Entrevista a Richard Zimler realizada para o Cultura.Sul de Março de 2017
Vida depois da vida
Nas suas obras a infância aparece muito como espaço mítico. O que significa a infância para si?
É uma boa pergunta. Não sei exactamente porquê, mas talvez porque penso que a nossa paisagem interior é quase completamente determinada pela nossa infância. A nossa perspectiva sobre o mundo é uma consequência da nossa família, escola, amigos, das nossas dificuldades em criança, e na minha perspectiva isso tem uma grande influência em toda a nossa vida. Eu já tenho 61 anos mas aquele mundo que criei no meu interior, a partir do mundo em que cresci, é o mundo em que ainda vivo a minha vida. Não estou a dizer que não tenha evoluído ao longo dos meus 50 e tal anos. Fiz muitas mudanças e modificações mas grande parte de quem eu sou, que é difícil definir, tem tudo a ver com as minhas primeiras experiências, de amor, paixão, traição, crueldade, sofrimento, injustiça, justiça. Penso que provavelmente não sou muito diferente das outras pessoas, pelo que a nossa infância é um factor determinante ao longo do nosso percurso em toda a vida.
As primeiras 50 páginas do Evangelho fazem lembrar outro livro, O testamento de Maria, de Cólm Tóibín, pois refere-se que a personagem ainda cheira a morte. Nesse outro livro, o Lázaro ressuscitado é uma alma atormentada, mas no Evangelho nunca sabemos exactamente como era a personagem de Lázaro antes da ressurreição…
A minha intenção foi que ele acordasse no seu túmulo sem qualquer memória de uma vida após a morte e fica evidentemente muito fragilizado, desorientado, e vai ter de reconstruir a sua vida, ou seja, para utilizar uma metáfora, quando ele acorda ainda está numa ponte entre a morte e a vida e sente necessidade de falar com o seu amigo de infância, Jesus Cristo, que é Yeshua no livro, em parte porque ele tem a intuição de que só o seu grande amigo vai conseguir puxá-lo para o lado da vida. Ele só vai conseguir atravessar esta ponte entre a morte e a vida com apoio e ajuda de Yeshua. É verdade que não sabemos muito sobre a sua vida antes de morrer, antes de acordar no túmulo, e a minha intenção foi fazer pequenas referências subtis à sua vida anterior. Para dar um exemplo, só a certo ponto é que percebemos ao longo do livro que ele ficou muito desapontado por não seguir a sua carreira como professor, pois a morte do pai obrigou-o a conseguir uma profissão demasiado jovem, em que ele utiliza as mãos, e ele fica envergonhado com o estado crú das suas mãos, porque tem calos, e esconde-as atrás das costas porque não era a vida que ele teria escolhido. Por isso, ao longo do livro, deixo pistas para o leitor perceber como é que era a sua vida antes deste trauma de morrer e de ser ressuscitado.
«Eu faço imensa pesquisa.»
Lázaro não foi professor, tornou-se um ladrilhador de mosaicos, mas, na minha leitura, à semelhança de um escritor ele tenta deixar uma marca com o seu trabalho.
Sim, absolutamente, eu acho que a sua leitura está certa. Embora ele quisesse ter outra profissão ele aceita a sua nova profissão de ladrilhador de mosaicos, adora fazer isso, sente-se que há uma importância que ele pode colocar nas suas obras de arte pois considera os seus mosaicos como arte e obras místicas em que pode colocar pistas para o espectador atento, onde ele coloca portas, para utilizar novamente uma metáfora. Não é propriamente uma invenção minha, é uma técnica utilizada no Oriente durante milénios e, curiosamente, embora a grande maioria dos judeus pense que não se pode criar figuras na sua arte, isso é uma compreensão errada das leis do Novo Testamento e da tradição judaica. Ao longo de toda a tradição judaica, os artistas judaicos criaram obras figurativas. A única coisa que eles não colocavam nos frescos e mosaicos era a figura de Deus. Sabemos isso da arqueologia que descobriu sinagogas da época romana em que há grandes obras da arte figurativa. Pensei que fosse interessante para mim e para o leitor explorar essa tradição pouco conhecida e mais uma vez dava-me a possibilidade de falar do misticismo judaico muito antigo que é uma coisa que poucos judeus estudam e compreendem.
