1984, de George Orwell, foi publicado pela Livros do Brasil na colecção Dois Mundos em simultâneo com a Quinta dos Animais. Dois clássicos fundamentais agora reeditados por uma boa parte das grandes editoras (a capa da Porto Editora conta ainda com ilustrações de Vhils), assinalando a entrada da obra de Orwell em domínio público, que procuram novos leitores ou simplesmente uma releitura, uma vez que parece ter chegado o tempo das distopias, entre pandemia, desgovernação, novas tecnologias, e a ascensão de regimes neofascistas. Note-se que logo em 2017, com a eleição de Trump, as vendas de 1984 (originalmente publicado em 1949) dispararam.
Winston Smith, de 39 anos, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é reescrever a História. Vive em Londres, a principal cidade de Pista Um, terceira província mais populosa da Oceânia, onde a filosofia dominante é o Socing. O mundo está dividido em três grandes superestados, Oceânia, Estásia, Eurásia, em guerra permanente há 25 anos.
Corre o ano de 1984, se bem que Winston não tem já a certeza, pois ao reescrever a História falsifica-se todo o passado e apesar de ele próprio contribuir para tal não tem como o provar: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e ruas foram renomeadas, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua, dia após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão.» (p. 160)
A reescrita da verdade, aliada à ideia de se viver numa guerra permanente, permite a uma sociedade completamente hierarquizada, descendente dos antigos regimes totalitários, manter a sua estrutura intocável. Os habitantes da Oceânia, cuja vestimenta foi em tempos uma farda dos trabalhadores manuais, vivem na pobreza e ignorância, o que se tornou fácil com a manipulação da ordem pública pela imprensa e uma vigilância permanente por parte do Grande Irmão, figura que parece viver nos telecrãs omnipresentes que tudo registam e tudo emitem, num escrutínio que parece até capaz de ler pensamentos. Por isto, acções simples como Winston registar os seus pensamentos num diário ou amar Julia revelam-se actos criminosos:
«Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e sentia desejo, ponto final. Mas, hoje em dia, não era possível ter um amor puro, nem desejo puro. Nenhuma emoção era pura, porque estava tudo misturado com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax uma vitória. Tinha sido um golpe contra o Partido. Tinha sido um ato político.» (p. 131) Ver artigo
Uma Paixão Simples, de Annie Ernaux, com tradução de Tereza Coelho, publicado na coleção Miniatura da editora Livros do Brasil, é um pequeno mas controverso livro de 72 páginas, uma narrativa que quebra os estereótipos do romance sentimental, adaptada ao cinema por Danielle Arbid.
Depois de ter ficado surpreso e maravilhado com a técnica narrativa da autora em Os Anos, publicado também em 2020 pela Livros do Brasil (talvez um dos melhores livros do ano passado, e apresentado no Postal do Algarve), li este livro com expectativa.
A história de uma mulher culta, independente, divorciada, com filhos adultos, que vive numa completa suspensão a viver uma paixão cheia de regras (que a si própria impõe), à espera dos momentos livres de um homem casado, estrangeiro, mais jovem (quando o reencontra, finda a paixão, ele terá então 38 anos): «Tudo era uma carência interminável, a não ser o momento em que estávamos juntos a fazer amor. E, além disso, obcecava-me o momento seguinte, em que ele se ia embora. Vivia o prazer como uma dor futura.» (p. 41)
Podemos supor que a narradora escreve como se dirigisse uma carta a um eu mais jovem, sem admoestar ou zombar a sua cegueira de então, mas na verdade, naquele que parece ser um texto assumidamente autobiográfico tão honesto quanto intenso, ela escreve para reviver essa mesma paixão pois quando começou a escrever era «para continuar nesse tempo» (p. 55). Da mesma forma que ao vivê-la tinha a impressão de estar «a escrever um livro, a mesma necessidade de não falhar nenhuma cena, a mesma preocupação com todos os pormenores» (pp. 17-18). Uma paixão que pode ser simples, mas nem por isso menos plena de significado ao ponto de nela se consumir: «E até pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim desta paixão – sem dar um sentido preciso a «até ao fim» -, da mesma maneira que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto, daqui a uns meses.» (p. 18)
Para esta narradora, corajosa e contida, não se trata de «explicar» a sua paixão, mas de «expô-la», advertindo o leitor de que «é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante» (p. 37). Mas escrever, ainda que não o assuma plenamente, vai além de um acto egoísta e privado, e é também uma forma de comunicar com o mundo: «Pergunto a mim própria se não escrevo para saber se os outros fizeram ou disseram coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas. Ou mesmo para que as vivam, esquecendo-se de que leram aquilo um dia em qualquer parte.» (p. 59)
E a autora-narradora está ciente do que publicar este texto implica: «Quando eu começar a passar este texto à máquina, e ele me aparecer em caracteres públicos, a minha inocência acabou.» (p. 63) Ver artigo
Os Anos, de Annie Ernaux, publicado pela Livros do Brasil não é um romance convencional. Se nas primeiras páginas, que constituem como que um primeiro capítulo, nos surge um género de inventário de imagens, de instantâneos, como um dicionário que vai do berço à morte, a partir daí as restantes quase 200 páginas do romance desdobram-se como uma crónica dos tempos. Listam-se fotografias, resgatadas a um arquivo familiar, começando pela primeira foto de um bebé, em 1941; recuperam-se, seguidamente, narrativas familiares que são, como se refere, indissociáveis das narrativas sociais; citam-se ocasionalmente frases retiradas de um diário; existem inclusive passagens que desenham o plano do livro que intenta «captar o reflexo projetado pela história coletiva no ecrã da memória individual» (p. 43). Mas a narração destas memórias, que vai de 1941 a 2006, é sempre apresentada na 3.ª pessoa, referindo-se a uma «ela», tecendo uma narrativa distanciada e exterior por ser uma história colectiva e transpessoal, mas também, possivelmente, por ser essa a ideia central representada no romance: a ideia do que realmente fica de nós, ao passar pelo mundo, e o pouco que conseguimos lembrar da pessoa que fomos, conforme passam os anos, tal como «ela» (essa mulher nunca nomeada) não se consegue reencontrar na pessoa que foi e já mal consegue lembrar.
