Este é talvez o livro mais intrigante (e para alguns poderá ser desconcertante) que li recentemente desta nova e jovem voz da literatura portuguesa, finalista do Prémio Leya, publicado pela editora casa das Letras, mas com outros romances já publicados e com colaboração assídua na imprensa de crónicas e artigos.
Sem querer adiantar algumas das surpresas do livro para não tirar a devida surpresa ao leitor podemos começar por situar a acção num tempo incerto, numa localidade rural onde se sente a primitividade de tempos remotos, que mais tarde saberemos ser na noite de 2 de Fevereiro de 1893, anos antes da morte do rei D. Carlos e do fim da monarquia.
O início do livro lembra um romance gótico ou, na tradição portuguesa, um episódio de Montedemo, de Hélia Correia, quando a população da aldeia sai em peso armada de forquilhas e archotes para expurgar um pecado hediondo, sempre nomeado mas nunca explicado até vários capítulos depois, fazendo justiça pelas suas mãos como forma de expulsar o Diabo das suas terras. A voz narratorial ou a forma como a autora escolhe narrar a história é um dos pontos fortes do livro. No primeiro capítulo, quando nos vemos apanhados numa míriade de vozes em catadupa, onde o leitor toma conhecimento da acção através da corrente de consciência das personagens, e do seu discurso tantas vezes entrecortado e interrompido, o narrador quase parece desaparecer, deixando o palco a esta polifonia de vozes que constituem a aldeia – o que lembra essa quase ausência de voz narratorial em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Por isso mesmo proliferam certos arcaísmos de uma linguagem que se procura mais popular, mas em que prosa é ainda assim muitas vezes poética: «Movem-se os archotes, mais altas do que as chamas as vozes. Movem-se os archotes, e as chamas como que ferem a lua.» (pág. 20). Poderemos ler mais à frente sobre a «noite em que tomaram varapaus e foices, tochas e carqueja, em que se moveram com robustez de passos e com as vozes em tão grande arruído, as vontades como uma só e toda sanha» (pág. 50).
Mas são as personagens de Ana e do padre Engrácio, ausentes dessa turba de «coração empedernido», que se destacam no romance, justamente porque irão salvar do fogo duas crianças, fruto do pecado. Ana e o padre são-nos assim apresentados como figuras de bondade e rectidão, ainda que se movam entre mundos muito distintos: «Disse o padre Deus é grande e depois Rómulo e Remo. O quê, senhor padre? indagou a Ana. Nada que seja importante dar-te a conhecer agora, nem nunca. O padre tem noção de que a sabedoria da Ana lhe vem do coração, dos sentidos e da experiência e que em nada lhe acresceria ter acesso a erudição, conhecer um mito da fundação de Roma para quê?» (pág. 26). E estes mundos tão apartados, que são essa ciência de se ser homem ou mulher, são uma constante ao longo do romance, nomeadamente na forma como o homem é mais virado para a força bruta enquanto a mulher vive de pressentimentos e de conhecimento íntimo que lhe chega do coração. É o caso de Ana, parteira que nunca perdeu uma criança, que vive de uma sabedoria interior e de pressentimentos, ou da Brites parteira e curandeira. Contudo as mulheres são também capazes de crueldade, «piores do que os homens, pois muito entre si pelejavam de língua», como a Ascensão: «uma mulher de maus fígados e de coração enfaixado em liações de crueldade, o Álvaro Bouça é um pau-mandado da mulher, todos o sabem. É ele o regedor, mas é ela que o incita, que lhe sussurra ao ouvido, como a serpente a Eva, todas as decisões que ele deve tomar.» (pág. 35). Talvez não seja por acaso que Ascensão é descrita como sendo de «modos pouco de mulher» e um «ventre seco», à semelhança de Jesuína Palha, essa mulher varonil que em, uma vez mais, O Dia dos Prodígios é quem tem a coragem e a força para matar a cobra voadora, símbolo do pecado, sendo aqui Ascensão quem incitou a população a deitar fogo à casa na orla da floresta onde estavam as duas crianças, e quem depois incita a matar a cadela prenhe, por ser uma lembrança do pecado que tentaram extirpar pelo fogo. O Diabo é assim uma figura omnipresente no romance, cujo rasto se pode encontrar nas mais diversas aberrações, como é o caso do Carrocinha que nasce com «marca da coisa ruim», «mostrengo que nascera de cópula com Satã», mas que a mãe consegue salvar à sanha de uma outra aldeia, mas sem nunca lhe dar um nome.
