Um Vasto Céu Azul é o novo thriller de Kate Atkinson, publicado pela Bertrand Editora, com tradução de Miguel Batista. Esta editora publicara já Transcrição (2020), um romance de espionagem passado durante a Segunda Guerra – mas muito diferente dos romances Vida após Vida e Um Deus em Ruínas (Relógio d’Água), cuja ação também se desenrola nesse período, e ambos vencedores do Prémio Costa. Ver artigo
Kate Atkinson, nascida em York (Grã-Bretanha) em 1951, conseguiu a proeza de ganhar o Prémio Costa pela terceira vez com esta obra que é um complemento, não uma sequela, segundo palavras da própria autora, de Vida após Vida, o seu romance anterior, igualmente premiado com o Costa e publicado pela Relógio d’Água.
A autora teve ainda duas outras obras publicadas em Portugal. Retratos de Família, o seu romance de estreia e vencedor do Costa, com o título original de Behind the Scenes at the Museum, data de 1995 e foi publicado uns anos depois pela Planeta Editora, que também traduziu e publicou Croquete Humano.
Vida após Vida, publicado pela Relógio d’Água em 2014, assenta numa ideia original. Na contracapa do livro pode ler-se: «Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, um bebé nasce e morre sem que tenha tempo de respirar. Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, o mesmo bebé nasce e vive para poder contar a aventura.». Ou, dito de outra forma, para poder contar a História. A história de Vida após Vida, como o título indica, é uma sucessão de desfechos alternativos, mas se ao início esses desfechos alternativos parecem cingir-se àquilo que aconteceria se Ursula sobrevivesse às várias mortes por que passa, depois começam a estar mais amplamente relacionados com o próprio livre arbítrio da personagem e das decisões que toma. A vida de Ursula desdobra-se numa míriade de vidas possíveis, até que, no fecho do primeiro capítulo, localizado temporalmente em Novembro de 1930, quando Ursula entra num café e dispara sobre Hitler, se pressente que a ideia central ao romance é não só a eterna questão de “E se eu tivesse decidido assim ou optado por ali” mas sim a de “E se fosse possível prever o futuro e reescrever a História?”. Nas palavras da própria heroína: «Uma vez ouvi alguém dizer que a presciência era uma coisa maravilhosa, que com ela não haveria história.» (pág. 428).
A autora teve ainda duas outras obras publicadas em Portugal. Retratos de Família, o seu romance de estreia e vencedor do Costa, com o título original de Behind the Scenes at the Museum, data de 1995 e foi publicado uns anos depois pela Planeta Editora, que também traduziu e publicou Croquete Humano.
Vida após Vida, publicado pela Relógio d’Água em 2014, assenta numa ideia original. Na contracapa do livro pode ler-se: «Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, um bebé nasce e morre sem que tenha tempo de respirar. Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, o mesmo bebé nasce e vive para poder contar a aventura.». Ou, dito de outra forma, para poder contar a História. A história de Vida após Vida, como o título indica, é uma sucessão de desfechos alternativos, mas se ao início esses desfechos alternativos parecem cingir-se àquilo que aconteceria se Ursula sobrevivesse às várias mortes por que passa, depois começam a estar mais amplamente relacionados com o próprio livre arbítrio da personagem e das decisões que toma. A vida de Ursula desdobra-se numa míriade de vidas possíveis, até que, no fecho do primeiro capítulo, localizado temporalmente em Novembro de 1930, quando Ursula entra num café e dispara sobre Hitler, se pressente que a ideia central ao romance é não só a eterna questão de “E se eu tivesse decidido assim ou optado por ali” mas sim a de “E se fosse possível prever o futuro e reescrever a História?”. Nas palavras da própria heroína: «Uma vez ouvi alguém dizer que a presciência era uma coisa maravilhosa, que com ela não haveria história.» (pág. 428).
Piloto de guerra
Um Deus em Ruínas, publicado em Setembro de 2017, a autora centra-se agora em Teddy, Edward Todd, o irmão mais novo de Ursula e piloto do Comando de Bombardeiros. Ursula Todd, numa das suas várias vidas, é uma presença constante, até porque é a irmã preferida, e provavelmente a amizade mais sólida, de Teddy. A sua presença é contudo quase sempre indirecta, quase nfantasmática, através de à partes que são relembrados por Teddy.
W. G. Sebald, em História Natural da Destruição, referia que há muito pouca literatura sobre a guerra aérea que devastou a Alemanha. Pois neste romance Kate Atkinson centra-se justamente no Blitz de Londres e na campanha de bombardeamentos estratégicos contra a Alemanha. Há uma aturada pesquisa histórica, que aliás perpassa na escrita, nunca de forma enfadonha, nas descrições pormenorizadas dos voos e dos pormenores associados à guerra, sendo que os episódios narrados são sempre baseados em factos reais. Existem momentos em que podemos mesmo visualizar vividamente as cenas.