«Gostaria de reunir múltiplas imagens dela própria, separadas, sem relação entre si, ligadas por um fio narrativo, o da sua existência, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje. Uma existência particular, portanto, mas também incorporada no movimento de uma geração.» (p. 144)
Definir, portanto, esta reconstrução dos 60 anos da vida de uma mulher, que por sua vez se inscreve na história de um país, França, como um romance biográfico seria bastante simplista. Este livro inédito em Portugal, agora publicado na coleção Dois Mundos, recupera mais de meio século da história do mundo, em décadas decisivas, detendo-se muito particularmente no Maio de 68.
Os Anos foi editado em França em 2008, no mesmo ano em que a autora foi galardoada com o Prémio de Língua Francesa pelo conjunto da sua obra. Esta obra confirma Annie Ernaux como uma das mais importantes vozes da literatura francesa, recebeu várias distinções, como o Prémio Marguerite Duras 2008 e o Prémio Strega 2016, e foi finalista do Prémio Man Booker Internacional de 2019. Ver artigo
A justificar a existência de um cânone clássico (ainda que haja quem prefira evitar tais preconizações), isto é, uma lista de obras literárias que se tornam intemporais, universais, incontornáveis, os tempos estranhos que vivemos ultimamente parecem ter recuperado obras de há décadas que, subitamente, se tornaram actuais e prementes. Foi o caso da explosão de vendas de 1984, quando Trump foi eleito, e, mais recentemente, no rasto da pandemia do Corona Vírus, A Peste, de Albert Camus, ou Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Por isso mesmo, muito se tem brincado nas redes sociais com fotos de avisos afixados em bibliotecas e livrarias onde se afirma algo como “mudámos todos os livros de distopias pós-apocalípticas para a secção de história contemporânea”.
Não quero aqui, e para variar um pouco, fazer uma reflexão em torno da obra, ou uma recensão, mas antes um artigo de opinião (chamemos-lhe assim, por ora), detendo-me em particular em algumas das frases das primeiras páginas deste livro recentemente relançado pela editora Livros do Brasil. Se as frases de abertura do romance nos distanciam imediatamente da realidade narrada, quando explanam que «Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual.», logo em seguida o narrador toca no que me parece ser um dos pontos sensíveis das últimas semanas, no que concerne à quarentena vivida em Portugal.
«Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e perderem em seguida, a jogar às cartas, no café, ou a dar à língua, o tempo que lhes resta para viverem.»
E assiste-se hoje, entre muito humor e algum desespero, a uma série de publicações e diários de quarentena em que os portugueses dão conta de como, de facto, parecem ter-se esquecido de viver. De parar. De se ouvirem respirar. De acordar de manhã sem ter que seguir uma agenda. E não, não digo que teletrabalho equivale a férias. Mas talvez pudesse ajudar a repensar um novo modelo de trabalho, que nos permita ter mais tempo para nós e para os nossos. Ou simplesmente para nós, porque sim, defendo o egoísmo e acredito que cada dia passado na nossa companhia é tempo precioso.
Mas Camus, ou melhor dizendo, para se ser literariamente ético, o narrador, prossegue com deliciosa ironia: «Mas há cidades e países onde as pessoas têm, de tempos a tempos, a suspeita de que existe mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida.»
Tornaram-se virais publicações de como a poluição se reduziu drasticamente desde a proliferação do Covid-19, e de como golfinhos e cisnes voltaram a Veneza, porém, tal como um vírus, estas são nocivas, pois são mentira. Num momento de crise, em que o maior perigo é invisível e vem do outro, o mundo viu-se obrigado a parar. O país inteiro viu-se obrigado a parar. E esta pode ser uma excelente oportunidade para repensarmos o nosso papel, o nosso propósito, o nosso caminho. Ou, como alerta Camus-narrador, podemos simplesmente passar pelos sinais de alerta sem que nada se modifique em nós. Ver artigo
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