A Vergonha, da autora francesa Annie Ernaux, laureada com o Nobel, é o novo livro a integrar o catálogo das suas obras na coleção Dois Mundos, com o selo da editora Livros do Brasil, com tradução de Maria Etelvina Santos. Ver artigo
Depois de História da Violência (recenseado no Cultura.Sul), narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis conta a violação e violência de que foi vítima, chega-nos agora, novamente pela Elsinore, Quem Matou o Meu Pai: uma breve narrativa sobre a complexa relação do autor/narrador com o pai, como uma carta em que pretende acertar contas com a memória dele, chegando a conclusões conforme escreve, falando sempre do pai no passado, porque no presente já não o conhece…
E ainda que esta autoficção contenha aspectos que já surgiam no seu livro anterior – onde o autor afirma, a dada altura, como os estudos superiores foram uma consequência da sua fuga, quando compreende que esse seria o único caminho possível que lhe permitiria afastar-se socialmente do seu passado familiar –, a relação intertextual que mais ressalta é com Regresso a Reims, de Didier Eribon (Dom Quixote), um ensaio onde a escrita autobiográfica também se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
E ainda que esta autoficção contenha aspectos que já surgiam no seu livro anterior – onde o autor afirma, a dada altura, como os estudos superiores foram uma consequência da sua fuga, quando compreende que esse seria o único caminho possível que lhe permitiria afastar-se socialmente do seu passado familiar –, a relação intertextual que mais ressalta é com Regresso a Reims, de Didier Eribon (Dom Quixote), um ensaio onde a escrita autobiográfica também se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
Com Édouard Louis o reencontro com o pai, e o seu próprio eu-criança, acontece mais a tempo, apesar de o pai estar já muito debilitado: «Já não podes conduzir, já não te é permitido beber álcool, já não consegues tomar banho ou ir trabalhar sem correres um enorme risco. Tens pouco mais de 50 anos. Pertences àquela categoria de seres humanos a quem a política reserva uma morte precoce.» (p. 12)
(…)
A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa, tal como no seu livro anterior, e fala-nos agora de outro tipo de violência, essencialmente verbal: a que o pai exerceu sobre ele, como forma de o tornar mais masculino.
(…)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Não é a primeira vez que sou desafiado para isto, mas tenho resistido. Contudo, aqui vai a minha resposta ao desafio, a quem interessar, mas feita à minha maneira.
Pensei primeiro em referir Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, pelo que só aí arrecadava logo a posição 1 a 7 dos 10 dias, mas vou fazer jogo limpo e indicar um título por cada dia, por ordem de importância e uma breve explicação do porquê desse título.
1- A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. É um livro a que voltei várias vezes. Foi-me proposto por uma colega do básico, com quem caminhava todos os dias para a escola, e falávamos de tudo, especialmente dos livros que os pais dela liam e que ela também começou a ler. Inevitavelmente os pais dela acabaram por mos emprestar e seja por terem sido os meus primeiros romances adultos lidos na juventude, ou seja por mera coincidência, foram as leituras que mais me marcaram até hoje. Ao ponto de terem determinado o meu futuro académico. Já explico… Lembro-me ainda hoje da bibliotecária, que depois passou a ser uma boa amiga, que me recusou levar o livro da biblioteca, por não ser indicado para a minha idade. Mal sabia ela que eu ia passar a visitá-la todas as semanas e a requisitar aos 3 livros de cada vez. A Casa dos Espíritos marcou-me tanto que quando o li pela primeira vez, aos 15 anos, comecei a escrever eu próprio uma tentativa de romance familiar. E a minha sobrinha hoje chama-se Clara. Falta saber se será clarividente.
2- Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Se a mãe da Tatiana lia Isabel Allende, o pai era fã de Gabo e convenceu-me a não perder tempo com “livros de senhoras”. Este romance marcou-me indelevelmente e de tal forma que a minha tese de mestrado e depois de doutoramento foi sobre o realismo mágico na literatura portuguesa – está publicada em livro e também disponível online. Inclusivamente fiz um estudo comparativo, que depois teve de ser profundamente reformulado e acho que o perdi, entre Cem Anos de Solidão e O meu mundo não é deste reino, de João de Melo, e entre A Casa dos Espíritos e O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Segundo os próprios autores as afinidades entre as obras eram muitas mais do que eles próprios se aperceberam.
