Rapazinho, de Lawrence Ferlinghetti, foi publicado pela Quetzal em novembro de 2019, ano em que o autor completava 100 anos. Faria 102 anos no próximo 24 de março. Morreu dia 22 de Fevereiro, vítima de doença pulmonar, em casa em São Francisco, nos Estados Unidos, junto da família. Ver artigo
Um Tambor Diferente, de William Melvin Kelley («o gigante esquecido da literatura americana»), a ser traduzido e reeditado um pouco por todo o mundo, foi editado pela Quetzal Editores em Portugal, com tradução e prefácio de Salvato Teles de Menezes. É o primeiro romance deste escritor afroamericano, publicado em 1962 quando William Melvin Kelley tinha apenas cerca de 23 anos, e que o equiparou a autores como Faulkner. Esse é outro dos aspectos curiosos do livro, cuja publicação original remonta há sessenta anos: não só a temática é claramente actual e oportuna, como a prosa ágil e envolvente tem um toque moderno e original. Thomas Merton afirmou: «é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje».
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa, e que é reconhecido pelos negros por estar a ser educado para um ser humano decente…
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam.
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa, e que é reconhecido pelos negros por estar a ser educado para um ser humano decente…
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, foi publicado em maio de 2017 pela Quetzal
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros.
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros.
Sinopse:
O jornalista angolano Daniel Benchimol sonha com pessoas que não conhece. Moira Fernandes, artista plástica moçambicana, radicada na Cidade do Cabo, encena e fotografa os próprios sonhos. Hélio de Castro, neurocientista brasileiro, filma-os. Hossi Kaley, hoteleiro, antigo guerrilheiro, com um passado obscuro e violento, tem com os sonhos uma relação ainda mais estranha e misteriosa. Os sonhos juntam estas quatro personagens num país dominado por um regime totalitário à beira da completa desagregação.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma fábula política, satírica e divertida, que desafia e questiona a natureza da realidade, ao mesmo tempo que defende a reabilitação do sonho enquanto instrumento da consciência e da transformação.
José Eduardo Agualusa nasceu na cidade do Huambo, em Angola, a 13 de dezembro de 1960. Estudou Agronomia e Silvicultura. Viveu em Lisboa, Luanda, Rio de Janeiro e Berlim. É romancista, contista, cronista e autor de literatura infantil.
Os seus romances têm sido distinguidos com os mais prestigiados prémios nacionais e estrangeiros, como o Grande Prémio de Literatura RTP (atribuído a Nação Crioula, 1998) e o Independent Foreign Fiction Prize (para O Vendedor de Passados, 2004). Mais recentemente, o romance Teoria Geral do Esquecimento foi finalista do Man Booker Internacional e do International Dublin Literary Award (antigo IMPAC Dublin Award). Também os seus contos e livros infantis foram merecedores de prémios, como o Grande Prémio de Conto da APE e o Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian.
Os Vivos e os Outros é o novo romance do autor angolano José Eduardo Agualusa que pode, e deve, ser lido no seguimento do anterior A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, publicado em maio de 2017 também pela Quetzal. Três anos depois o autor regressa uma segunda vez a uma personagem sua, o Daniel Benchimol de Teoria Geral do Esquecimento, jornalista que investiga desaparecimentos, e que foi também o protagonista do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, onde o autor explora o papel dos sonhos na vida das pessoas. Entre estes dois romances, Os Vivos e os Outros e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, há pontos em comum ainda que não imediatamente reconhecíveis.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance.
Tempos Duros, de Mario Vargas Llosa, publicado pela Quetzal, é um thriller histórico e político que se demarca bastante dos livros mais recentes deste autor, configurando um regresso aos temas dos seus livros mais importantes, apresentando episódios e singularidades da vida da América Latina.
O novo romance do escritor peruano, nascido em 1936, Prémio Nobel da Literatura em 2010, decorre na Guatemala, em 1954, e assume maioritariamente a natureza de uma reconstituição histórica, traçando o golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos, através da CIA, que conduziu à queda do governo reformista eleito. Ao compor livremente esta recriação ficcional, com personagens que muitas vezes se fundem com figuras históricas, ainda que a narrativa assuma sobretudo um carácter documental, Vargas Llosa mostra como a verdade foi sacrificada, pelo que este romance é, tão somente, o recontar da história que já era, em si, uma ficção, uma mentira capaz de mudar o rumo de um país e de todo o continente da América Central. Tudo por uma questão de bananas.
