Segunda Casa, de Rachel Cusk, publicado pela Relógio d’Água, com tradução de Sara Serras Pereira, integrou a lista de finalistas do Booker Prize de 2021. Da mesma autora, a trilogia Outline, completada em 2018, publicada entre nós pela Quetzal – A Contraluz (2017) e Trânsito (2018) –, sendo o terceiro e último volume, Kudos (2019), publicado pela Relógio d’Água, representam um novo dispositivo narrativo criado por Cusk, inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz, quase como se não houvesse uma intriga propriamente dita, mas sim o desfilar de uma câmara documental. Segunda Casa (Second Place no original) é um regresso da autora ao romance, e também a um registo mais convencionalmente narrativo. Ver artigo
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone – que optaram recentemente por ir viver com o pai. Casada pela segunda vez. Chama-se Faye – como se descobre quando o seu nome é pronunciado uma única vez, no romance inteiro, perto do final. Está prestes a embarcar numa viagem de promoção da sua obra num festival de literatura na Europa.
Kudos, publicado pela Relógio d’Água, encerra uma trilogia inicialmente publicada pela Quetzal, com A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), e parece inclusive fechar o ciclo começado em A Contraluz pois Faye encontra-se novamente num avião como no início do primeiro livro. Neste conjunto de obras a autora cria um novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Contudo o livro de Rachel Cusk é praticamente impossível de pousar, enquanto assistimos a um desfiar de histórias, sem filtro e sem juízos, sobre a família, a arte, a política, a crítica, a literatura, o futuro da Humanidade, o papel da mulher.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista especialmente a partir do que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever que a obra da autora entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, mesmo sendo ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Quase sem voz, assim como sem corpo, a narradora mais parece uma confidente e que nunca opina, apenas coloca questões que conduzem a linearidade das histórias dos que a cercam.
É sintomática a entrevista que alguém intenta fazer-lhe, em que na verdade a entrevistada nunca fala de si… «Reparara, por exemplo, que muitas vezes era uma simples pergunta a provocar nas minhas personagens proezas no domínio das revelações pessoais e que, como era óbvio, isso o fizera refletir sobre a sua profissão, que tinha como característica central fazer perguntas.» (p. 119) Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, estranhos de passagem, colegas escritores, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos, ainda que se perceba que lança perguntas que encaminham o ritmo dos solilóquios daqueles com que se cruza e através dos quais tece uma reflexão sobre os mais variados temas. Existem diversas situações em que os seus interlocutores são inclusive tratados como narradores e as suas histórias de vida como narrativas, pois como diz alguém: «as vidas das outras pessoas eram um drama que se desenrolava e que evoluía, passando por diferentes fases da existência, como uma telenovela prolongada» (p. 139)
Mas Faye, ou Rachel Cusk, acaba por deixar pequenas indicações de leitura deste seu romance, se o leitor estiver atento, sempre pelo discurso de outrem: «Afirmou que esperava que eu estivesse de acordo com a sua avaliação, uma vez que deduzira da minha obra que, se eu tinha imaginação, tinha o bom senso de a manter oculta.» (p. 151)
Há muito poucos momentos em que ela própria deixa entrever aquilo em que pensa, mas a sua capacidade de observação é sempre arguta, por vezes cáustica, como quando nos descreve o homem a seu lado no avião e que se prepara para lhe contar toda a sua vida: «Tinha quarenta e tal anos, um rosto que era ao mesmo tempo atraente e banal, e a indumentária limpa, bem engomada e neutra de um homem de negócios em fim de semana. (…) Irradiava uma virilidade anónima e ligeiramente provisória, como um soldado de uniforme.» (p. 11)
Kudos, publicado pela Relógio d’Água, encerra uma trilogia inicialmente publicada pela Quetzal, com A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), e parece inclusive fechar o ciclo começado em A Contraluz pois Faye encontra-se novamente num avião como no início do primeiro livro. Neste conjunto de obras a autora cria um novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Contudo o livro de Rachel Cusk é praticamente impossível de pousar, enquanto assistimos a um desfiar de histórias, sem filtro e sem juízos, sobre a família, a arte, a política, a crítica, a literatura, o futuro da Humanidade, o papel da mulher.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista especialmente a partir do que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever que a obra da autora entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, mesmo sendo ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Quase sem voz, assim como sem corpo, a narradora mais parece uma confidente e que nunca opina, apenas coloca questões que conduzem a linearidade das histórias dos que a cercam.
