Este livro já era conhecido, pelo menos no primeiro volume, e ressurge agora numa edição da Dom Quixote e traduzido pela primeira vez directamente do alemão – note-se a grafia do nome Jaacob –, numa brilhante tradução da professora Gilda Lopes Encarnação.
É costume dizer que todos deviam ler a Bíblia, mesmo que o texto bíblico padeça de uma escrita verdadeiramente literária. Mas apesar da dimensão desta obra – composta por quatro volumes –poder intimidar de início os mais renitentes, a escrita é de tal forma lírica, a história é de tal forma envolvente, que dificilmente podemos parar esta leitura que nos transporta para o tempo do milagre e do divino.
«Isaac colocou as suas mãos sobre o filho (…). E assim lhe concedeu a fertilidade da terra e toda a sua exuberância feminina, bem como o orvalho e o zimbro masculino do céu, e assim lhe concedeu a opulência dos campos, das árvores e das videiras, bem como a fertilidade pujante dos rebanhos e uma dupla tosquia todos os anos. Depositou no filho a aliança, fê-lo portador da promessa e herdeiro, para toda a eternidade, da obra fundada pelos patriarcas. As suas palavras altaneiras jorravam como as águas de um rio. Conferiu-lhe a hegemonia na luta entre as duas metades do mundo, a clara e a escura, assim como a vitória sobre o dragão do deserto; designou-o como Lua bela e como arauto da mudança, da renovação e do grande júbilo.» (p. 253)
E depois, em determinados momentos, o próprio autor parece falar com o leitor, em dissertação filosófica, para nos mostrar como a história de José e dos seus é tão próxima da dos comuns mortais, como tão distante da do quotidiano de cada um.
«Eis o jovem José acometido de vertigens neste ponto, tal como nos sucede quando nos debruçamos sobre a boca do poço, e não obstante as pequenas imprecisões que passavam pela sua bela e formosa cabeça, incompreensíveis aos nossos olhos, é proximidade o que sentimos em relação àquele jovem, como se fôssemos seus contemporâneos, se considerarmos os abismos próprios do submundo do passado a que José, tão remoto para nós, já assomava.» (p. 23)
No primeiro capítulo ficamos a conhecer José, o filho predilecto de Jaacob, um rapaz que tem tanto de belo como de poético, com capacidades proféticas, através dos sonhos e visões que lhe chegam ou de visões, mas incapaz de conter a sua grande língua, o que só lhe trará ódio por parte dos irmãos. A partir do segundo capítulo somos levados a conhecer a vida de Jaacob; de como foi instado pela mãe a usurpar a bênção especial destinada ao seu irmão Esaú, o primógenito de Isaac; de como partiu com uma magnífica comitiva, com animais de carga, presentes e objectos de troca, adornos e armas de uma escolta principesca, para tudo perder à mão de bandidos, menos a vida, pois a espada que lhe era destinada despedaça-se em sete vezes setenta pedaços; de como serviu a seu tio Labão durante sete anos para casar com a filha errada e outros sete para finalmente poder tomar para si a irmã amada. E na história de cada uma destas figuras bíblicas, o autor entretece ainda a história dos seus ascendentes, sendo possível, por exemplo, ver em Jaacob a dignidade espiritual de Abraão, como se estas figuras fossem reencarnações de um mesmo princípio divino. Mesmo que a história seja antiga e nos seus aspectos essenciais sobejamente conhecida, descobrimo-la aqui como se pela primeira vez.
Thomas Mann faz juz ao seu estatuto de Prémio Nobel e deixa-nos uma obra magistral, polifónica, como uma sinfonia que recupera um tema aqui e ali, enquanto se desenvolve entre a infância de José e a vida do seu pai Jaacob. Considerada pelo autor a sua magnum opus, esta recriação da história bíblica de José foi concebida em quatro partes, sendo as próximas a publicar O Jovem José, José no Egito e José, o Provedor, e mal podemos esperar pela continuação desta história mítica. Ver artigo
Este é o aguardado regresso do aclamado autor de A Rapariga Que Roubava Livros, publicado pela Editorial Presença.
Esta é a história dos cinco irmãos Dunbar: o Matthew, o Rory, o Henry, o Clayton e o Thomas. Cinco irmãos perdidos no mundo e conhecidos nas redondezas por preguejarem que nem uns condenados, lutarem como pugilistas e serem impiedosos uns com os outros em qualquer jogo, menos na vida.
Esta é a história do Assassino que certo dia lhes entra em casa. A história do seu pequeno catálogo de animais de estimação disfuncionais com nomes de heróis gregos e onde se destaca Aquiles, a mula que é teimosa que nem uma mula e persiste em entrar na cozinha.
Matthew, o irmão mais velho, é o que nos conta a história, num vagaroso desfiar de recordações, com alguns saltos, com graduais desvelamentos da verdade, permitindo ao leitor entrever os fragmentos principais que lhe permitirão reconstituir a tragédia que aconteceu aos cinco irmãos. Mas esta é principalmente a história de Clay (abreviatura de Clayton) e de como um dia deixou os irmãos para ir construir uma ponte: «Uma ponte sobre o passado que o levaria a um pai.» (p. 123).
O título original da obra é, aliás, Bridge of Clay, cujo trocadilho se perde com a tradução, e daí, provavelmente, a mudança radical de título pela editora.
