Critics Award, e é considerado um dos livros de divulgação científica mais relevantes dos últimos anos.
Em registo de reportagem, a autora dá-nos conta das suas andanças pelo mundo, combinando resultados de uma extensa investigação no terreno com a apresentação do trabalho de geólogos, botânicos e biólogos marinhos. Este documento inédito é sobretudo um apelo urgente que apresenta como nos encaminhamos inexoravelmente para uma sexta extinção:
«Estima-se que um terço de todos os corais de recifes, um terço de todos os moluscos de água doce, um terço dos tubarões e raias, um quarto de todos os mamíferos, um quinto de todos os répteis e um sexto de todas as aves estejam a caminhar para o extermínio. As perdas ocorrem por todo o lado: no Pacífico Sul e no Atlântico Norte; no Ártico e no Sahel, nos lagos e nas ilhas, no topo das montanhas e nos vales.» (p. 31)
Nesta era que se pode designar como a do Antropocénico, e entre muitos outros aspectos aqui registados, um dos aspectos mais curiosos e preocupantes é, a meu ver, a forma como o ser humano iniciou um processo de remistura da flora e da fauna, que acelerou com a migração humana nas últimas décadas, e provoca que em algumas partes do mundo as espécies não-nativas suplantem as nativas – muitas vezes, extinguindo-as. Calcula-se, por exemplo, que em 24 horas cerca de 10 mil espécies diferentes sejam transportadas pelo mundo nas águas do lastro dos barcos (p. 249). Isto tem implicações inclusivamente nos organismos patogénicos e nos seus novos hospedeiros (veja-se como o coronavírus rapidamente se espalhou por todo o glope, com a nova estirpe originada no Japão já presente em lugares como a Amazónia).
Nos últimos 500 milhões de anos, a Terra passou por cinco extinções em massa, nas quais a diversidade da vida no planeta se reduziu drástica e subitamente. Atualmente, e pela primeira vez na História, decorre um processo de extinção em massa provocado por uma única espécie, o Homem, e é também o Homem, ou alguns deles que aqui ganham voz, que ainda está a tentar combater o tempo. Ver artigo
O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso Ver artigo
São 12 pequenas histórias, com frases concisas, em parágrafos espaçados, quase esparsos, no branco da página, como gotas que vão pingando delicadamente a compor fragmentos de um mosaico. Sem se deter em pormenores, mas desenhando um cenário bastante plausível.
Um livro que foi pensado sobretudo para ser lido na Radio 4 da BBC, pensadas pelo autor como «um conjunto de narrativas interligadas que se reunissem num fundo comum à medida que as histórias fossem vertidas para o papel» (p. 167), para leituras de 15 minutos num programa radiofónico de domingo à tarde.
O tráfego aéreo praticamente desapareceu. O sol aparece pouco. As libélulas são uma das muitas espécies em extinção. O peixe tornou-se algo raro numa rede de pesca. São cultivados jardins verticais ou nos telhados e canteiros de legumes nos terraços. As zonas costeiras estão a ser submergidas pelo avanço da água enquanto os icebergues se soltam da calota de gelo. Paradoxalmente, a Água é um bem escasso, agora conduzida para as cidades em comboios que transportam 45 milhões de litros de água a uma velocidade de 320 quilómetros por hora. Pescam-se icebergues gigantes com arpões como se fossem baleias para serem rebocados até ao centro de cidades mais pequenas para abastecimento de água doce. Famílias desalojadas para o início da construção da Doca de Gelo, cujos canais de escoamento, de estilicídio, se destinam a servir de veículo ao gelo derretido. São pendurados sacos no meio das árvores e arbustos que permitem recolher a água que as plantas respiram; água que pode ser suficiente para fazer um café.
Estilicídio rima ainda com a palavra suicídio – como é o caso da morte próxima da espécie humana, num livro que poderia ser apelidado de uma distopia, não fosse o facto de se tratar de uma «poderosa e urgente visão do futuro» (The Guardian).