Mas este não é apenas um romance sobre a Segunda Guerra Mundial. É sobretudo um romance sobre a vida e as várias guerras que combatemos ao longo da vida, como a doença, a velhice, as relações familiares, ou tão simplesmente o esquecimento.
Não é um romance em que se entre de ânimo leve. Levamos tempo a entrar na história, até porque temos de nos adaptar aos constantes saltos narrativos e ao desajuste cronológico na narração. Afinal, se tivéssemos de arriscar um motivo pelo qual este livro arrecadou o prémio Costa seria pelo tratamento do tempo. Não pelas prolepses ou analepses, que são constantes, nem ao facto de os capítulos, todos eles datados com um ano (entre 1925 e 2012), serem desordenados cronologicamente. Mas sim porque em poucas linhas os planos temporais enovelam-se e quase perdemos o fio à meada, não fosse a perícia com que a autora tece o fio do tempo.
Usar a metáfora de que ler este romance é como nos perdermos num labirinto seria incorrecto. Aqui andamos numa sala de espelhos, em que o passado faz luz sobre o futuro e o futuro se projecta no passado, à medida que um homem, num século que não é mais o seu, se apercebe de como a vida vai ruíndo apesar da sua bondade e da sua integridade.
São características marcadas na escrita da autora o forte sentido de humor, capaz de arrancar pequenas gargalhadas, muitas vezes através de pequenos à partes que pontuam a narrativa, e uma prosa elegante, polvilhada de humor e ironia. Um humor tipicamente britânico, que aliás caracteriza fortemente Fox Corner, o espaço da juventude de Teddy e de Ursula, que convida a um certo distanciamento e olhar crítico sobre a realidade.
Escreve a própria autora, na sua nota pessoal, que se lhe perguntassem do que trata este romance ela responderia «que é um romance sobre a ficção literária (e a necessidade de imaginar aquilo que não podemos conhecer) e sobre a Queda (do Homem)» (p. 387), sendo que proliferam no romance referências literárias alusivas a isso mesmo (há constantes citações e alusões literárias no romance, indicadas em notas finais). Este Deus em ruínas de que fala o título é também a fragilidade da condição humana, mesmo quando o Homem se arroga a ser Deus, é uma Europa que se perdeu e um passado irrecuperável, simbolizado pelo idílio de Fox Corner, a morada da inocência de Teddy: «A guerra fora um abismo aterrador e não havia forma de regressar ao outro lado, às vidas que haviam tido antes, àqueles que tinham sido antes da guerra. Isto valia tanto para eles como para o resto da Europa, pobre e em ruínas.» (p. 75)
E o que existe para lá da guerra?
Mas não se pense que este romance trata apenas de guerra, pois findas as batalhas aéreas travadas por Teddy e vencida a guerra pelos Aliados, uma boa parte dos capítulos posteriores a esse período tratam da difícil relação de Teddy com a sua filha Viola, bem como da relação desta com os seus filhos, Sun Edward Todd (Sunny) e Moon Roberta (Bertie). É curioso como os netos de Teddy, este pólo Sol-Lua, parecem configurar uma sobrevivência da personagem do avô e da sua irmã Ursula. No caso de Sunny através do nome de Edward Todd que este herda do avô e no caso de Bertie porque é ela quem tem a relação mais forte com Teddy, e muitas vezes surgem reminiscências dos seus à partes de que Teddy nos dá conta conforme os recorda, tal como antes acontecia com Ursula, enquanto esta era viva.
Existe a certa altura surpresa por parte de alguém em relação à pacatez da vida de Teddy, tendo ele sido um sobrevivente e um herói medalhado da guerra. Mas encontraremos depois uma explicação possível: «Tinha feito uma promessa, uma promessa secreta ao mundo, nas suas longas vigílias noturnas: se sobrevivesse, no grande futuro que depois viria, tentaria ser amável e levar uma vida digna e tranquila. Como Cândido, cultivaria o seu jardim. Discretamente. E seria essa a sua redenção. Ainda que só pudesse acrescentar uma pena ao prato da balança, seria a sua forma de restituição por ter sido poupado. No fim de tudo, quando chegasse a altura de ajustar contas, talvez essa pena lhe pudesse valer.» (p. 337). Esta pena é símbolo (e não será por acaso que aparece como motivo da belíssima e enigmática capa do livro) da queda que se segue ao voo, pois se as aves são uma constante, a começar pelo canto da cotovia e a terminar nos pombos caçados pelos falcões, a pena simboliza aqui a efemeridade, a queda fatal após a ascensão, as vidas que se perderam no prato da balança da guerra e da injustiça humana.