A United Fruit, companhia que nos anos 50 estende a sua rede pelas Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas das Caraíbas, produzirá mais dólares que a maioria das empresas dos Estados Unidos e até mesmo do resto do mundo. Conhecida como a Fruteira, ou com a alcunha de «o Polvo» em toda a América Central, Gabriel García Márquez já nos dava uma ideia da sua acção determinante na América Latina numa passagem de Cem Anos de Solidão – onde se narra um massacre. E uma das ameaças à Fruteira é justamente a alegada influência que a União Soviética tem na Guatemala, cujo governo democrático estaria infiltrado por comunistas que pregam contra a propriedade privada, o pan-americanismo, o mercado livre…
Ao longo do livro, Vargas Llosa traça como os tentáculos de uma conspiração, manietada de forma por vezes bastante desajeitada por um embaixador norte-americano, apertam o cerco a Jacobo Árbenz, presidente moderado e democraticamente eleito, que será destituído sob ameaça de um golpe militar (ao jeito latino-americano), acusado de encorajar o comunismo soviético na Guatemala. Para, por fim, quando se reconhece que afinal ele não tinha sido comunista, mas tão somente vítima de uma «publicidade reivindicatória», «um homem incauto e bem-intencionado que só quis trazer o progresso, a democracia e a justiça social ao seu país» (p. 283), os Estados Unidos, incomodados com a campanha internacional desencadeada contra Washington, tentam que esta história seja rapidamente esquecida.
O novo romance do escritor peruano, nascido em 1936, Prémio Nobel da Literatura em 2010, decorre na Guatemala, em 1954, e assume maioritariamente a natureza de uma reconstituição histórica, traçando o golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos, através da CIA, que conduziu à queda do governo reformista eleito. Ao compor livremente esta recriação ficcional, com personagens que muitas vezes se fundem com figuras históricas, ainda que a narrativa assuma sobretudo um carácter documental, Vargas Llosa mostra como a verdade foi sacrificada, pelo que este romance é, tão somente, o recontar da história que já era, em si, uma ficção, uma mentira capaz de mudar o rumo de um país e de todo o continente da América Central. Tudo por uma questão de bananas.
A United Fruit, companhia que nos anos 50 estende a sua rede pelas Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas das Caraíbas, produzirá mais dólares que a maioria das empresas dos Estados Unidos e até mesmo do resto do mundo. Conhecida como a Fruteira, ou com a alcunha de «o Polvo» em toda a América Central, Gabriel García Márquez já nos dava uma ideia da sua acção determinante na América Latina numa passagem de Cem Anos de Solidão – onde se narra um massacre. E uma das ameaças à Fruteira é justamente a alegada influência que a União Soviética tem na Guatemala, cujo governo democrático estaria infiltrado por comunistas que pregam contra a propriedade privada, o pan-americanismo, o mercado livre…
Ao longo do livro, Vargas Llosa traça como os tentáculos de uma conspiração, manietada de forma por vezes bastante desajeitada por um embaixador norte-americano, apertam o cerco a Jacobo Árbenz, presidente moderado e democraticamente eleito, que será destituído sob ameaça de um golpe militar (ao jeito latino-americano), acusado de encorajar o comunismo soviético na Guatemala. Para, por fim, quando se reconhece que afinal ele não tinha sido comunista, mas tão somente vítima de uma «publicidade reivindicatória», «um homem incauto e bem-intencionado que só quis trazer o progresso, a democracia e a justiça social ao seu país» (p. 283), os Estados Unidos, incomodados com a campanha internacional desencadeada contra Washington, tentam que esta história seja rapidamente esquecida.
Alberto Manguel, nascido em Buenos Aires em 1948, é sobejamente conhecido como ensaísta, desde o seu Uma História da Leitura – que já merecia uma nova edição, entretanto confirmada pela editora para sair ainda este ano, até porque é uma Bíblia para estudantes de literatura e para todos aqueles que apreciam o livro como objecto). Quase toda a sua obra de ensaio tem vindo a ser publicada pela Tinta-da-China, desde 2013, que aliás incluiu na edição portuguesa do livro um posfácio inédito, até porque o autor prepara-se para vir para Lisboa. Graças a Bárbara Bulhosa, sua editora portuguesa, surgiu da parte da Câmara de Lisboa a possibilidade do autor voltar a desembalar a sua biblioteca pois, ao contrário de Borges (que tinha em casa uns cantinhos discretos com livros e uma boa parte da sua biblioteca memorizada), Manguel tem cerca de 40 mil títulos que serão recebidos na capital portuguesa, num novo espaço municipal a funcionar como biblioteca e Centro de Estudos sobre a História da Leitura.
