Respondi recentemente a um desafio sobre os melhores livros lidos este ano – se bem que até o ano acabar ainda espero ler mais uns quantos. Não incluí este na lista que seria certamente o terceiro ou quarto, em termos de qualidade. Vida após Vida é de 2013, tendo ganho o Prémio Costa, e foi publicado pela Relógio d’Água em 2014. É um livro que assenta numa ideia bastante original, com uma escrita soberba, elegante e cheia de humor, se bem que esse humor delicioso se centre mais em Fox Corner, morada da infância e juventude de Ursula – independentemente da sua vida, pois é essencialmente em adulta que os desfechos se começam a desdobrar – e nos chistes trocados entre os seus familiares.  Todavia, permitam-me antes de mais começar por uma crítica negativa: porque não traduzir as falas em alemão que não são imensas mas são suficientes e inseridas no texto no original acabam por não permitir ao leitor comum – que não saiba alemão – perceber o se está a passar… Isto aconteceu antes, de forma ainda mais gritante, com o Uma questão de classe e as suas citações latinas, pelo que começo a achar que os tradutores estão mais preocupados em se focar na língua que de facto sabem, o inglês, e quanto ao resto o leitor que se amanhe.

Na contracapa do livro pode ler-se: «Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, um bebé nasce e morre sem que tenha tempo de respirar. Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, o mesmo bebé nasce e vive para poder contar a aventura.». Ou, diria eu, para poder contar a História.

À semelhança do filme Sliding Doors (Instantes Decisivos, com Gwyneth Platrow, em que o filme se parte em duas histórias, consoante ela apanhe ou não o metro), a história de Vida após Vida, como o título indica, é uma sucessão de desfechos alternativos, mas se ao início esses desfechos alternativos parecem cingir-se àquilo que aconteceria se Ursula sobrevivesse às várias mortes por que passa, depois começam a estar mais amplamente relacionados com o próprio livre arbítrio da personagem e das decisões que toma, como quando deixa um amigo do irmão a beijar no dia em que Ursula faz 16 anos – beijo esse que consentido ainda que passivamente terá depois consequências desastrosas no futuro da personagem. É curioso ressalvar que a astrologia defende inclusivamente que na carta astral de uma pessoa há várias datas possíveis para a morte de uma pessoa. Uma das ideias propostas pelo psiquiatra a que a mãe a leva é a de reencarnação, isto é, que Ursula seja uma alma muito velha e esteja a relembrar vidas passadas, mas o caso de Ursula é outro. A vida de Ursula desdobra-se numa míriade de vidas possíveis, até que, por fim, e fechando um ciclo com o primeiro capítulo que se passa em Novembro de 1930, quando Ursula entra num café e dispara sobre Hitler, se pressente que a ideia central ao romance é não só aquela eterna questão de “E se eu tivesse decidido assim ou optado por ali” mas “E se fosse possível prever o futuro e reescrever a História?». Nas palavras da própria Ursula: «Uma vez ouvi alguém dizer que a presciência era uma coisa maravilhosa, que com ela não haveria história.» (pág. 428). Se de início há certos elementos ou imagens que perpassam de vida para vida, como o broche de uma das vizinhas, Ursula tem mesmo sensações de déjà vu que começam a perturbá-la, e aos seus familiares. Ursula parece ainda adquirir efectivamente uma certa presciência, ao ponto de começar não propriamente a prever o que acontecerá – porque consoante a vida se desdobra noutra versão o que sucede é também distinto – mas a saber que, numa das suas outras vidas, o presente se desenrolou daquela outra forma, como quando sente que os trovões ribombam como canhões ou ao que cheira um bombardeio, mesmo que naquela vida Ursula nunca tenha passado pela guerra.

Kate Atkinson ganhou o Costa três vezes já: a segunda vez com este romance e depois à terceira com o romance que se seguiu a este, A God in Ruins, ainda não traduzido entre nós, mas quase a ser lançado pela Relógio D’Água no início do próximo ano, segundo a editora, e que se centra no irmão de Ursula, Teddy (Edward), o favorito da família, e que se tornou piloto de aviação, numa das muitas vidas de Ursula. Em Portugal é ainda possível encontrar o romance Retratos de Família, editado pela Planeta Editora.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.