Quichotte, de Salman Rushdie, publicado pela Dom Quixote, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, é uma homenagem ao clássico de Cervantes, hoje considerado como um romance pioneiro, pós-moderno até, pela sua metaficcionalidade, isto é, a forma como coloca em causa a sua própria natureza enquanto trabalho de ficção.
Quichotte (note-se a grafia ligeiramente diferente do nome), é a história de Sam DuChamp, autor medíocre, de origem indiana, de livros de espionagem, usualmente designado como Irmão. Bem… na verdade, Quichotte conta a história de Ismail Smile, um vendedor ambulante obcecado por televisão que se apaixona por uma apresentadora, de seu nome Salma R. (note-se a sonoridade próxima ao nome do autor), e que percorre os Estados Unidos, no seu Chevrolet Cruze, na companhia de Sancho, o filho que ele imaginou tão fortemente ao ponto de este surgir como uma imagem a preto e branco. Esta é também a história de Sancho, um jovem adolescente que se materializa de um momento para o outro munido do conhecimento que é também o do seu criador, Quichotte, e que agudiza de tal forma o seu desejo de ser um “menino de verdade” que acaba mesmo por se transformar num – e também Sancho tem o seu próprio grilo falante capaz de lhe conceder desejos, como se a fada azul e o grilo da história de Pinóquio se fundissem num só. Mas esta, dizia, é a história de um Quixote moderno: uma desengonçada «figura solitária, permanentemente fora de tom, o avô louco de todos» mas «com uma certa dignidiade», «impecavelmente vestido» e «um vocabulário invejavelmente extenso» (p. 111), que fala por metáforas e tece fantasias na sua cabeça. Bem, nem sempre essas fantasias estão apenas na sua cabeça, como naquela localidade por onde passa em que os habitantes se transformam em mastodontes… Porque conforme este herói pícaro percorre ao volante várias localidades norte-americanas (a cujo nome, se segue sempre o número do total de habitantes, um pouco como as placas que visionamos nos filmes), tece-se uma forte crítica a uma nação à beira do colapso, tendo Quichotte, por vezes, que fugir das localidades a que acaba de chegar. Porque Quichotte é também a história de um homem perseguido pela sua cor de pele, configurando uma forte crítica ao racismo que fervilha nos E.U.A., onde as pessoas mais depressa acreditam na ficção do que na realidade, e tudo serve como escape: a televisão; as mentiras que preferem alimentar; as drogas que decidem tomar para fugir a si próprias.
Quichotte é a autobiografia delirantemente ficcionada da vida de um escritor exilado, meio britânico meio indiano, num país onde ainda se consegue sentir um estranho, que conta a sua história e as suas desventuras. Quer dizer… Quichotte é um palimpsesto onde ficção e realidade, fantasia e crítica, sátira e cultura popular, se fundem, num jogo delirante pautado apenas pela lógica da efabulação onde tão depressa cruza referências da actualidade, como Candy Crush Saga, The Real Housewives of Atlanta, Star Trek, American Idol, The Voice, etc etc etc…
Este livro de quase 500 páginas é um pujante regresso às grandes obras de Rushdie, justamente considerado pela Time um dos melhores livros do ano e finalista do Man Booker Prize 2019. Mas… se calhar, no fim de tudo, Quichotte nem sequer existe…

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.