Cláudia Lourenço, jornalista, é enviada de Lisboa à ilha de São Miguel ao serviço do jornal “Quotidiano” para entrevistar um conhecido ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores. A partir dessa narrativa condensa-se gradualmente a história da Ditadura, do fim das guerras em África, a descolonização, a diáspora portuguesa e o «retorno» a casa, quase sempre intranquilo.
1 – A jornalista Cláudia Lourenço, mais confidente do que protagonista, pertence a uma nova geração pouco conhecedora da história não muito remota de Portugal. É um ajuste de contas com o passado, mas também parece constituir um final de um ciclo na sua obra para, naturalmente, abrir novo ciclo.
R – Quando olho para trás, para os livros que até hoje escrevi, nunca vejo ciclos nem outros caminhos programáticos da minha escrita. O meu passado decide-se entre boa ou má literatura. Daí ter repudiado os primeiros livros: de quando absorvia o mundo dos outros através da leitura. Só me senti “escritor” a partir de O Meu Mundo Não é Deste Reino, um romance que Você conhece muito bem. Porquê? Se descobrimos uma linguagem dentro de nós, associamos-lhe uma geografia íntima e uma possibilidade existencial para o mundo dos outros. Este de agora é um livro que se explica e justifica a si mesmo: tinha de ser escrito, só eu podia fazê-lo. Não o concebo de outra maneira. Nem faço ideia, ainda, do que irei escrever a seguir.
2 – Este é também o seu romance mais metaficcional, aliado à reflexividade da história, que cruza Açores, Portugal e África colonial. Não será por acaso que a jovem jornalista vem da metrópole, capaz de oferecer um olhar crítico externo às ilhas.
R – Concordo. Houve a preocupação de contextualizar no mesmo tempo narrativo a memória de três lugares distintos entre si, todos eles complementares em relação à “crónica” e à recuperação da memória histórica ainda recente. Açores, Lisboa e África são geografias muito próprias, ainda que tangidas pela mesma vitalidade da mudança política. O golpe de Estado e a Revolução de Lisboa abriram portas às “independências contraditórias” dos Açores e das Colónias africanas. Se me tivesse cingido ao caso da FLA, haveria a ilusão de pensar-se que tudo acontecera como por geração espontânea, não como causa e consequência do fim da Ditadura e do Processo Revolucionário. Da mesma forma que se concertam três geografias narrativas, também pretendi opor duas gerações no conhecimento desse passado ainda tão recente, porém ignorado pela nova juventude portuguesa. Aproveito para acrescentar o seguinte: este livro abre-se a todas as gerações de leitores. Só elas o podem entender e completar à sua maneira e à medida de cada uma.
3 – A escrita deste livro representa um acto de coragem, o risco de confundir a ironia com a sua opinião dos factos. Nomeadamente quando tece toda uma crítica à guerra colonial pela óptica de um branco colonizador que a defende (p. 51), ou na pessoa de Mariano, que por lá combateu, quer na de Custódio, latifundiário, explorador colonialista com características próximas do animalesco (descrito como “touro” na pág. 156). Este é um ponto de vista que se reparte entre vencedores e vencidos, uma visão crítica dicotómica a apontar a complexidade histórica da mudança: «a história mudava de uma margem para outra da razão» ( pág. 360).
R – Podemos, antes, falar de uma espécie de “jogo”. O jogo da ficção sobre as verdades históricas, em que ambas (ficção e realidade) se invocam e provocam com frequência. Mas eu pertenço a uma ideia ou escola de literatura quase sempre motivada na ousadia social e na ética do compromisso com o mundo. Gosto dos livros que suscitam diversas leituras. Não me interessa a unanimidade. Uma das coisas que mais me atrai na literatura é, como no meu caso, criar narradores. Que se contradigam, que sejam como que um inventário de ideologias opostas.
