Cidade da Vitória é o mais recente (e muito antecipado) romance de Salman Rushdie, autor publicado pela Dom Quixote – um dos meus autores favoritos, de longa data, e que me levou também, a par de García Márquez, a explorar os meandros do realismo mágico. Publicado em Portugal em Outubro, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, este é um romance que assenta no poder encantatório das histórias e o retorno à mescla entre o realismo e o maravilhoso, que caracteriza as melhores obras de Rushdie. O que é, entenda-se, diferente da noção de realismo mágico. Para que fique claro, o realismo mágico obedece a uma série de princípios, e nem todos os romances onde existe uma irrupção do maravilhoso devem ser definidos como romances pertencentes ao filão do realismo mágico, com a sua preferência notória pela metamorfose e por objetos e pessoas com o poder de levitar.
Cidade da Vitória funde o romance histórico com o maravilhoso, como quem reescreve a história de um país, fundindo mitologia com história, locais imaginários com lugares reais, numa história de encantar que parece apresentar-se como uma fábula do nascimento de um país. Nesta narrativa influi ainda a sátira e a alegoria, como é habitual na ficção de Rushdie.
«A história é uma consequência, não só das ações das pessoas, mas também do seu esquecimento.» (p. 190)
Victory City (título original) foi lançado internacionalmente no início deste ano. Considerando que narra a história da ascensão e queda de um império hindu, a par da história da sobrevivência obstinada de um texto que ganha a pujança de um mito, quase poderíamos considerar este romance profético, uma vez que Salman Rushdie foi atacado, no dia 11 de agosto do ano passado. É ainda mais curioso notar que a heroína deste novo romance, a certa altura, fica cega… o que não a impede de querer contar a história do seu povo e do seu reino.
Tendo-se deslocado a Chautauqua, no sudeste de Nova Iorque, para proferir uma palestra, o escritor foi apunhalado por um estudante, vestido de preto, chamado Hadi Matar. O autor já se encontrava em palco, junto ao seu amigo Henry Reese, com quem há duas décadas fundou o programa de apoio a escritores forçados ao exílio, City of Asylum, com quem iria debater o carácter cultural híbrido da imaginação na literatura contemporânea. O ataque deste jovem armado com uma faca provocou danos físicos irreparáveis, como a cegueira num olho e a perda de mobilidade numa das mãos. O autor, que chegou a correr risco de vida, tem mantido silêncio em torno deste ataque, contudo este será finalmente quebrado quando sair a sua próxima obra, justamente intitulada Knife, cujo lançamento está previsto para a Primavera de 2024 – esperando nós que não demore muito tempo a ser traduzido e lançado por cá.
Relembre-se que o autor andou fugido durante décadas, após a publicação de Os Versículos Satânicos, em 1988, quando foi condenado à morte pelo Aiatola Khomeini, o líder do Irão, que o acusou de ofender o Islão. O seu livro de memórias, Joseph Anton – Uma memória, é justamente o relato extenso e denso dos cerca de nove anos em que o autor viveu arredado do mundo e teve de mudar de nome, escolhendo a combinação de dois nomes próprios dentre alguns dos seus escritores favoritos: Joseph Conrad e Anton Tchékov.
Cidade da Vitória, voltando ao romance que aqui nos interessa apresentar,é uma obra que confirma o grande talento e originalidade de Salman Rushdie, além de uma imaginação tão transcendente quando transbordante. Não é descabido lembrar que Salman Rushdie é considerado, de acordo com a The New Yorker, como «um mestre da narrativa contínua».
Na sequência de uma batalha menor entre dois reinos do Sul da Índia, há muito esquecidos, do século XIV, Pampa Kampana, uma menina de nove anos, assiste à morte da mãe que entra, como muitas outras mulheres, numa pira funerária. É também nesse momento, dominada pela dor, que a menina se torna o veículo de uma deusa, que passa a falar pela sua boca e lhe concede poderes que estão para lá da sua compreensão. A deusa prenuncia que ela será determinante no surgimento de uma grande cidade, conhecida como «a cidade da vitória», depois baptizada como Bisnaga. Esta cidade, considerada uma maravilha do mundo, surge com o lançamento à terra de um saco de sementes mágicas. No entanto, Pampa Kampana compreende também que urge conferir aos seus cidadãos uma história que lhes dê consistência e propósito. É então que Pampa Kampana, por meio de sussurros, lhes influi vida, imaginando e contando a cada um dos cidadãos a história de cada um deles. Ao longo dos quase três séculos subsequentes, a vida de Pampa Kampana estará profundamente interligada à de Bisnaga, cidade que, eventualmente, será também governada por ela, pois primeiro junta-se com o irmão mais velho que a governa e depois com o seu sucessor, o irmão mais novo. A jovem em 20 anos envelhece apenas dois anos, e dará à luz três filhas da primeira união, e depois três filhos do segundo irmão. Pampa Kampana viverá 247 anos.