É sintomática a entrevista que alguém intenta fazer-lhe, em que na verdade a entrevistada nunca fala de si… «Reparara, por exemplo, que muitas vezes era uma simples pergunta a provocar nas minhas personagens proezas no domínio das revelações pessoais e que, como era óbvio, isso o fizera refletir sobre a sua profissão, que tinha como característica central fazer perguntas.» (p. 119) Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, estranhos de passagem, colegas escritores, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos, ainda que se perceba que lança perguntas que encaminham o ritmo dos solilóquios daqueles com que se cruza e através dos quais tece uma reflexão sobre os mais variados temas. Existem diversas situações em que os seus interlocutores são inclusive tratados como narradores e as suas histórias de vida como narrativas, pois como diz alguém: «as vidas das outras pessoas eram um drama que se desenrolava e que evoluía, passando por diferentes fases da existência, como uma telenovela prolongada» (p. 139)
Mas Faye, ou Rachel Cusk, acaba por deixar pequenas indicações de leitura deste seu romance, se o leitor estiver atento, sempre pelo discurso de outrem: «Afirmou que esperava que eu estivesse de acordo com a sua avaliação, uma vez que deduzira da minha obra que, se eu tinha imaginação, tinha o bom senso de a manter oculta.» (p. 151)
Há muito poucos momentos em que ela própria deixa entrever aquilo em que pensa, mas a sua capacidade de observação é sempre arguta, por vezes cáustica, como quando nos descreve o homem a seu lado no avião e que se prepara para lhe contar toda a sua vida: «Tinha quarenta e tal anos, um rosto que era ao mesmo tempo atraente e banal, e a indumentária limpa, bem engomada e neutra de um homem de negócios em fim de semana. (…) Irradiava uma virilidade anónima e ligeiramente provisória, como um soldado de uniforme.» (p. 11)
Depois de descobrir Rachel Cusk através da sua trilogia, isto é, das obras mais recentes, fui procurar o que mais se encontrava publicado em Portugal e descobri uma obra que aliás já me era familiar, recorrendo, como muitas vezes recorro, ao que encontro nas bibliotecas públicas. Arlington Park, obra traduzida por Tânia Ganho e publicada pelas Edições Asa, é bastante diferente de livros como Kudos, mas é igualmente uma leitura essencial a não perder. Uma espécie de Donas de Casa Desperadas, Arlington Park é uma versão erudita da histeria que significa viver no microcosmos de um subúrbio. O livro está brilhantemente escrito, e a acção condensa-se no único dia da vida de cinco mulheres, sendo que cada capítulo se centra em cada uma das personagens, para depois as retomar e por fim as reunir num jantar que se pode tornar catastrófico. Todas estas mulheres têm em comum, mesmo que não encontrem afinidades genuínas entre elas, o facto de se sentirem perdidas no seu casamento, na sua nova vida de mãe doméstica, como se o desfecho de todo o casamento fosse tornar-se uma peça de teatro, ou antes, uma farsa: «Maisie ouviu os passos do marido nas escadas; sentiu-o a aproximar-se, como que saído do âmago de um qualquer fogo ou fornalha invisível, onde ele era recriado em prol dela, fabricado uma e outra vez a partir das suas ausências. Sentiu uma consciência quase que insuportável da realidade dele, da vida dele e da tarefa, da tarefa dela, de manter aquelas representações dele coesas e contínuas. Era amor, esse trabalho de decifrar, interpolar e testemunhar: ser testemunha de algo na sua totalidade, isso era amor.» (p. 196)
Perpassa na narrativa um forte sentido de identidade feminina, do que significa ser mulher e mãe, e chega a ser chocante a hostilidade que por vezes estas mulheres manifestam perante os seus maridos, que parecem ter-se tornado perfeitos estranhos. Juliet é professora num liceu e apenas consegue encontrar algum consolo nas tardes em que reúne jovens raparigas num clube literário; Amanda é uma dona de casa cujo perfeccionismo e obsessão pela limpeza pode esconder uma homicida latente; Solly está prestes a dar à luz o seu quarto filho, sem conseguir perceber como é que se deixou apanhar nessa armadilha novamente, até que decide alugar um quarto vago e encontrar consolo na misteriosa vida das estudantes solteiras que o ocuparão; Maisie tenta domesticar o seu espírito agora fora da azáfama londrina e cingido à pacatez do subúrbio; Christine continua igualmente a sentir a aura londrina como um nevoeiro que dissipava ou esbatia a nitidez da realidade, e procura nas outras mulheres algum tipo de aliança…