4 – Como o título indica, as vozes têm um peso imenso neste romance polifónico. O lexema vozes é recorrente na narrativa: as vozes do povo, dos Açores, etc. A perspectiva muda diversas vezes entre a primeira e a terceira personagem, temos diversas personagens que em algum momento se tornam centrais e a perspectiva da voz narrativa oscila de acordo com o ponto de vista de cada uma dessas personagens, recorrendo ao discurso indirecto livre e acedendo à sua voz interna. Temos ainda um narrador que de vez em quando fala directamente com o leitor (p. 83), ao mesmo tempo que percebemos como a entrevista de Cláudia a Mariano dará origem a um livro feito a partir das histórias deste mosaico.
R – A minha ideia era justamente acordar as vozes portuguesas que tudo viveram até ao 25 de Abril e depois, e que aos poucos foram recuando no meio de nós, a ponto de se calarem. Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo português global. Não se trata de um livro “açoriano” strictu senso, mas de uma paisagem protegida da nossa vida colectiva – em Lisboa, na África e nos Açores ao tempo em que conceberam um sonho independentista à direita de toda a política. Qualquer leitor que entre no livro entra também nesse jogo narrativo. Creio que a linguagem flui, que não se ocorre no obscurantismo nem num mero exercício de estilo. Concorda?
5 – Claro. Tanto que a própria entrevista rapidamente se torna uma conversa, uma narrativa com vida própria e cronologia desfasada, em que, como convém, a voz da jornalista se silencia. Apenas sabemos das suas questões através da voz de Mariano.
R – Quem é Mariano? Quem é a jornalista Cláudia Lourenço? Podia dizer, como Flaubert disse da sua Madame Bovary, “sou eu”. Esses os ingredientes e mistérios da ficção. Tal como eu, cada um pode ir buscar a este Livro de Vozes e Sombras a voz e a sombra da própria pessoa.
6 – Não só volta ao Rosário (p. 79), como retoma a atmosfera do seu romance sobre o Rosário. Ele representa aqui, uma vez mais, o arquipélago?
R – A povoação do Rosário pode ser, tanto neste como noutros livros que escrevi, o meu Macondo (salvo seja); ou o masculino simbólico de Achadinha, a terra açoriana em que nasci, para melhor se identificar com Portugal (nome masculino). Será sempre um lugar inserido na corrente contínua do tempo histórico. Nessa medida, já o referi como “Rozario”, “Rozário” e na sua grafia actual. A sua descrição não é muito distinta de outras aldeias açorianas. Interessa é que a sua representação seja endossada ao leitor. Não tenho nenhum sentido de posse sobre os lugares da minha ficção.
7 – Nova Roma parece ser igualmente um cenário atópico, entre a ficção e o real, ao jeito do Rosário. Ou mesmo Munakala. A África colonialista, uma África nunca nomeada (porque será?) mas que se toma por Angola (na referência aos musseques).
R – Tem razão. Aparentemente, Nova Roma não existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola, por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial. Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico. Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo português. Mariano, sim, conta a sua paixão pela Guiné-Bissau: esse capítulo é fulcral para a caracterização ideológica dele.
8 – Além dos temas que lhe são recorrentes, e do léxico que lhe é caro, este livro parece subsumir anteriores títulos seus… quase como um mosaico do conjunto da sua obra. A começar pelo Rosário, passando pela guerra colonial, temos ainda o vinho como estimulante da verdade, os anjos, os vencidos.
R – Isso pode ser claro como água corrente; ou ser uma parte fictiva da chamada “unidade da obra”. Tenho formação em Filologia Românica, fui professor da hermenêutica textual. Podia muito bem escrever uma tese em sede própria. A quem interessaria? Nem ao próprio eu. Já estou numa fase da vida em que cada vez me interessam mais as leituras múltiplas dos outros. Fico-me com a minha pequena, quem sabe se inútil, “mitologia” literária. Só isso me pode individualizar entre outros escritores e ser eu próprio “uma voz” literária.