Com Borges, traduzido por Rita Almeida Simões, pequena pérola com 82 páginas e perfeito para caber no bolso, revisita uma figura tutelar de Alberto Manguel, Jorge Luis Borges, que é também a influência de muitos outros escritores, desde Gabriel García Márquez a Umberto Eco – que cria uma personagem de O Nome da Rosa como homenagem a Borges.
Quando, em 1964, um escritor cego convida um livreiro de 16 anos para lhe ler em voz alta, o rapaz não tem em grande conta a excepcionalidade do encontro, pois Manguel já amava livros e havia, em Buenos Aires, um vasto conjunto de pessoas que serviram como leitores ao director da Biblioteca Nacional quando Borges cegou, por volta dos 60 anos (condição congénita e previsível).
Neste livro de memória afectiva, Manguel resume o decurso desses serões ao longo de 4 anos, mas ao rememorar está também a narrar – e pela primeira vez nos seus ensaios tem mesmo breves trechos de efabulação, ou não fosse o acto de recordar e recontar uma ficção em si – a partilha de breves momentos domésticos, que recorda com suspeita nitidez. Mas este é também um livro que explora a obra do autor, destacando alguns dos seus contos e temáticas, para (re)ler em constelação com obras recentemente publicadas pela Quetzal – Na Patagónia, de Bruce Chatwin, a nova edição de Ficções ou a antologia de ensaios Outras Inquirições.
Com Borges, traduzido por Rita Almeida Simões, pequena pérola com 82 páginas e perfeito para caber no bolso, revisita uma figura tutelar de Alberto Manguel, Jorge Luis Borges, que é também a influência de muitos outros escritores, desde Gabriel García Márquez a Umberto Eco – que cria uma personagem de O Nome da Rosa como homenagem a Borges.
Quando, em 1964, um escritor cego convida um livreiro de 16 anos para lhe ler em voz alta, o rapaz não tem em grande conta a excepcionalidade do encontro, pois Manguel já amava livros e havia, em Buenos Aires, um vasto conjunto de pessoas que serviram como leitores ao director da Biblioteca Nacional quando Borges cegou, por volta dos 60 anos (condição congénita e previsível).
Neste livro de memória afectiva, Manguel resume o decurso desses serões ao longo de 4 anos, mas ao rememorar está também a narrar – e pela primeira vez nos seus ensaios tem mesmo breves trechos de efabulação, ou não fosse o acto de recordar e recontar uma ficção em si – a partilha de breves momentos domésticos, que recorda com suspeita nitidez. Mas este é também um livro que explora a obra do autor, destacando alguns dos seus contos e temáticas, para (re)ler em constelação com obras recentemente publicadas pela Quetzal – Na Patagónia, de Bruce Chatwin, a nova edição de Ficções ou a antologia de ensaios Outras Inquirições.
O Silêncio das Mulheres, da autoria de Pat Barker, vencedora do Booker Prize, com tradução de Tânia Ganho, foi recentemente publicado pela Quetzal.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável.
Para agradar a um público mais exigente há que ler e conhecer de tudo um pouco, pelo que me aventurei por um género praticamente novo para mim – o romance policial – com Lisboa Reykjavík, da autora islandesa Yrsa Sigurdardóttir – com tradução de Miguel Freitas da Costa. Reeditado pela Quetzal, inicialmente editado com o título O Silêncio do Mar em 2016, é considerado o seu melhor romance – e o mais assustador.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora.
Se o combate à ignorância pode ser considerado como um dos propósitos da filosofia, disciplina que promove a saúde moral e a busca do conhecimento através do debate e do livre pensamento, podemos então encarar os preconceitos, o orgulho, a intolerância ou a superstição como algo menos do que manifestações de estupidez? Maxime Rovere defende, paradoxalmente, que os estúpidos, por um lado, perturbam a vida social, mas por outro são também eles produto de uma sociedade doente; são até, muitas vezes, aqueles que mandam e estão ao serviço do poder. Contudo, quando identificamos um estúpido, através dos seus comportamentos desadequados, como alguém que se situa num «grau inferior de uma escala moral», nós, seres imperfeitos que se esforçam por alcançar a realização plena, devemos também ter a noção de que pertencemos a essa mesma escala (p. 29). E, infelizmente, a via mais fácil para responder a um estúpido é tornarmo-nos nós próprios estúpidos – até porque, aos olhos deles, somos nós os verdadeiros estúpidos, e «considerar a nossa própria opinião como algo absoluto é uma das definições subjetivas do estúpido, a imagem divina que têm de si mesmo» (p. 41).