Ao ler-se este livro percebe-se que há muita pesquisa, mas que entra ao mesmo tempo no domínio do mítico, até porque falamos da vida de Cristo.
Eu faço imensa pesquisa. Neste caso específico, o que mais me interessava era a vida quotidiana dos judeus, romanos e gregos na Terra Prometida de há 2000 mil anos, pelo que encomendei muitos livros sobre isso. Relativamente à parte mais mitológica diria que obviamente reli o Novo Testamento e já conheço o Antigo Testamento bastante bem, reli algumas partes, e a mitologia romana e grega faz parte do livro. Porquê? Porque acho que a mitologia lida com as grandes questões da vida, lida frontalmente com a morte, o que acontece depois da morte, ou não acontece, com o significado de uma vida, porque é que estamos cá, qual é o nosso propósito e se não há um propósito porquê viver, porque não suicidar-mo-nos. Lida com todas as grandes questões, com crueldade, solidariedade, amor, paixão. Por isso acho que os meus livros enquanto romances históricos têm esse aspecto mítico porque as personagens insistem em lidar não só com as questões quotidianas da vida, comida, roupa, de estabelecer relações com os outros, mas insistem em lidar com as grandes questões filosóficas. Esse é o grande dilema de Lázaro depois de acordar no túmulo. Há uma vida depois da morte? Se não há uma vida após a morte o que significa todo o meu treino como judeu? É uma mentira? Qual é este talento, este dom espiritual que Yeshua tem? O que é que isso significa? É por estas questões que eu acho que muitos leitores dizem que os livros têm um aspecto mítico.
A Tora e a Bíblia
Mas Lázaro, mesmo não tendo sido professor, fala muitas vezes como Jesus falaria, como um estudioso da Tora.
Isso tem a ver com a sua infância. Lázaro e Yeshua estudaram juntos durante muitos anos com os rabinos para aprender a tradição do Antigo Testamento. Ele conhece o Antigo Testamento muitíssimo bem e conhece outras tradições, porque fez o estágio em Alexandria que era uma grande cidade grega, a Nova Iorque da altura, com grandes avenidas, a biblioteca, o farol, muito mais sofisticada e cosmopolita do que Jerusalém, uma cidade provinciana. Lázaro conhece bem a tradição e a mitologia grega e judaica, e é isso que lhe interessa. Ele é um estudioso, embora seja um trabalhador manual. É um ser híbrido, em parte estudioso, em parte ladrilhador de mosaicos. Ele tem medo de revelar o seu lado de sábio e místico porque era uma tradição hermética. Jesus e todos os místicos falavam em metáforas e na altura só os iniciados podiam saber os ensinamentos mais profundos porque são também muito perigosos. Por exemplo, no mosaico que ele está a construir, ele não quer falar das portas escondidas no mosaico porque só os iniciados deviam ter acesso a elas. Essa é uma tradição milenar, quase universal, no mundo grego, romano, judaico: de que não devemos nunca falar sobre os aspectos mais profundos da espiritualidade com as pessoas não-iniciadas pois para elas pode revelar um perigo.
O próprio Richard é um estudioso da Tora.
Na universidade, segui um curso que nos Estados Unidos se chama Religião Comparada, e por isso estudei os livros sagrados do Judaísmo, que é o Antigo Testamento, mas há outros livros também. Estudei o Budismo, etc., e sobretudo a mitologia de outras tradições que me interessava muito. Não diria que sou um perito, não sou especialista, mas ainda leio muito, quase continuamente, sobre, por exemplo, o ramo místico do Judaísmo, que é a Cabala, um assunto que me fascina.
Há inclusive o cuidado de referir um certo ambiente fantástico ou certas superstições…
Sim, houve imensa pesquisa. Naquele episódio em que Lázaro se disfarça como uma espécie de mago e entra no palácio para falar com o conselheiro espiritual, para escrever essa cena e criar a realidade do pensamento supersticioso da época li imenso sobre crenças da altura: havia pessoas que usavam o voo das aves para prever o futuro, outras olhavam nos olhos das pessoas para ver o futuro e saber segredos. Fiz imensa pesquisa sobre isso e curiosamente não é difícil encontrar informações. Adorei essa pesquisa pois é sempre muito curioso descobrir essas crenças menos lógicas porque acho que revelam muito sobre o ser humano e o nosso desejo quase ilimitado de prever o futuro. Revela muito sobre a natureza humana: que não conseguimos viver bem com dúvidas sobre o que vai acontecer, queremos ter certezas. E é um aspecto de escrever romance histórico que eu adoro. Para outras pessoas ler 40 livros para criar um romance seria um sacrifício enorme mas eu adoro.