A escrita de Rachel Cusk é absolutamente deliciosa e original, impregnada de algum humor negro, pois todas estas mulheres estão também à beira de um ataque de nervos, todas elas “interessantes”, porque têm os seus próprios “ódios de estimação”, como reflecte Christine (p. 113). Até ao descrever a mais banal das situações, a autora consegue modelar a linguagem e dar-lhe novos sentidos, como quando descreve o cenário à entrada de um centro comercial, local que parece servir de refúgio a estas mulheres: «todas as camadas do edifício eram visíveis dali de baixo. Parecia uma ilustração das cavidades do coração: as pessoas eram levadas para cima pelas escadas rolantes e, no fim, voltavam a emergir, oxigenadas pelas compras.» (p. 90)
Perpassa na narrativa um forte sentido de identidade feminina, do que significa ser mulher e mãe, e chega a ser chocante a hostilidade que por vezes estas mulheres manifestam perante os seus maridos, que parecem ter-se tornado perfeitos estranhos. Juliet é professora num liceu e apenas consegue encontrar algum consolo nas tardes em que reúne jovens raparigas num clube literário; Amanda é uma dona de casa cujo perfeccionismo e obsessão pela limpeza pode esconder uma homicida latente; Solly está prestes a dar à luz o seu quarto filho, sem conseguir perceber como é que se deixou apanhar nessa armadilha novamente, até que decide alugar um quarto vago e encontrar consolo na misteriosa vida das estudantes solteiras que o ocuparão; Maisie tenta domesticar o seu espírito agora fora da azáfama londrina e cingido à pacatez do subúrbio; Christine continua igualmente a sentir a aura londrina como um nevoeiro que dissipava ou esbatia a nitidez da realidade, e procura nas outras mulheres algum tipo de aliança…
A escrita de Rachel Cusk é absolutamente deliciosa e original, impregnada de algum humor negro, pois todas estas mulheres estão também à beira de um ataque de nervos, todas elas “interessantes”, porque têm os seus próprios “ódios de estimação”, como reflecte Christine (p. 113). Até ao descrever a mais banal das situações, a autora consegue modelar a linguagem e dar-lhe novos sentidos, como quando descreve o cenário à entrada de um centro comercial, local que parece servir de refúgio a estas mulheres: «todas as camadas do edifício eram visíveis dali de baixo. Parecia uma ilustração das cavidades do coração: as pessoas eram levadas para cima pelas escadas rolantes e, no fim, voltavam a emergir, oxigenadas pelas compras.» (p. 90)
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone. Viaja até Atenas. Chama-se Faye – como iremos descobrir na pág. 191.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista a contraluz, especialmente a partir daquilo que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever sobre a autora que a sua obra narrativa entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, apesar de ser ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, conhecidos, estranhos de passagem, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos. Talvez por isso uma das alunas do seu curso de escrita fique tão ofendida quando percebe que a aula consiste em ouvir os participantes falarem e nada se escreve…
Neste primeiro volume de uma trilogia, em que A Contraluz (2017) e Trânsito (2018) foram publciados pela Quetzal, e mais recentemente Kudos, pela Relógio d’Água, cria este novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que a protagonista e narradora se esbate até ser pouco mais do que um contorno a contraluz.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista a contraluz, especialmente a partir daquilo que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever sobre a autora que a sua obra narrativa entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, apesar de ser ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, conhecidos, estranhos de passagem, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos. Talvez por isso uma das alunas do seu curso de escrita fique tão ofendida quando percebe que a aula consiste em ouvir os participantes falarem e nada se escreve…
Neste primeiro volume de uma trilogia, em que A Contraluz (2017) e Trânsito (2018) foram publciados pela Quetzal, e mais recentemente Kudos, pela Relógio d’Água, cria este novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que a protagonista e narradora se esbate até ser pouco mais do que um contorno a contraluz.
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