9 – Uma das personagens, combatente da guerra colonial, tenta purgar-se do trauma da guerra transferindo a sua memória para «cinco cadernos escritos à mão» (p. 57). Foi isso que de certa forma deu origem aos seus dois primeiros romances, depois reescritos em “Autópsia”?
R – Não, nada. A personagem Mariano deste livro oscila entre o linear pessoal e a complexidade do ser, do carácter e sobretudo da ideologia colonialista. Quanto a mim, o chamado “stress pós-traumático de guerra” levou-me a escrever tudo o que vivi em tempo de guerra em Angola. Vim de lá desiludido, cheio de mágoa e muito perturbado. Só a literatura me pôde valer. Costumo dizer, aliás, que nós, o da geração da guerra colonial, fomos para África uns e voltámos outros, diferentes de nós mesmos. Nesse sentido, foi um privilégio assumir a condição da escrita e regressar à vida verdadeira depois da guerra. Trago-a ainda na pele e nos ossos, pois como disse o poeta René Char, “há guerras que não acabam nunca”.
10 – Ângela Mendes Pinto parece ser a personagem central ou fio condutor destas histórias. Uma espécie de anjo cego da História, que nos guia pelo livro, mesmo quando parece desaparecer dele para depois regressar. É esta cega – de visão clarividente e sentidos sobreapurados – uma metáfora da necessidade de olharmos mais para dentro face ao ruído dos tempos?
R – Ora aí está! O nosso povo diz que “a verdade vem da boca dos inocentes”. Também eu quis acreditar na cegueira de Ângela como mecanismo de uma visão outra do nosso mundo. A cegueira dela é, simultaneamente, a sua inocência e a descoberta de novas formas de verdade. Lembra-se de quando, ao abandonar Nova Roma com a família de regresso a Portugal, ela jura ver milhões de mortos espalhados pela cidade? Essa é a Ângela histórica a falar. A consciência e a culpa. Fala pelo lado avesso da epopeia portuguesa. Só ela “vê” a derrocada histórica de um império que afinal nunca existiu.
11 – Para um leitor mais atento, o apelido Mendes Pinto é claramente um piscar de olhos que reforça este livro como uma antiepopeia da história portuguesa das últimas décadas, a partir da descolonização e da revolução de Abril. E tal como Fernão Mendes Pinto que procura contar o reverso da expansão portuguesa, este seu livro é dedicado à sua neta para quando ela o poder ler e compreender.
R – Nós, portugueses, precisamos de sair de “Os Lusíadas” heróicos e assumir o pícaro da nossa “Peregrinação”, dentro e ao redor de nós mesmos. É por complexo de inferioridade que nos exaltamos no heroísmo do passado; nunca por nunca nos referimos à nossa condição de piratas do mar e da terra; nem nos penitenciamos da feroz Inquisição que tanta gente torturou brutalmente e mandou arder nas suas fogueiras; nem do tráfego de escravos de África para o Brasil, aos milhões. Na minha ideia, cabe à literatura nomear a vítima e resgatá-la do esquecimento. Faço-o por sistema, de livro para livro. Também tenho uma ideologia histórica.
12 – A certa altura Mariano diz à jovem jornalista: «– É muito jovem, vive num mundo novo, não tem obrigação de o saber. O seu tempo português resulta dos fardos que nós carregámos, para que a sua geração se risse dos excessos de memória e de uma experiência que a geração seguinte julga ser coisa de taralhoucos: velhos a matutar em utopias que já não servem para nada.» (p. 52)
Partilha desta visão desencantada?
R – À minha maneira sim, nunca à de Mariano. Acontecem perdas contínuas entre nós, de geração para geração. Refiro-me ao caso português. Os nossos jovens não têm consciência dos sacrifícios que marcaram a vida dos avós e dos pais. E não fazem ideia de como Portugal subiu da miséria miserável e da exploração laboral para a libertação do 25 de Abril, para um talvez notável progresso económico, a liberdade individual e a democracia social. Conheço os novos problemas da nossa juventude, com a qual sou sempre solidário. Mas gostaria de ver nela mais cultura, mais livros, um sentido crítico e sobretudo auto-crítico do seu inconformismo.
