Winfried Geord Sebald é um dos autores da literatura do século XX a ter em conta, nomeadamente pela sua capacidade de fundir o ensaio com as memórias ou a filosofia. Neste mais recente livro traduzido pela Quetzal (o sétimo livro do autor publicado pela editora), Sebald avança com uma tese polémica, de como a literatura alemã falhou em tratar a guerra aérea. Estas lições foram proferidas em Zurique em 1997 mas são aqui retrabalhadas, incluindo-se aliás num posfácio as respostas do autor à correspondência com as reacções suscitadas por essas lições. Numa segunda parte deste breve livro (onde não faltam fotografias) inclui-se ainda um artigo publicado numa revista sobre o autor Alfred Anderschs, que personifica como para «a esmagadora maioria dos escritores que ficaram na Alemanha durante o Terceiro Reich foi mais urgente, depois de 1945, a redefinição de uma ideia de si próprios do que a descrição das verdadeiras circunstâncias que os rodeavam» (p. 8).
Nascido numa aldeia dos Alpes em 1944, Sebald reconhece a sorte de quase não ter sido atingido pela catástrofe que se deu no império alemão mas que ainda assim deixou marcas na sua memória. Ficam para a História registos como os da Royal Air Force, que em 400 mil voos lançou em território inimigo alemão um milhão de toneladas de bombas, de que resultaram 131 cidades atacadas, muitas arrasadas, e 600 mil civis alemães vítimas da guerra aérea. Contudo, a «já lendária» e «admirável» reconstrução alemã após a devastação permitiram não olhar para trás, além de que na literatura alemã da época e da fase seguinte são quase inexistentes referências, e o próprio povo parece ter-se escudado sob uma certa amnésia colectiva pois os relatos dos sobreviventes recorrem geralmente às mesmas fórmulas e chavões. Ver artigo
O livro-ensaio «A flor amarela – ímpeto e melancolia em Machado de Assis», de Anabela Mota Ribeiro, publicado pela Quetzal, é uma óptima desculpa para se (re)ler uma das grandes obras da literatura de língua portuguesa, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, que é considerado o maior escritor brasileiro de sempre.
Um ensaio, como a própria autora esclarece em jeito de conclusão, é sobretudo uma interrogação, um tactear caminho, onde não se procura o encerrar definitivo em concha da obra em análise mas sim o ressoar da obra, como um búzio, uma caixa de ressonância onde outras obras e outros autores encontram ou despertam ecos.
Por isso mesmo ainda que partindo de uma ideia em torno da imagem da flor amarela, que simboliza a melancolia da personagem de Brás Cubas, e do seu reverso que é o ímpeto cesariano, «um ímpeto conquistador mais ligado ao fazer social», isto é, deixar algo que perdure para lá da vida, a autora deste ensaio vai lançando pistas e deixando pontas soltas para depois as voltar a atar, ou não. Porque a literatura se mantém viva enquanto aberta a várias leituras, a autora opta por se ir questionando para depois aventar respostas possíveis, sempre com base no texto em análise, que segue de forma mais ou menos sequencial ao início, mas do qual depois acaba por se descolar, conforme as questões que o texto lança se tornam cada vez mais complexas. A melancolia, essa «miséria», «relação não-quite com a vida», que Brás Cubas tenta suprir ao querer deixar um legado que lhe dê nomeada lembra a apatia ou o diletantismo que encontraremos num dos seus seguidores ou confessos admiradores, Eça de Queirós, mais precisamente na personagem de Carlos da Maia.
Em linguagem escorreita e concisa, e frases breves, o livro é composto por 45 capítulos/fragmentos, por vezes de duas páginas apenas, à semelhança dos capítulos breves de Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos eles igualmente intitulados de forma sugestiva, para no final, e mais uma vez tal como em Machado de Assis, interpelar directamente o leitor.
Se Brás Cubas, esse narrador que nos fala do sepulcro, segue um fio cronológico, procurando não deixar pontas soltas na obra, ainda que deixe por resolver algumas linhas melódicas que depois retoma apenas para concluir (não há personagem introduzida que não seja posteriormente recuperada), Anabela Mota Ribeiro sem procurar responder a tudo aquilo a que se propõe, nem procurar impôr uma interpretação única, vai conduzindo o leitor pela obra, em certos avanços e recuos, à medida que tenta comprovar a sua tese e enquanto vai desvendando a forma como certos acontecimentos narrados se encadeiam. Pelo caminho, mostra-nos ainda como Machado de Assis foi lido por outros (Harold Bloom e Susan Sontag, por exemplo), quais as ideias que dele retiveram, e conduz-nos ao terreno puro da filosofia de Schopenhauer – de quem bebe o pessimismo –, Nietzsche, Freud… E a partir da metade do ensaio, principalmente quando se desvela esse substrato filosófico que assiste à obra de Machado de Assis, a autora ganha mais ímpeto e este ensaio sobre uma obra literária torna-se, tal como a boa literatura, um texto sobre a vida, o sentido da vida e de como a escrita pode ser o «ímpeto cesariano» que tira sentido da vida, que lhe confere sentido, que transcende a vida:
«entretecidas com fio pessimista, há uma respiração afirmativa, motivada, a nosso ver, pelo ato da escrita. Brás Cubas, ao decidir narrar as suas memórias, e numa cirscunstância post mortem, nega desse modo a morte e a contingência inelutável do humano. Escrever transforma-se num exercício de superação.» (pág. 134).
Este ensaio é um óptimo guia de redescoberta de uma obra prima da literatura em português, onde se exploram influências, imagens recorrentes – como a da flor, metáfora de sentidos vários –, símbolos e presságios, num texto que a certa altura quase se institui como narrativa autónoma e que de forma circular, como a obra que o inspirou, deixa em aberto várias portas de entrada, insinuando que numa leitura não há fim que não remeta para o princípio (o que está magistralmente ilustrado nas Memórias), que ler um livro puxa outras leituras e é no acto da leitura que reside a continuidade da obra. Ver artigo
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