«É uma luta minha de tentar conseguir alguma compreensão do judaísmo em Portugal.»
E como se define em termos religiosos?
Eu digo, às vezes, que sou um judeu culturalmente, ou seja, não sou uma pessoa religiosa, porque não acredito num Deus pessoal e não sigo as regras da doutrina – respeito mas não me interessa, pois para a minha vida não tem qualquer importância -, mas sou um judeu de cultura. Cresci em Nova Iorque com pais judeus e quando falo de cultura judaica as pessoas na Europa ficam um pouco confusas. Mas o judaísmo tem a sua própria literatura, culinária, sentido de humor, música, tem tudo o que uma cultura tem, além da sua religião. Sinto-me português, e culturalmente sinto-me português, americano e judeu, todas aquelas coisas misturadas.
E não sente que em Portugal os portugueses não compreendem o que é isso de ser judeu?
Não, não compreendem. E quando eu faço sessões em escolas e em bibliotecas estas questões sobre o judaísmo surgem. Falo disso em parte para explicar o que é o judaísmo, porque há uma ignorância quase total e isso é transversal mesmo às pessoas mais instruídas (médicos, advogados, professores catedráticos) que sabem muito pouco do que é o judaísmo e existe uma fantasia na sua cabeça do que é ser judeu. Por exemplo, em Portugal fala-se muito dos cristãos novos só terem nomes de flores, plantas, árvores, o que é uma mentira total. Se a gente olhar para os registos da Inquisição que nos dão os nomes originais hebraicos e os nomes portugueses que eles adoptaram depois da conversão eles adoptaram os nomes mais comuns, como Soares, Fonseca, Dias. Essa coisa das plantas e árvores é simplesmente uma fantasia. Mas muita gente instruída fala-me disso, quando sabem que sou judeu fazem questão de me dizer “na minha família a minha bisavó era Oliveira então devemos ter antepassados judeus”. Se eu estiver numa posição desfarovável não digo nada, mas se estiver um pouco irritado nesse dia, respondo “isso não tem nada a ver com a realidade”. É uma luta minha de tentar conseguir alguma compreensão do judaísmo em Portugal e pouco a pouco acho que estamos a conseguir mas é uma luta que vai continuar décadas.
Hino ao amor
Quando lemos sobre a amizade de Lázaro e Yeshua, Yeshua aparece quase sempre de forma secretiva, furtiva, sozinho. Quase parece um encontro de amantes. Isto é homossexualidade ou um amor incondicional como Cristo pregava?
São as duas coisas na minha opinião. Yeshua tem a sua perspectiva, Lázaro tem a sua perspectiva, e o leitor tem a sua perspectiva. Temos aqui três pespectivas e talvez uma quarta, a minha. O que posso dizer é que na minha perspectiva nesta altura, há 2000 anos, a Terra Prometida era uma sociedade muito influenciada pela cultura grega e pela cultura romana. Havia centenas de milhares de judeus cuja primeira língua era o grego, em Alexandria e outros sítios, cuja tradição era grega. Havia também muitos outros que eram latinizados, isto é, falavam latim e que eram de cultura romana. Isto é só para dizer que nesta altura, e todos os peritos dizem isto, não havia categorias como homossexuais e heterossexuais. Na tradição grega a homossexualidade foi considerada uma fase totalmente natural e normal da vida pelo menos para os rapazes. É muito difícil conseguir mais informações sobre raparigas. E por isso, quando no Novo Testamento, S. João fala de Lázaro como o amigo «amado» de Jesus, é essa a palavra que se utiliza, eu pensei que pudesse usar este verbo «amar» em toda a sua plenitude, em todas as suas possibilidades. Da minha perspectiva, e Lázaro diz isso, numa pista, que Yeshua criou como que uma tempestade de areia na sua família em que as suas irmãs ficaram presas e que o neto, a quem Lázaro escreve, pode decidir por si próprio o que terá acontecido a Lázaro… Da minha perspectiva Lázaro ama Yeshua de todas as formas, espirituale, física, moralmente. É um amor incondicional que implica outra palavra muito importante para o livro, a de sacrifício. Lázaro está disposto a sacrificar a sua própria vida para salvar Jesus. Vários leitores já me escreveram a dizer que este romance representa um hino ao amor. E eu acho que está certo, para mim é um amor que não conhece limites. Do ponto de vista de Yeshua, eu conheço menos, sei menos o que Lázaro significa para si mas, na minha óptica, Lázaro representa um refúgio. Toda a gente quer alguma coisa dele, querem saber da sua missão, valorizar-se, ajudá-lo, excepto Lázaro que não quer nada excepto talvez a presença de Yeshua na sua vida. Não tem exigências, não tem expectativas, e por isso quando Lázaro e Yeshua dormem juntos isso é uma representação física de Lázaro como refúgio, uma casa, um abrigo, sem stress, sem tensão, sem expectativas, e eu penso que para uma grande figura popular, pública, como Yeshua, isso deve ser um alívio sem preço.