3- O meu mundo não é deste reino, de João de Melo. Pelas razões que já apontei. E por ser um romance belíssimo, de uma escrita apaixonante. Ainda hoje sigo a obra deste escritor e tomei os Açores como meus, apesar de ter costela madeirense.
4- O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Acho que já disse tanto sobre esta escritora, que tem sido uma espécie de fada-madrinha para mim que já nem sei que mais possa escrever. Apaixonei-me por Branca, a Senhora do Dragão, a mulher capaz de ver no interior das pessoas e de prever o futuro.
5- Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie. Outra obra basilar do realismo mágico, lida sem ser por isso, e que aos 16 anos foi lida de rajada, quando eu não iria perceber metade. Mas as gargalhadas que dei com o livro. Penicos voadores, tapetes mágicos, uma criança com orelhas de elefante que sintoniza na sua mente os pensamentos de todos os outros filhos da Índia. Não vejo a hora de reler este romance. Salman Rushdie é hoje um dos meus autores favoritos.
6- As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Li tudo da autora, desde que descobri As Brumas. Apaixonei-me pela Morgana. Pelas lendas arturianas que nunca mais ninguém recontou como a Marion. Ou a guerra de Tróia, recontada em Presságio de Fogo. A sua escrita marcou muito os meus próprios rascunhos.
7- Lillias Fraser, de Hélia Correia. Li o livro muito antes de saber que um dia o trabalharia na minha tese de doutoramento ou de saber que um dia seria recebido pela escritora na sua casa em Sintra. Um romance onde o mágico permite rever a história. Uma menina que vê a morte nas pessoas e se destaca pelo seu brilho dourado e o seu mutismo animal que um dia chega a Lisboa e passa pelo Terramoto de 1755. Tenho um fraco por mulheres fortes, por isso apaixonei-me, tal como a autora, pela Lillias.
8- Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Porquê? Não é por eu ser pretensiosamente pseudo. Foi um romance que me arrebatou, mesmo com as suas frases que se alongam por páginas, como uma sinfonia em crescendo que interliga tudo no último volume. O meu professor de teoria da literatura tanto falou deste livro que eu sabia que o teria de ler. Simplesmente não segui o seu conselho (ainda!) de depois de ler o primero volume passar directamente para o último e depois reler tudo de início…
9- A Montanha Mágica, de Thomas Mann. A outra obra querida ao meu professor de Teoria. Quando finalmente o li pronto, rendi-me, e nada mais tenho a dizer sobre esta obra essencial à humanidade.
10- Regresso a Reims, de Didier Eribon. Hesitei um pouco porque quem lê mais de 52 livros por ano não consegue fazer jus a tudo. Pensei no Guerra e Paz, mas achei que ninguém me ia acreditar. Por isso deixo aqui o Regresso a Reims, de Didier Eribon. Não porque foi o livro que li ontem, mas porque mexeu tanto comigo que me fez desvelar um pouco de mim próprio este fim-de-semana. E porque é um livro em que me revejo muito. Podem ler no blogue porquê.
Pensei primeiro em referir Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, pelo que só aí arrecadava logo a posição 1 a 7 dos 10 dias, mas vou fazer jogo limpo e indicar um título por cada dia, por ordem de importância e uma breve explicação do porquê desse título.
1- A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. É um livro a que voltei várias vezes. Foi-me proposto por uma colega do básico, com quem caminhava todos os dias para a escola, e falávamos de tudo, especialmente dos livros que os pais dela liam e que ela também começou a ler. Inevitavelmente os pais dela acabaram por mos emprestar e seja por terem sido os meus primeiros romances adultos lidos na juventude, ou seja por mera coincidência, foram as leituras que mais me marcaram até hoje. Ao ponto de terem determinado o meu futuro académico. Já explico… Lembro-me ainda hoje da bibliotecária, que depois passou a ser uma boa amiga, que me recusou levar o livro da biblioteca, por não ser indicado para a minha idade. Mal sabia ela que eu ia passar a visitá-la todas as semanas e a requisitar aos 3 livros de cada vez. A Casa dos Espíritos marcou-me tanto que quando o li pela primeira vez, aos 15 anos, comecei a escrever eu próprio uma tentativa de romance familiar. E a minha sobrinha hoje chama-se Clara. Falta saber se será clarividente.
2- Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Se a mãe da Tatiana lia Isabel Allende, o pai era fã de Gabo e convenceu-me a não perder tempo com “livros de senhoras”. Este romance marcou-me indelevelmente e de tal forma que a minha tese de mestrado e depois de doutoramento foi sobre o realismo mágico na literatura portuguesa – está publicada em livro e também disponível online. Inclusivamente fiz um estudo comparativo, que depois teve de ser profundamente reformulado e acho que o perdi, entre Cem Anos de Solidão e O meu mundo não é deste reino, de João de Melo, e entre A Casa dos Espíritos e O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Segundo os próprios autores as afinidades entre as obras eram muitas mais do que eles próprios se aperceberam.
3- O meu mundo não é deste reino, de João de Melo. Pelas razões que já apontei. E por ser um romance belíssimo, de uma escrita apaixonante. Ainda hoje sigo a obra deste escritor e tomei os Açores como meus, apesar de ter costela madeirense.
4- O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Acho que já disse tanto sobre esta escritora, que tem sido uma espécie de fada-madrinha para mim que já nem sei que mais possa escrever. Apaixonei-me por Branca, a Senhora do Dragão, a mulher capaz de ver no interior das pessoas e de prever o futuro.
5- Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie. Outra obra basilar do realismo mágico, lida sem ser por isso, e que aos 16 anos foi lida de rajada, quando eu não iria perceber metade. Mas as gargalhadas que dei com o livro. Penicos voadores, tapetes mágicos, uma criança com orelhas de elefante que sintoniza na sua mente os pensamentos de todos os outros filhos da Índia. Não vejo a hora de reler este romance. Salman Rushdie é hoje um dos meus autores favoritos.
6- As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Li tudo da autora, desde que descobri As Brumas. Apaixonei-me pela Morgana. Pelas lendas arturianas que nunca mais ninguém recontou como a Marion. Ou a guerra de Tróia, recontada em Presságio de Fogo. A sua escrita marcou muito os meus próprios rascunhos.
7- Lillias Fraser, de Hélia Correia. Li o livro muito antes de saber que um dia o trabalharia na minha tese de doutoramento ou de saber que um dia seria recebido pela escritora na sua casa em Sintra. Um romance onde o mágico permite rever a história. Uma menina que vê a morte nas pessoas e se destaca pelo seu brilho dourado e o seu mutismo animal que um dia chega a Lisboa e passa pelo Terramoto de 1755. Tenho um fraco por mulheres fortes, por isso apaixonei-me, tal como a autora, pela Lillias.
8- Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Porquê? Não é por eu ser pretensiosamente pseudo. Foi um romance que me arrebatou, mesmo com as suas frases que se alongam por páginas, como uma sinfonia em crescendo que interliga tudo no último volume. O meu professor de teoria da literatura tanto falou deste livro que eu sabia que o teria de ler. Simplesmente não segui o seu conselho (ainda!) de depois de ler o primero volume passar directamente para o último e depois reler tudo de início…
9- A Montanha Mágica, de Thomas Mann. A outra obra querida ao meu professor de Teoria. Quando finalmente o li pronto, rendi-me, e nada mais tenho a dizer sobre esta obra essencial à humanidade.
10- Regresso a Reims, de Didier Eribon. Hesitei um pouco porque quem lê mais de 52 livros por ano não consegue fazer jus a tudo. Pensei no Guerra e Paz, mas achei que ninguém me ia acreditar. Por isso deixo aqui o Regresso a Reims, de Didier Eribon. Não porque foi o livro que li ontem, mas porque mexeu tanto comigo que me fez desvelar um pouco de mim próprio este fim-de-semana. E porque é um livro em que me revejo muito. Podem ler no blogue porquê.
Já o escrevi antes. Quando começo um livro raramente leio a sinopse, por isso, um pouco como a vida, nunca sei o que vou encontrar nas primeiras páginas do livro que retiro da estante. Mas há livros que nos agarram desde a primeira página e que nos perturbam tanto que o formigueiro nas pontas dos dedos para escrever se torna insuportável e impossível de ignorar.
