Este é o mais recente romance da autora de As Viúvas das Quintas-Feiras, sucesso aclamado por José Saramago e Rosa Montero. A autora, nascida em Buenos Aires em 1960, é escritora, dramaturga e guionista.
A primeira parte do livro alterna, capítulo a capítulo, entre um discurso na primeira pessoa, depois de a narradora hesitar justamente se deve ou não narrar na primeira ou na terceira pessoa a história que nos revela, até porque entretanto ela própria se tornou uma outra, e uma memória recorrente, que vai sendo desfiada gradualmente, até termos um quadro completo ou, melhor dizendo, a cena completa do que se passou há vinte anos na vida de Marilé Lauría. A mulher que Marilé foi antes, na Argentina, chama-se agora Mary Lohan, identidade que assumiu quando fugiu para Boston. Essa mulher, que também foi outrora María Elena Pujol, perdeu peso, mudou de penteado e usa agora lentes de contacto, para ocultar a sua verdadeira cor de olhos. Mas as lentes castanhas que Mary Lohan usa estão constantemente a resvalar, sempre que entra em confronto com o passado ao qual decidiu regressar, numa atitude optimista, mas muito a medo, de o poder resolver. E algo tão simples pode ser uma ameaça à revelação da sua verdadeira identidade, se bem que no final não é pelos seus olhos azul-celeste que a identificam…
Há uma trama de thriller psicológico que lembra Hitchcock, ao mesmo tempo que nos são dadas pistas para o que se passou na vida da protagonista, como quando esta invoca títulos de livros que por algum motivo captaram a sua atenção, como As Horas, de Michael Cunningham.
Neste romance, dividido em três partes (sendo que a segunda parte constitui uma anamnese), a autora consegue de forma magistral abordar o profundamente doloroso, com a sensibilidade certa para tratar assuntos que, indevidamente abordados, resvalariam no ridículo ou na apatia por parte do leitor. Note-se aliás como em toda a narrativa, a autora passa qualquer hipótese de julgamento ou opinião crítica para o leitor, sem nunca se tecer juízos de valor em relação à escolha efectuada pela protagonista, pois afinal Mary Lohan apenas tem uma pequena sorte na vida, que se revela em pequenas benesses, talvez porque teve já um grande azar…
É ainda um livro fortemente metaficcional, conforme a narradora, professora de Espanhol e Literatura, parece reflectir ao mesmo tempo que ganha coragem para narrar, pois é aliás por escrito que tanto a protagonista como o seu filho acabam por se desvelar e aproximar: «Não vou a correr procurá-lo, não vou a correr abraçá-lo, nem chorar com ele, nem sequer para que ele me insulte. Antes disto, devo-lhe uma explicação. E uma explicação não pode ser dada no meio de choros ou de insultos, nem de abraços. Uma explicação, ou pelo menos esta, precisa de muitas palavras, demasiadas, de todas as que eu não disse durante os anos de ausência que ocorreram entre nós. Por isso, faço o que tenho de fazer: fechar-me em casa a escrever.» (p. 104) Ver artigo
Paolo Cognetti nascido em Milão em 1978 é um dos escritores italianos mais aclamados pela crítica e apreciado pelos leitores. As Oito Montanhas (2016) foi o primeiro romance do autor publicado em Portugal, no ano passado. Escrito com «o fólego de um clássico», esse livro tem ecos de outros grandes que subiram a montanhas para se tornarem maiores do que a vida, e talvez por isso esteja também dividido em três partes mais ou menos correspondentes às três fases de vida de um homem. Em O rapaz selvagem, o segundo romance do autor, um relato da sua vida na montanha entre o autobiográfico e o romanceado, Paolo, que nunca se designa, embora narre na primeira pessoa, tem trinta anos e sente-se sem rumo ou esperança quando decide partir para a montanha, inclusive na esperança de voltar a escrever. O autor cita recorrentemente outros escritores modelos, como Walden, de Thoreau, que optaram por abandonar a civilização para se poderem encontrar a si próprios.
A montanha neste livro é portanto mais do que a neve onde se pode esquiar, as escarpas que alpinistas desafiam, que os caminhantes trepam ou onde alguns pastores ainda sobrevivem no seu modo de vida. Há no ar rarefeito, frio e árido das montanhas, onde nem o solo é cultivável, quem encontre um modo de vida e prefira viver no silêncio e na solidão do recato de uma maneira de ser perdida nos tempos.
É também na montanha que se dá o desencontro e o reencontro com o pai e com os que serviram de figura tutelar a Paolo, enquanto ele procura descobrir o sentido da sua própria vida, mesmo quando esse destino implica virar costas a tudo o que se conheceu, ou acabar por se perder irremediavelmente…
Um belíssimo livro, de escrita leve e intimista, que nos mostra ainda como há lugares que vivem apenas na nossa infância e de como as memórias que ficam são demasiado aguçadas para serem confrontadas com as realidades que desmoronam face ao brilho de um passado que não volta mas está sempre vivo no nosso íntimo. Ver artigo
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