13 – Em jeito de conclusão, qual é hoje a sua relação com os Açores? É um local onde ainda regressa por imperiosa necessidade ou sente que nunca de lá saiu?
R – Os Açores são o que sempre foram para mim. O lugar que me completa. O sítio do regresso perfeito. Devo a essa idealização a fonte de onde mana o meu desejo de criação pela literatura. O propósito foi sempre o mesmo: impor as ilhas como imaginário da Literatura Portuguesa, não como regionalismo, antes como simbologia do humano universal. Se olhar para um planisfério, verá que todo o Mundo é um arquipélago, sendo os continentes ilhas muito grandes e as outras fragmentos verdadeiros da mesma natureza. O humano não tem de ser geográfico, e sim global, ontológico, no sentido em que todo o ser apenas tem sentido quando visto à escala ou à medida do planeta Terra. Daí para baixo, é o chão, o barro, a pedra, a contingência da nossa passagem por aqui. Muito obrigado.
João de Melo
(Lisboa, 27 de Dezembro de 2020)
Escrita em 1945, esta obra revela como o comunismo na Rússia e na Europa de Leste assumiu cada vez mais a aparência de uma nova sociedade de classes. Fábula satírica, que em tom ligeiro, muito subtil, e com momentos divertidos, tão cómicos quanto trágicos, nos conta, ao jeito de uma «história de encantar», como os animais da Quinta do Infantado se revoltam contra os humanos e depois se tornam na mais próspera unidade de produção rural dos arredores. Mas os porcos rapidamente submetem os outros animais a uma ditadura, explorando-os e levando-os a trabalhar mais e mais. E o que é sublime é a forma como esta escravatura decorre sempre na plena inconsciência de todos os animais, à parte do ajuizado burro que é quem mais enxerga.
Esta edição mantém o compromisso assumido na de 2008, explica o tradutor, e continua a renegar o título panfletário O Triunfo dos Porcos, honrando o desejo de Orwell de contar, a crianças e adultos, «uma história de encantar». E é precisamente como uma história de encantar que o livro pode ser lido, apesar da leitura política subjacente, até porque «os animais da quinta tinham o hábito um pouco palerma de se tratar uns aos outros por “Camarada”» (p. 145). Ao contrário de outras traduções saídas este mês, o tradutor assumiu a ousada e sábia decisão de traduzir para português todos os nomes próprios das personagens (Napoleão, Trovão,…) e lugares (Benquerença), o que só enriquece o texto, tornando a sua leitura intemporal.
Dividido em três partes, o autor passa em revista, na primeira parte, os últimos 80 anos, de 1937 a 2020 (ano em que o livro foi terminado e publicado), começando quando aos 11 anos vagueava em busca de fósseis como amonites. Passando por diversos anos cruciais na sua vida, do seu percurso de estudante de Ciências Naturais a produtor da BBC, o autor cinge-se sobretudo à sua relação com o mundo natural, no que foi observando nas suas várias expedições, enquanto testemunha de um mundo que se tornou cada vez mais pequeno e menos selvagem, conforme o ser humano continuou a assumir que este era o seu planeta e podia explorar os seus recursos ilimitadamente. Na segunda parte, a mais breve, é feita uma projecção da evolução do nosso impacto no mundo nas próximas décadas, se não encontrarmos forma de aligeirar a nossa pegada. Na terceira parte, e a mais cativante, revela como podemos ajudar a repor a biodiversidade do planeta, de modo a alcançar uma estabilidade autosustentável, num período em que começámos finalmente a perceber que existe uma associação entre vírus emergentes e a morte do Planeta (p. 132). Com exemplos fascinantes de diversos países, como a Nova Zelândia, e com dados precisos e actuais de vários relatórios, o autor deixa-nos neste livro, de leitura fácil e acessível, um derradeiro apelo. Depois de anos a falar em sítios como as Nações Unidas ou o Fundo Monetário Internacional, o autor dirige-se directamente a cada um de nós numa chamada final à consciência que ainda podemos revelar nos mais pequenos passos de forma a salvar não o mundo mas a nós mesmos, pois o mundo, esse, é certo que encontrará forma de nos sobreviver, regenerando-se, como já aconteceu nas anteriores 5 extinções.