Não se pense que estas linhas constituem a sinopse ou resumo do livro. Este é apenas o início de uma história delirante que nos remete, em vários passos, para a magia de contar uma história e de como as histórias dão forma à vida. O que, afinal, nos remete para outro livro do autor publicado há meses: Linguagens da Verdade – Ensaios (2003-2020), com tradução de Isabel Lucas. Esta coletânea de ensaios foi publicada em abril deste ano, também pela Dom Quixote, e de certa forma antecipava já a publicação do seu novo romance. Este volume foi selecionado para o Prémio PEN/Diamonstein-Spielvogel para a Arte do Ensaio e reúne uma ampla colectânea de textos mais ou menos dispersos, como ensaios, críticas e discursos, escritos entre 2003 e 2020. O que estes textos revelam em comum é a relação de Rushdie com a palavra escrita e confirmam-no como um dos pensadores mais originais do nosso tempo. Ensaios que são uma declaração de amor à literatura, onde Rushdie analisa o que as obras de autores incontornáveis da literatura mundial, desde Shakespeare e Cervantes até Samuel Beckett, passando por Eudora Welty ou Toni Morrison, significam para ele, na página e a nível pessoal. Além da literatura como espelho do mundo, o autor disserta ainda sobre temas atuais como a migração, o multiculturalismo e a censura, sempre tendo em vista o papel transformador da linguagem e da palavra impressa nas nossas vidas.
“É essa a beleza do conto maravilhoso e da sua filha, a ficção: podemos em simultâneo saber que a história é uma obra da imaginação, ou seja, falsa, e acreditar que ela contém uma verdade profunda. Nesses momentos, a fronteira entre o mágico e o real deixa de existir.” (p. 14)
O primeiro ensaio de Linguagens da Verdade – Ensaios (2003-2020), intitulado «Contos Maravilhosos», é justamente dedicado ao poder encantatório das histórias, muito especialmente das histórias onde entra magia. É também nessas linhas que o autor reevoca o já referido conceito de realismo mágico, deixando o seu tributo aos autores latino-americanos que o “inventaram”.
Cidade da Vitória é um poderoso romance que vive pelo poder encantatório da palavra, da imaginação e da magia. E o seu subtexto é bastante claro, em vários passos da narrativa. As frases que encerram o romance relembram-nos aliás que esta é uma “cidade de palavras”: “As palavras são as únicas vencedoras.” (p. 396) É também através do acto de narrar a sua história, que é a de Bisnaga, que Pampa Kampana encontra, não uma espécie de felicidade (algo bastante impossível, depois de todos os reveses que ela sofreu), mas algo que lhe é próximo: “ao escrever aproximava-se mais do que em qualquer outra ocasião do novo lugar onde ela tinha fixado residência” (p. 337).
O narrador nunca é identificado, mas sabemos, logo no início, que o texto que nos apresenta é o seu reconto de um original, um poema narrativo da autoria da própria Pampa Kampana, enterrado numa vasilha de barro. Esta “imortal obra-prima” intitular-se-á “Jayaparajaya” (p. 13), e é colocada ao nível de outros poemas épicos, mitos fundadores da civilização indiana, como o Ramayana ou o Mahabharata. Este poema épico, que se diz ser composto por 24 mil versos em sânscrito, significa algo como Vitória e Derrota, o que remete para os ciclos próprios de um reino – e também da vida da heroína que criou esta cidade – que ora está na “mó de cima” ora conhece o fracasso.
O narrador assume, ainda, as suas limitações, fazendo uso de uma (falsa) modéstia, expondo que o livro que temos agora em mãos, e que “não passa de uma pálida sombra” do outro (p. 302), é a narração “em linguagem mais simples pelo presente autor, que não é erudito nem poeta, mas um mero contador de histórias” (p. 14). O que não o impede, no entanto, de em certos passos (em notas colocadas entre parênteses), explicar como decidiu, aqui e ali, rasurar ou resumir passagens demasiado extensas do original. A sua recriação a partir do texto original dá origem, portanto, a este romance que nasce assim para “simples diversão e possível edificação dos leitores de hoje, velhos e novos, instruídos e não grandemente instruídos, os que buscam a sabedoria e os que se divertem com o que é disparatado”, etc, etc…
Pampa Kampana, no início, ao criar a cidade e sussurrar as histórias dos seus habitantes, como quem lhes insufla vida e propósito, não encontrou grande resistência. Essa era afinal a “época da Geração Criada”, de uma cidade nascida de sementes mágicas lançadas à terra, cujos cidadãos eram “cabeças vazias”.