Regresso a Reims é um ensaio onde a escrita autobiográfica, uma vez mais, se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês Didier Eribon perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
Este livro analisa como quanto mais nos afastamos no espaço mais difícil se torna, por vezes, reconhecer os nossos pais, aquela que era a nossa casa, e as nossas referências identitárias passam a ser um universo estranho. Nunca saí de casa para fugir à família, mas primeiro a 300 km de distância e depois a 7000 km, sensivelmente, em linha recta, percebo como foi preciso correr mundo para encontrar liberdade, para me libertar de um certo jugo, mesmo quando involuntário, em que constantemente somos interpelados a responder para onde vamos, com quem estivemos, o que fizemos. E como apesar da distância acabamos por ainda assim nunca nos encontrarmos de facto, pois há vozes interiores que nos perseguem. Ao contrário do autor deste livro, ou de James Baldwin, constantemente referido, que também viajou para Paris para se encontrar como homem negro e gay, não tive a infelicidade de ter um pai violento ou opressor. Pelo contrário, foi ele o primeiro a estender a mão, a querer ouvir, a tentar perceber. O mesmo não aconteceu, em contrapartida, com a minha mãe, que recriminou tanto como se culpava a si própria, querendo perceber em que errara, que apoio poderia solicitar, a vergonha que seria se os outros soubessem. Mas se Didier Eribon optou pela atitude mais cobarde ou simplesmente desesperada de cortar todas as ligações, há aqueles que são incapazes de cortar o cordão umbilical e se mantêm firmes e presentes, mesmo quando longe. E se bem que eu nunca tenha vivido num bairro social em Reims, também os meus pais são da classe operária e nenhum acabou a escolaridade. Por isso, quando as pessoas me viam sempre agarradas a um livro para onde quer que eu fosse, se questionava «A quem é que será que ele sai?». Por isso, mesmo quando concluí a licenciatura, e depois o mestrado, e um dia o doutoramento, e outro mestrado, etc., etc., eu sabia que havia um brilho de orgulho nos olhos dos meus pais, mas porque foram educados com poucas manifestações de carinho, aliás ambos foram criados por outras pessoas que não os pais, e por isso nunca foram de rasgados elogios. Levou muito tempo a perceber que ainda que pudesse haver, de facto, algum complexo em relação a mim, o orgulho falou mais alto. Não vivíamos em Reims, mas vivíamos na periferia da cidade. O meu pai trabalhava todos os dias de manhã à noite, e pela noite fora, e aos sábados, chegando a casa com uma farda a tresandar a óleo e a pele dos dedos estalada e enegrecida do óleo dos motores. Lavava as mãos com detergente da roupa em pó na banheira. Aos 12 anos, mudámos do campo para um apartamento. Aos 25, compraram o nosso segundo apartamento. Sempre fizemos viagens em família ao estrangeiro, em que os meus pais faziam sempre questão de nos levar. Quando eu era criança os meus pais contavam os tostões para o meu leite, mas na vida nunca me faltou nada, e quando cheguei à universidade tive uma bolsa. Não estou a querer dizer que ao contrário do autor deste livro, eu também não tive momentos em que a classe social me poderia envergonhar, em que por vezes os corrijo no seu português. Mas é o orgulho que também do meu lado fala mais forte e a grata percepção de que eles sempre me apoiaram, mesmo quando não sabiam como fazê-lo. Tal como eu os tenho ajudado como posso a serem mais fortes. Quando um pai morre ou adoece, é o nosso próprio sentido de mortalidade que dispara e é a nossa vida que colocamos em causa, numa angústia existencial de incerteza, de perda de referência, de abalo das fundações. O meu pai, mecânico, trabalhou tanto para nos fazer subir na vida que se perdeu pelo caminho. A minha mãe deu-me o que tinha de melhor, o seu amor incondicional e a esmerada educação que recebeu dos avós. E mesmo que haja uma clivagem social e cultural gradual, nunca senti que não precisava dos meus pais, ao ponto de os negar e dar por mim a negar-me. Mas estou grato por eles próprios terem sido capazes de rasgar as suas certezas na vida e, mais do que me aceitarem, sentirem orgulho. Orgulho esse que é recíproco, mesmo quando ainda hoje esbarramos tantas vezes em línguas diferentes de atitutes distintas perante a vida. E um amor imenso por uma mãe que teve de cortar as suas asas para as emprestar aos filhos e depois, quando quis voar, teve de passar pela dor de fazer as suas asas voltarem a crescer.