Uma nota final para este livro enquanto objecto. Um belíssimo livro, pesado, em papel reciclado, de páginas densas, olorosas, enriquecido por belíssimas fotografias coloridas e diversas outras ilustrações.
Ao jeito de um diálogo platónico, quase numa estrutura de pergunta-resposta, pergunta essa que funciona na verdade como um refrão, Peter Handke tenta escrever um ensaio, à maneira de uma conversa entre um eu e um tu que são afinal o reverso dele mesmo.
«Quem viveu já um dia conseguido? À partida, a maioria não hesitará talvez em afirmá-lo. Será, pois, necessário continuar a perguntar. Queres dizer “conseguido” ou apenas “belo”? É de um dia “conseguido” que falas, ou de um — igualmente raro, é verdade — “despreocupado”? É para ti um dia que decorreu sem problemas já um dia conseguido? Vês alguma diferença entre um dia feliz e o conseguido?» (p. 10)
Entre o dia, o instante e a eternidade da vida, Peter Handke discorre sobre a (im)possibilidade de se cumprir, de se completar (para usar uma palavra das narrativas antigas) um dia que seja perfeito. E para isso, apesar de se chamar ao presente texto um ensaio, conforme o título aponta, Handke devaneia entre as epístolas de S. Paulo e as narrativas ao jeito de Ulisses (de Joyce), num dia cheio de perigos (como as aventuras vividas por Odisseu no seu regresso a casa), incorrendo na narrativa – pois à reflexão do pensador são altercados pedaços de prosa, muitas vezes poética, em que na verdade se narra mais do que se reflecte, como quem procura recriar esse dia conseguido, num «ensaio de uma crónica» (p. 41).
Será correcto confundir um dia conseguido com um dia perfeito? Quererei eu, na «luta com o anjo do dia», «com o cometimento do dia conseguido, tornar-me semelhante a um deus?» (p. 25)
Um dia aliás muito próximo do Outono ou do Inverno da vida – conforme o subtítulo deixa perceber: Um Sonho de Dia de Inverno. Talvez porque a ideia de um dia conseguido não passe afinal de um sonho.
«Será que, por uma vez, deveria ter permanecido em casa o dia inteiro, sem fazer nada além de morar? A consecução do dia pelo simples morar? Morar: estar sentado, ler, erguer os olhos, resplandecer em inutilidade. Que fizeste hoje? Ouvi. Que ouviste tu? Oh, a casa. Ah, sob a tenda do livro. E porque sais agora de casa, se com o livro tinhas encontrado o teu lugar? Para seguir o lido, ao ar livre.» (p. 47-48)
Peter Handke nasceu em 1942, em Griffen, na Áustria. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Graz, que abandonou em 1963, após o êxito da sua primeira obra, Os Moscardos. Tornou-se rapidamente um dos autores de língua alemã mais conhecidos e traduzidos, embora muitas vezes envolto em polémica, em particular quando em 2019 recebeu o Prémio Nobel da Literatura «por um trabalho influente que, com criatividade linguística, explorou a periferia e especificidade da experiência humana». Escreveu romances, ensaios, poesia, obras de teatro, guiões cinematográficos de filmes de Wim Wenders como As Asas do Desejo. Dele li o guião (publicado pela Difel em 1976) e vi o filme A Mulher Canhota.
Da Relógio d’Água estão traduzidos (e à minha espera na estante) A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty e O Chinês da Dor, assim como o recentíssimo A Ladra de Fruta (publicado em 2019, cuja leitura seguir-se-á em breve).
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