José Gardeazabal foge ao registo habitual do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos,e de A melhor máquina viva (primeiro volume da Trilogia dos Pares), publicado em fevereiro do ano passado, e que passou desapercebido no contexto pandémico que então se vivia. Essa cisão de registo e estilo justifica aliás que o autor sinta a necessidade de fazer uma pausa no seu anterior projecto e instaure uma nova série, intitulada Cadernos do Acontecido.

Quarentena. Uma história de Amor, novo romance de José Gardeazabal, novamente com o selo da Companhia das Letras, é bastante distinto dos romances anteriores, designadamente pela forma como bebe de uma realidade próxima, a evolução da pandemia em Portugal e tudo aquilo que o leitor viveu desde o primeiro confinamento. Essa é a chave-mestra do romance: mesmo ao narrar as várias fases da epidemia, o autor não esmiúça esses tempos estranhos; opta antes por lhes conferir uma pátina de parábola, em que o leitor facilmente se reflecte na realidade descrita. Escrito como um quase diário, com qualquer coisa de ensaio, o livro reparte-se em 41 capítulos a que correspondem 41 dias, pois a uma história de quarentena há que fazer corresponder o número 40 – aqui substituído por um epílogo, ao qual se segue o dia 41, a lembrar que afinal a história continua, agora no que se entende pelo “novo normal”.

A narrativa sintetiza vários momentos, inclusive os mais paródicos, desde ao uso das máscaras que persistiu além do Carnaval, as pessoas que usavam sacos de plástico ou capacetes, a corrida ao papel higiénico, a forma como os dias deixam de poder ser contados cronologicamente («É sábado, 56 de março.»), a televisão sempre ligada a fazer companhia, enquanto pelas janelas se vê o mundo exterior a esvaziar-se de pessoas.

Uma das piadas recorrentes no início do confinamento decretado pelo governo foi de como dessa quarentena iria resultar um boom ou de gravidezes ou de divórcios. Este romance centra-se num casal – «Mariana: investigadora em matemática, professora. Eu: coordenador de intimidade na indústria do cinema.» (p. 36) – prestes a separar-se quando subitamente o mundo dá uma guinada e os obriga a ficarem em casa, num convívio forçado, que gradualmente os reaproxima, conforme rememoram a sua história. O próprio acto amoroso impõe-se como acto de rebeldia: «Assumimos a aparência de um casal que define o amor na cama, deitado, depois de fazer amor. (…) Repetiram-nos tanto para não tocar a cara que nos sentimos culpados. O nariz, a boca, os olhos, não tocar. Mas eu não toquei a minha cara, a cara que toquei era a de Mariana. A boca, os olhos, as pálpebras eram coisas dela.» (p. 190)

A crítica política, transversal ao anterior romance do autor, está aqui patente, mas de forma mais velada, contida, nomeadamente em torno do discurso político desencontrado e de frases feitas:

«Aviso: as pessoas sem sintomas devem continuar a trabalhar. Eu ouço: as pessoas sem sintomas devem continuar a amar. (…) Temos medo, contem-nos uma história, numa epidemia ninguém passa sem uma boa história e os governos existem para nos contar histórias, a imprensa também. (…) Aviso: fiquem em casa e respeitem a distância social. Famílias, sejam sociais, salvem o mundo.» (Pág. 21)

Pode afugentar alguns leitores o facto de a quarentena se revelar como terreno fértil para alguns autores (já aqui falámos também do novo romance de Patrícia Reis, que fugiu igualmente ao seu registo habitual), mas José Gardeazabal (pseudónimo de José Tavares, irmão de Gonçalo M. Tavares) revela como a literatura se pode instituir enquanto memória colectiva de um povo, de um tempo, e simultaneamente transfigura o real.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.