Regresso a Reims é um ensaio onde a escrita autobiográfica, uma vez mais, se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês Didier Eribon perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
Este livro analisa como quanto mais nos afastamos no espaço mais difícil se torna, por vezes, reconhecer os nossos pais, aquela que era a nossa casa, e as nossas referências identitárias passam a ser um universo estranho. Nunca saí de casa para fugir à família, mas primeiro a 300 km de distância e depois a 7000 km, sensivelmente, em linha recta, percebo como foi preciso correr mundo para encontrar liberdade, para me libertar de um certo jugo, mesmo quando involuntário, em que constantemente somos interpelados a responder para onde vamos, com quem estivemos, o que fizemos. E como apesar da distância acabamos por ainda assim nunca nos encontrarmos de facto, pois há vozes interiores que nos perseguem. Ao contrário do autor deste livro, ou de James Baldwin, constantemente referido, que também viajou para Paris para se encontrar como homem negro e gay, não tive a infelicidade de ter um pai violento ou opressor. Pelo contrário, foi ele o primeiro a estender a mão, a querer ouvir, a tentar perceber. O mesmo não aconteceu, em contrapartida, com a minha mãe, que recriminou tanto como se culpava a si própria, querendo perceber em que errara, que apoio poderia solicitar, a vergonha que seria se os outros soubessem. Mas se Didier Eribon optou pela atitude mais cobarde ou simplesmente desesperada de cortar todas as ligações, há aqueles que são incapazes de cortar o cordão umbilical e se mantêm firmes e presentes, mesmo quando longe. E se bem que eu nunca tenha vivido num bairro social em Reims, também os meus pais são da classe operária e nenhum acabou a escolaridade. Por isso, quando as pessoas me viam sempre agarradas a um livro para onde quer que eu fosse, se questionava «A quem é que será que ele sai?». Por isso, mesmo quando concluí a licenciatura, e depois o mestrado, e um dia o doutoramento, e outro mestrado, etc., etc., eu sabia que havia um brilho de orgulho nos olhos dos meus pais, mas porque foram educados com poucas manifestações de carinho, aliás ambos foram criados por outras pessoas que não os pais, e por isso nunca foram de rasgados elogios. Levou muito tempo a perceber que ainda que pudesse haver, de facto, algum complexo em relação a mim, o orgulho falou mais alto. Não vivíamos em Reims, mas vivíamos na periferia da cidade. O meu pai trabalhava todos os dias de manhã à noite, e pela noite fora, e aos sábados, chegando a casa com uma farda a tresandar a óleo e a pele dos dedos estalada e enegrecida do óleo dos motores. Lavava as mãos com detergente da roupa em pó na banheira. Aos 12 anos, mudámos do campo para um apartamento. Aos 25, compraram o nosso segundo apartamento. Sempre fizemos viagens em família ao estrangeiro, em que os meus pais faziam sempre questão de nos levar. Quando eu era criança os meus pais contavam os tostões para o meu leite, mas na vida nunca me faltou nada, e quando cheguei à universidade tive uma bolsa. Não estou a querer dizer que ao contrário do autor deste livro, eu também não tive momentos em que a classe social me poderia envergonhar, em que por vezes os corrijo no seu português. Mas é o orgulho que também do meu lado fala mais forte e a grata percepção de que eles sempre me apoiaram, mesmo quando não sabiam como fazê-lo. Tal como eu os tenho ajudado como posso a serem mais fortes. Quando um pai morre ou adoece, é o nosso próprio sentido de mortalidade que dispara e é a nossa vida que colocamos em causa, numa angústia existencial de incerteza, de perda de referência, de abalo das fundações. O meu pai, mecânico, trabalhou tanto para nos fazer subir na vida que se perdeu pelo caminho. A minha mãe deu-me o que tinha de melhor, o seu amor incondicional e a esmerada educação que recebeu dos avós. E mesmo que haja uma clivagem social e cultural gradual, nunca senti que não precisava dos meus pais, ao ponto de os negar e dar por mim a negar-me. Mas estou grato por eles próprios terem sido capazes de rasgar as suas certezas na vida e, mais do que me aceitarem, sentirem orgulho. Orgulho esse que é recíproco, mesmo quando ainda hoje esbarramos tantas vezes em línguas diferentes de atitutes distintas perante a vida. E um amor imenso por uma mãe que teve de cortar as suas asas para as emprestar aos filhos e depois, quando quis voar, teve de passar pela dor de fazer as suas asas voltarem a crescer.
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