Correndo o risco de desvendar o final ou a grande surpresa, este livro joga ainda de forma muito original com a questão da ficção, da literatura como fantasia e criação de um real alternativo, de um mundo possível. A autora defende-se, na nota final, de que não tenta escrever pósmodernices. E se pensarmos na realidade da guerra que serve de fundo a esta história em torno da vida de Teddy percebemos que é de facto quase inverosímil acreditar neste piloto como um felizardo que sobreviveu a todas as suas missões, quando na verdade os soldados eram usados como carne para canhão e morriam: «Todos eles na flor da idade.» (p. 339). Tinham também um conhecimento deturpado do efeito das suas campanhas: «Cinquenta e cinco mil, quinhentos e setenta e três mortos no Comando de bombardeiros. Sete milhões de alemães mortos, dos quais quinhentos mil mortos pela campanha de bombardeamento dos Aliados. No total, a Segunda Guerra Mundial custou a vida a sessenta milhões, incluindo os onze milhões assassinados no Holocausto.» (p. 374)
texto publicado no Cultura.Sul de 13 de Outubro de 2017
Esperei quase dois anos para ler a tradução deste livro e para perceber como é que a autora conseguiu a proeza de ganhar o Prémio Costa pela terceira vez com esta obra que é um complemento, não uma sequela, segundo palavras da própria, a Vida após Vida. Nesse romance anterior igualmente premiado com o Costa e publicado pela Relógio d’Água, Ursula, numa das suas várias vidas (para quem leu o romance anterior percebe) é uma presença constante, até porque é a irmã preferida, e provavelmente a amizade mais sólida, de Teddy, Edward Todd, um piloto do Comando de Bombardeiros. Apresentei em tempos um livro de Sebald, História Natural da Destruição, em que o autor comenta justamente a pouca literatura que há em torno da guerra aérea que pulverizou a Alemanha. Pois neste romance Kate Atkinson centra-se justamente no Blitz de Londres e na campanha de bombardeamentos estratégicos contra a Alemanha. Há uma aturada pesquisa histórica, que aliás se sente, nunca de forma enfadonha, nas descrições pormenorizadas dos voos e dos pormenores associados à guerra, sendo que os episódios narrados são sempre baseados em factos reais. Existem momentos em que podemos mesmo visualizar vividamente as cenas, como se estivéssemos a ver um filme como Dunkirk.
Mas este não é apenas um romance sobre a guerra. É sobretudo um romance sobre a vida e as várias guerras que combatemos ao longo dela, como a doença, a velhice, as relações familiares, ou tão simplesmente o esquecimento.
Não é um romance em que se entre de ânimo leve. Penso que só perto da página 100 é que comecei a embrenhar-me na história verdadeiramente.
E se tivesse de arriscar um motivo pelo qual este livro arrecadou o Costa seria pelo tratamento do tempo. Não me refiro a prolepses ou analepses, que são constantes, nem ao facto de os capítulos, todos eles datados com um ano (entre 1925 e 2012), serem desordenados cronologicamente. Em poucas linhas os planos temporais enovelam-se e quase perdemos o fio à meada, não fosse a perícia com que a autora tece o fio do tempo.
Usar a metáfora de que ler este romance é como nos perdermos num labirinto seria incorrecto. Aqui andamos numa sala de espelhos, em que o passado faz luz sobre o futuro e o futuro se projecta no passado, à medida que um homem, num século que não é mais o seu, se apercebe de como a vida vai ruíndo apesar da sua bondade e da sua integridade.
Mas este não é apenas um romance sobre a guerra. É sobretudo um romance sobre a vida e as várias guerras que combatemos ao longo dela, como a doença, a velhice, as relações familiares, ou tão simplesmente o esquecimento.
Não é um romance em que se entre de ânimo leve. Penso que só perto da página 100 é que comecei a embrenhar-me na história verdadeiramente.
E se tivesse de arriscar um motivo pelo qual este livro arrecadou o Costa seria pelo tratamento do tempo. Não me refiro a prolepses ou analepses, que são constantes, nem ao facto de os capítulos, todos eles datados com um ano (entre 1925 e 2012), serem desordenados cronologicamente. Em poucas linhas os planos temporais enovelam-se e quase perdemos o fio à meada, não fosse a perícia com que a autora tece o fio do tempo.
Usar a metáfora de que ler este romance é como nos perdermos num labirinto seria incorrecto. Aqui andamos numa sala de espelhos, em que o passado faz luz sobre o futuro e o futuro se projecta no passado, à medida que um homem, num século que não é mais o seu, se apercebe de como a vida vai ruíndo apesar da sua bondade e da sua integridade.
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