Neste livro publicado pela Quetzal, Maxime Rovere, especialista em História da Filosofia que lecciona na Universidade Católica do Rio de Janeiro, define a estupidez como «a verdade das relações humanas» (p. 30) e relembra-nos o que podemos aprender com eles, pois somos nós quem tenta perceber a sua lógica de comportamento. Composto por capítulos breves, com máximas e conselhos que os resumem, o autor deste ensaio sobre a ética de interacção constrói a sua tese, cheia de humor, ironia e sarcasmo, mas sempre com base na filosofia, com o fito de nos ajudar a melhor compreender a estupidez humana, de modo a evitar o confronto e dar espaço àquele companheiro de casa insuportável, ao colega de trabalho com opinião sobre tudo, ou escapar à negatividade daquele amigo insuportavelmente crítico… «Sabem muito bem que é melhor nunca insultar quem quer que seja – nem mesmo os parvalhões. Logo, a emoção que sentem no momento em que se deparam com um monte de esterco colide naturalmente com a representação mental do dever de reserva, a que não gostariam de falhar. Quanto mais essa força encontrar em vós um obstáculo tanto mais se transformará em violência.» (p. 60)
Neste livro publicado pela Quetzal, Maxime Rovere, especialista em História da Filosofia que lecciona na Universidade Católica do Rio de Janeiro, define a estupidez como «a verdade das relações humanas» (p. 30) e relembra-nos o que podemos aprender com eles, pois somos nós quem tenta perceber a sua lógica de comportamento. Composto por capítulos breves, com máximas e conselhos que os resumem, o autor deste ensaio sobre a ética de interacção constrói a sua tese, cheia de humor, ironia e sarcasmo, mas sempre com base na filosofia, com o fito de nos ajudar a melhor compreender a estupidez humana, de modo a evitar o confronto e dar espaço àquele companheiro de casa insuportável, ao colega de trabalho com opinião sobre tudo, ou escapar à negatividade daquele amigo insuportavelmente crítico… «Sabem muito bem que é melhor nunca insultar quem quer que seja – nem mesmo os parvalhões. Logo, a emoção que sentem no momento em que se deparam com um monte de esterco colide naturalmente com a representação mental do dever de reserva, a que não gostariam de falhar. Quanto mais essa força encontrar em vós um obstáculo tanto mais se transformará em violência.» (p. 60)
Na linha de A Civilização do Espetáculo, a Quetzal Editores publica um novo livro de não-ficção do autor peruano, Mario Vargas Llosa, que foi condecorado com o Nobel de Literatura em 2010, em que se alerta para os perigos da submissão intelectual, da negação da racionalidade e da importância da liberdade de pensar e questionar.
Mario Vargas Llosa esclarece que, não parecendo, este é um livro autobiográfico, pois nos 7 ensaios biográficos que constituem O Apelo da Tribo – sobre filósofos e pensadores como Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel – o autor descreve simultaneamente a sua história intelectual e política: «o percurso que me foi levando, desde a minha juventude impregnada de marxismo e de existencialismo sartriano ao liberalismo da minha maturidade, passando pela revalorização da democracia, para a qual me ajudaram as leituras de escritores como Albert Camus, George Orwell e Arthur Koestler» (p. 10). Depois, num processo intelectual que levou vários anos, o autor converte-se ao liberalismo, devido a «certas experiências políticas» e, sobretudo, às ideias dos 7 autores apresentados neste livro.
No contexto de um continente imerso em revoluções e conturbações, o autor descobriu a política logo aos 12 anos, com um golpe militar no Peru. Terminado o liceu, rejeita a Universidade Católica em detrimento de uma universidade pública e popular, insubmissa à ditadura militar, para poder filiar-se no Partido Comunista. Estuda marxismo em grupos clandestinos, mantém-se socialista, vive a Revolução Cubana, visita a URSS, até que ao mudar-se para Inglaterra depois dos finais dos anos sessenta, e viver de perto os 11 anos do governo de Margaret Thatcher, uma conservadora guiada por convicções profundamente liberais, Mario Vargas Llosa opta pelo liberalismo.