Parece, contudo, que Matthew e Clay se confundem um pouco, mais do que os restantes irmãos, como se o irmão mais velho que conta a história do outro se confundisse afinal com ele: «Fisicamente, nós os dois éramos os mais parecidos, embora eu fosse uns bons quinze centímetros mais alto. Tinha o cabelo mais espesso e era mais desenvolvido, mas isso era por ser mais velho. Enquanto eu passava os dias ajoelhado às voltas com alcatifas, soalhos e cimento, o Clay ia à escola e corria quilómetros. Tocava-lhe sobreviver àquele seu regime de flexões e de abdominais; era um miúdo magro, mas rijo – via-se que tinha força. Acho que se pode dizer que éramos duas versões do mesmo, sobretudo os olhos. Um e outro tínhamos fogo no olhar e a cor era irrelevante, porque esse fogo que se via no olhar e a cor era irrelevante, porque esse fogo que se via nos olhos quer de um, quer de outro, era tudo.» (p. 89)
São quase 500 páginas de uma belíssima história de irmandade e sobrevivência, cheia de imagens imperdíveis, como a cadela, a cobra e a Remington desenterradas. A prosa de Markus Zusak, a forma como brinca com as palavras e com a linguagem enquanto constrói a sua própria ponte até ao leitor, é absolutamente arrebatadora e original, a começar pela forma como pensa os próprios títulos (Cidades + Águas + Criminosos + Arcos, em que cada capítulo acrescenta um motivo). Ver artigo
Publicado pela Elsinore, em 2015, este pequeno livro de um designer editorial explora de forma irreverente e original a relação do leitor com a literatura, das imagens que podemos formar a partir do pouco ou nada que o livro nos dá, ou de como por vezes o rosto de um actor na adaptação cinematográfica do livro pode ficar indelevelmente gravada na mente do leitor e dificilmente volta a ser suprimida, mesmo quando a actriz escolhida nada tem a ver com a personagem que encorpora.
Num livro que se constrói ele próprio a partir do jogo entre a palavra e a imagem, entre o texto e a mancha gráfica, o autor disserta em torno de diversos tópicos como: Imaginar a «imagem»; Representação; Olhos, Visão ocular & Meio ou Sinestesia.
Mendelsund alega que, tal como na música, as notas e os acordes definem as ideias, assim como o silêncio das pausas, na literatura as personagens são fisicamente vagas, com poucas características pertinentes, que ajudam mais a «aperfeiçoar o significado de uma personagem» do que a imaginar uma pessoa (p. 30). Os bons livros, como Anna Karenina, sugestionam mais do que desenham, pelo que quando um filme nos mostra uma determinada actriz (uma Isabelle Adjani ou uma Keira Knightley, por exemplo), essa é uma forma de roubo, não propriamente da propriedade intelectual do autor mas do direito de o leitor incitar a sua imaginação à cocriação de uma personagem. Porque quem ler o livro atentamente pode lembrar apenas o adjectivo «roliça», ou a sua bolsa vermelha… Como Homero usava epítetos para melhor nos relembrarmos das várias personagens…
Quando uma obra de ficção é adaptada ao grande ecrã, o filme suprime as nossas visões de leitores. E talvez por isso há sempre tantos leitores descontentes com as adaptações fílmicas. Eu, por exemplo, nunca perdoei a Morgana de As Brumas de Avalon representada por Julianna Margulies, embora a adore na série The Good Wife. Conto apenas dois filmes que para mim suplantaram os livros: são eles As Horas e O Senhor dos Anéis. E isto é algo muito pessoal e indefensável, claramente.
Numa era dominada pela imagem, quer na fotografia quer no filme, é possível que os músculos da nossa imaginação estejam a atrofiar, como já aconteceu com a nossa capacidade mnemónica (ou será que ainda há professores por aí que incentivam os alunos a memorizar poemas?). Contudo esta proliferação rápida da imagem não nos afasta totalmente do mundo da escrita e ler ainda pode ser um prazer único: «Os livros permitem-nos algumas liberdades: somos livres para sermos mentalmente activos quando lemos; participamos plenamente na relização (na imaginação) de uma narrativa.» (p. 192)
Alega ainda o autor que quando lemos alguma passagem, mesmo que seja de autores de outros tempos, como Dickens, preenchemos as descrições com o material da nossa própria memória. E eu dou-lhe razão, pois se ler sobre um farol ou uma praia, sei exactamente qual é o farol ou a praia que a minha memória recupera para preencher a ficção como um vislumbre involuntário do nosso passado (p. 300): «As palavras são eficazes não pelo que transportam com elas, mas pelo seu potencial latente de libertar a experiência aculumada do leitor. As palavras «contêm» significados, mas, mais importante, as palavras potenciam o significado…» (p. 302) Até quando lemos, por exemplo, a descrição de um cheiro (lembro-me desse fabuloso e insuperável livro que é O Perfume, cujo cheiro nauseabundo das primeiras páginas quase nos obriga a pousar o livro, sendo que no filme esse efeito é aproximado mediante a sobreposição de imagens…), não sentimos esse cheiro como tal a evolar-se das palavras na página mas sim mediante uma «transformação sinestésica», invocando não tanto uma experiência ou recordação real mas um instantâneo da nossa memória que terá deixado «uma ligeira imagem residual» (p. 342). Ver artigo
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