Um Adeus Mais-Que-Perfeito, de Peter Handke, autor que tem vindo a ser publicado pela Relógio d’Água (ainda antes da atribuição do Nobel de Literatura em 2019), narra-nos o que sabe, ou julga saber, sobre a vida e a morte da mãe. Rotulado como «Um conto», este pequeno livro é uma leitura essencial para nos adentrarmos na obra de um autor controverso. Este é, possivelmente, o trabalho mais pessoal do autor, em torno de um tema nada fácil, como se pode perceber logo nas primeiras linhas, quando sabemos que a mãe se suicidou aos 51 anos com uma overdose de barbitúricos.
Quando o autor se decide a escrever, passaram já 7 semanas desde a morte, e fá-lo numa tentativa desesperada de despertar da «mudez apática» com que reagiu à notícia do suicídio e de reconstruir a sua vida, relembrando a da sua mãe, pois a perda acarreta o desmoronar da sua vida: «a minha consciência doía, tal era o vazio que nela se instalara» (p. 11). O autor escreve, ainda, com uma clara noção: «preciso da sensação de que aquilo por que estou a passar é incompreensível e incomunicável: só dessa maneira sinto que o horror tem sentido e é real» (p. 10).
Esta elegia, curiosamente designada como conto, situa-se entre a memória e o ensaio, entre a fotografia e a ficcionalização: o autor assinala de que forma a ficção lhe serve, usualmente, para se distanciar de si e da sua vida, o que não acontece aqui, pois este livro é justamente a tentativa de se reaproximar da mãe, ao mesmo tempo que salvaguarda que esta narrativa é naturalmente fictícia, como toda e qualquer «formulação, mesmo de coisas que tenham realmente acontecido» (p. 21): «neste caso, em que sou apenas o narrador, mas não posso assumir o papel do objeto narrado, não consigo distanciar-me. Só sou capaz de me distanciar de mim próprio, a minha mãe torna-se e ao mesmo tempo não se torna para mim, como costumo fazer comigo, uma personagem de ficção, um objeto artístico alado, vibrante de luz. Não se deixa agarrar e mantém-se inacessível, as frases despenham-se nas trevas e jazem espalhadas na folha de papel.» (p. 34)
Recuando 50 anos, até ao seu nascimento no mesmo lugar onde morreu, num mundo então fatal para a mulher, o autor rememora instantâneos (imprecisos, vagos) da vida da mãe, ao longo da era nazi, da guerra, e do consumismo pós-guerra, uma vida sofrida, triste e errante de quem «não era nada, nem nunca seria alguma coisa» (p. 27), até finalmente declarar ao filho: «Já não sou um ser humano» (p. 53). Parece sintomático que o pouco que o autor ficou a saber desta mulher invisível (não fosse por este livro) tenha sido através dos livros que ela lia e sentia como descrições da sua própria vida.
Peter Handke nasceu em 1942, em Griffen, na Áustria. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Graz, que abandonou em 1963, após o êxito da sua primeira obra. É um dos autores de língua alemã mais conhecidos e traduzidos. Escreveu romances, ensaios, poesia, obras de teatro, guiões cinematográficos de filmes de Wim Wenders como As Asas do Desejo.
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