Nestes ensaios biográficos, de leitura acessível e aprazível, o autor aborda a obra destes pensadores, analisando os seus principais aspectos, pesando os prós e contras da sua filosofia, filtrando o pensamento destes com o seu cunho pessoal. Este é um livro essencial para o controverso cenário político que agora se vive, pois subjacente a esta obra está sobretudo o apelo de um liberalista (fazendo suas as palavras de Ortega Y Gasset) que invoca à necessidade de praticarmos a liberdade de pensamento e de livre escolha, num mundo que empurra, cada vez mais, o cidadão enquanto indivíduo para uma massa anódina: «o indivíduo tende cada vez mais a ser absorvido por conjuntos gregários aos quais cabe agora o protagonismo da vida pública, um fenómeno em que ele vê um retorno do primitivismo (o «apelo da tribo») e de certas formas de barbárie disfarçadas sob as vestes de modernidade.» (p. 74)
O autor traça aqui o risco avassalador de o leitor se deixar absorver por uma massa cuja acção é determinada pela influência da televisão, mas sobretudo da internet e das redes sociais, e que implicará a sua anulação e um retrocesso histórico para a civilização democrática, como acontece actualmente, por exemplo, com os nacionalismos emergentes na Europa: «O apelo da tribo, a atração daquela forma de existência em que o indivíduo, escravizando-se a uma religião, doutrina ou caudilho que assume a responsabilidade de dar resposta por ele a todos os problemas, evita o compromisso árduo da liberdade e a sua soberania de ser racional, toca, claramente, cordas íntimas do coração humano.» (p. 165)
Mario Vargas Llosa esclarece que, não parecendo, este é um livro autobiográfico, pois nos 7 ensaios biográficos que constituem O Apelo da Tribo – sobre filósofos e pensadores como Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel – o autor descreve simultaneamente a sua história intelectual e política: «o percurso que me foi levando, desde a minha juventude impregnada de marxismo e de existencialismo sartriano ao liberalismo da minha maturidade, passando pela revalorização da democracia, para a qual me ajudaram as leituras de escritores como Albert Camus, George Orwell e Arthur Koestler» (p. 10). Depois, num processo intelectual que levou vários anos, o autor converte-se ao liberalismo, devido a «certas experiências políticas» e, sobretudo, às ideias dos 7 autores apresentados neste livro.
No contexto de um continente imerso em revoluções e conturbações, o autor descobriu a política logo aos 12 anos, com um golpe militar no Peru. Terminado o liceu, rejeita a Universidade Católica em detrimento de uma universidade pública e popular, insubmissa à ditadura militar, para poder filiar-se no Partido Comunista. Estuda marxismo em grupos clandestinos, mantém-se socialista, vive a Revolução Cubana, visita a URSS, até que ao mudar-se para Inglaterra depois dos finais dos anos sessenta, e viver de perto os 11 anos do governo de Margaret Thatcher, uma conservadora guiada por convicções profundamente liberais, Mario Vargas Llosa opta pelo liberalismo.
Nestes ensaios biográficos, de leitura acessível e aprazível, o autor aborda a obra destes pensadores, analisando os seus principais aspectos, pesando os prós e contras da sua filosofia, filtrando o pensamento destes com o seu cunho pessoal. Este é um livro essencial para o controverso cenário político que agora se vive, pois subjacente a esta obra está sobretudo o apelo de um liberalista (fazendo suas as palavras de Ortega Y Gasset) que invoca à necessidade de praticarmos a liberdade de pensamento e de livre escolha, num mundo que empurra, cada vez mais, o cidadão enquanto indivíduo para uma massa anódina: «o indivíduo tende cada vez mais a ser absorvido por conjuntos gregários aos quais cabe agora o protagonismo da vida pública, um fenómeno em que ele vê um retorno do primitivismo (o «apelo da tribo») e de certas formas de barbárie disfarçadas sob as vestes de modernidade.» (p. 74)
O autor traça aqui o risco avassalador de o leitor se deixar absorver por uma massa cuja acção é determinada pela influência da televisão, mas sobretudo da internet e das redes sociais, e que implicará a sua anulação e um retrocesso histórico para a civilização democrática, como acontece actualmente, por exemplo, com os nacionalismos emergentes na Europa: «O apelo da tribo, a atração daquela forma de existência em que o indivíduo, escravizando-se a uma religião, doutrina ou caudilho que assume a responsabilidade de dar resposta por ele a todos os problemas, evita o compromisso árduo da liberdade e a sua soberania de ser racional, toca, claramente, cordas íntimas do coração humano.» (p. 165)
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