Nos capítulos seguintes, onde o narrador passa muitas vezes à primeira pessoa, os anos vão-se sucedendo, e a perspectiva vai oscilando de uma personagem para outra, dando conta de como a aldeia parece ter-se esquecido do sucedido, com a consciência aparentemente tranquila ou, como diz o padre Engrácio, «a hipocrisia dos homens é aquilo que melhor os define. Pessoas que vão à missa e que aparentam virtude afinal não passam de sepulcros caiados.» (pág. 51).
Quinze anos depois, coincidentemente no ano da morte do rei e da monarquia (ainda que este fundo histórico seja sempre pouco relevante), chegamos finalmente até Laura e Lourenço Duchamp, no capítulo 6.1 (haverá depois um capítulo 6.2 que dá conta de um romance bipartido a partir daqui entre estes dois protagonistas, como duas metades que se completam, a narrar directamente o que lhes sucedeu), as crianças salvas ao fogo por Ana e o padre e que foram baptizados e entregues a orfanatos distintos. O pecado continua presente, nomeadamente na vida de Laura enclausurada num asilo, protegida dos «vícios que vêm de fora» pois «o mundo é casa do demónio»: «À noite despimos a bata, o vestido e o corpete para vestirmos uma camisa também grossa e longa, parda, (…) claridade não permite que nos vejamos umas às outras, (…) olhar-se e olhar as outras é pecado» (pág. 122).
Somos introduzidos por Ana na segunda parte (e metade) do romance quando dezasseis anos depois regressa ao local do sucedido para, nos capítulos seguintes, recuarmos até ao princípio da história e conseguir perceber afinal esse mistério que se foi adensando desde as primeiras linhas do romance e ainda não desvendado, acompanhando Jacques Duchamp, um desertor do exército francês, pouco depois do cerco de Almeida e pouco antes de Fevereiro de 1811. O narrador é agora omnisciente e leva-nos por vezes a certas prolepses que o confirmam, além de ganhar uma certa ironia que lembra por vezes o jeito de Saramago: «a felicidade não apresenta dados interessantes para deles se fazer história» (pág. 179).
A linguagem é cada vez mais carregada de sentido, conforme o desfecho se aproxima, e prende cada vez mais o leitor que se sente agora puxado para uma alegoria sobre o amor (e que me lembra não sei bem porquê o mito do andrógino) e uma história que é afinal cheia da força do mito; as terras da casa outrora consumida pelas chamas são recorrentemente descritas como sendo o paraíso; António, que parece personificar o mito do bom selvagem, pois era um doutor de leis mas procura um meio de vida mais primitivo e vive como pastor pois um «homem preso a leis é um homem triste»; um gémeo que nasce filho único e desde aí é perseguido por uma saudade e uma solidão incompreensíveis aos olhos de todos (o que lembra este tema explorado na obra de João de Melo, autor açoriano, em Gente Feliz com Lágrimas ou no conto «O gémeo e a sombra»); a mesma solidão que acompanhará Laura e Lourenço; até que regressam finalmente, conduzidos unicamente pelo destino, mas avassalados pelo reconhecimento, à terra e à casa de onde foram arrancados para poder sobreviver, até chegarem a essa paisagem perto da qual corre um ribeiro de águas «tão puras como se apenas a mão do Criador as tivesse tocado num gesto inicial», sob um «céu rosa-laranja-azul como o do início dos tempos», na «primordialidade de um nascer inteiro».
Paula de Sousa Lima é certamente uma nova voz narrativa a descobrir melhor. Ver artigo
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