Tem-se falado muito do hino à amizade, mas o aspecto central parece ser de facto o amor entre estes dois homens.
Eu queria evitar uma linguagem de erotismo, mas há uma passagem muito importante no livro em que Lázaro passa a sua mão em cima do corpo de Yeshua para sentir essa urgência e tem essa necessidade de o abraçar e tocar. Eu não diria linguagem homoerótica, porque mais uma vez, há 2000 anos, não havia categorias porque qualquer romano ou grego da altura leria esse parágrafo como algo erótico, sem dar outra categoria à linguagem. Estas categorias são invenções modernas. Sabemos isso muito claramente da poesia e da prosa grega, romana e judaica da época.
«Um romance pode ser muito perigoso…»
O Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago, foi recebido com polémica mas não entra nem de perto naquilo que o Richard faz neste livro, em que subverte algo que as pessoas consideram princípios basilares do Cristianismo. Já ouviu alguma reacção mais negativa ao livro?
Não. Provavelmente os leitores que não gostam do livro não me vão escrever. É pouco provável. Além disso é quase um milagre mas ninguém me escreveu qualquer crítica do ponto de vista religioso ou erótico. É curioso, pois pensei que houvesse mais reacção negativa. Provavelmente porque qualquer pessoa que leia este livro percebe ao fim de 50 ou 100 páginas que é um livro sobre amor ou amizade, independentemente da questão do sexo. Provavelmente as pessoas que têm essa mentalidade mais fechada e retrógrada não vão pegar no livro e não o lêem, porque a grande maioria dessa gente não lê romances. Um romance pode ser muito perigoso para uma pessoa assim, porque tem um bom romance tem a tendência de abrir o seu cérebro e os seus pensamentos, e a última coisa que essa gente quer é ter outra perspectiva sobre o mundo.
No seu anterior romance, A Sentinela, escreveu sobre temas actuais, como a corrupção e a crise em Portugal. No Evangelho escreve sobre abuso de poder e apesar de distarem 2000 anos entre estes dois livros sinto-os muito próximos neste aspecto.
Absolutamente. Não pensei nisso mas é verdade. Um dos aspectos mais importantes da missão de Jesus Cristo era a tentativa de ser um sistema político e cultural mais justo. Em muitas das citações que temos do Novo Testamento, Jesus Cristo fala abertamente ou metaforicamente da necessidade de criar mais justiça no mundo pelos menos porque na altura quem controlava a vida dos judeus eram os sacerdotes do templo, o centro de tudo. Por isso Jesus representava uma ameaça muito grande.
Já imagina o que vai escrever agora?
Estou a terminar um novo romance, que é o quinto na série sobre a família Zarco, sobre um dos ramos de gerações diferentes da família de Berequias Zarco, o narrador de O último cabalista de Lisboa. Estou a escrever sobre dois sobreviventes ao Holocausto. Não falo dos campos nem dos guetos mas da vida destas duas pessoas depois de emigrarem, um para Montreal e outro para Nova Iorque, e de a vida destes dois primos e de todas as pessoas que os conhecem mudou depois do Holocausto.
Leave a Comment