“Quando ela escreveu as suas histórias nessas tábuas rasas aceitaram as narrativas que ela lhes plantava nas cabeças sem o menor espalhafato. Ela estava a formá-los, e eles iam-se convertendo nas pessoas que ela inventava.” (p. 198)
Quando, décadas depois, o mundo se encontra virado do avesso, cabe a ela visitar as mentes das pessoas, escutando-as, de olhos fechados, para novamente voltar a sussurrar-lhes, de modo a endireitar a ordem do mundo. “Mas as pessoas às quais ela tinha de sussurrar agora não eram invenções suas. Tinham nascido e sido criadas em Bisnaga, possuíam verdadeiras histórias de família que remontavam a duas ou mesmo três gerações e por conseguinte não eram ficções maleáveis.” (p. 198) Muitas dessas pessoas aliás foram levadas a acreditar que a verdadeira história do nascimento do antigo reino de Bisnaga era uma mentira, que Bisnaga nascera de uma história real, e não “tinha origem nas imaginações de uma bruxa sussurrante”.
Pampa Kampana, ao executar a tarefa que a deusa lhe confiou, de dar igual representação às mulheres num mundo patriarcal – relembre-se que tudo começa quando a sua mãe mergulhou numa pira funerária –, torna-se também uma heroína, com a missão de revalorizar o papel da mulher na história. A este propósito podemos evocar um outro romance do autor, A Feiticeira de Florença. Entre esta deusa e aquela feiticeira não deixa de haver algumas afinidades, e a ilustrar a situação vulnerável destas mulheres, ora santas ora bruxas, voltamos ao ensaio de Rushdie: “Escrevi sobre uma mulher que caminha no fio da navalha desse poder vulnerável e acaba por ter de fugir para salvar a vida e fiquei impressionado com a quantidade de literatura do fantástico que se ocupa tanto do medo causado pelas mulheres como da veneração, que é o inverso ilusório desse medo.” (p. 38) Neste novo romance, é também nessa corda bamba que se move Pampa Kampana, ora idolatrada como deusa, ora temida, aprisionada e cega pelos novos governantes de Bisnaga, que são afinal seus descendentes.
A certa altura, para se proteger, a protagonista viaja inclusivamente para a Floresta das Mulheres, um espaço criado por uma outra deusa, onde os homens correm o sério risco de, ao aí entrar, se verem imediatamente transformados em mulheres: “Só os homens que atingiram o autoconhecimento completo e o domínio sobre os sentidos podem aqui sobreviver sob a forma masculina.” (p. 148)
Por fim, e a propósito de homens, convém dizer que os portugueses, como não podia deixar de ser, estão aqui também presentes, pois é nos braços de sucessivos portugueses mercadores de cavalos (que desfilam aqui como reencarnações de um mesmo homem, que ressurge era após era), sempre ruivos de olhos verdes, que Pampa Kampana conhece o amor, ao mesmo tempo que o autor entretece uma reflexão sobre o colonialismo e a presença portuguesa no Sul da Índia – igualmente presente noutras grandes obras de Rushdie, como O Último Suspiro do Mouro, que conta a saga familiar dos Miranda e dos Lobo. O primeiro português – povo de homens “confiáveis e honrados” (p. 49) – que surge, coincidentemente num Domingo de Páscoa, é Domingos Nunes. É também este jovem português o responsável, afinal, pelo facto de a Cidade da Vitória se passar a designar Bisnaga, corruptela da palavra Vijayanagar, que se vê incapacitado de pronunciar na sua língua, pois, como explica a Pampa Kampana, no português é simplesmente impossível pronunciar tais sons. Domingos Nunes bem tenta, até que a sua amada lhe responde “Como é que a tua língua lhe quer chamar?” (p. 47).
Cidade da Vitória representa a história de um reino mítico, assim como a história das vidas dos seus habitantes, que são assim equiparados ao poder criador da ficção, de como se constroem mundos e se inventam personagens que, com o tempo, ganham autonomia e vida além do papel. Pois todas as histórias têm tendência para fugir ao seu criador, sendo que a história da cidade de Bisnaga não é exceção, da mesma forma que há ficções tão poderosas que ganham a força do real, e amedrontam as mentes de vistas curtas.
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